Por Iara Moura, no Observatório do Direito à Comunicação:
Os irmãos Miguel, Rafael e Gabriel têm respectivamente 5, 9 e 12 anos e cumprem uma rotina diária típica de muitas crianças brasileiras. São sacudidos cedo pela mãe e vão juntos à escola do bairro localizada a poucos quarteirões da casa onde vivem. No fim da aula, seguem a pé até a casa da avó, onde ficam até a mãe, Lúcia Helena, retornar do trabalho. Após o almoço, cumprem as tarefas de casa “voando” e correm pra frente da TV. Se não passa um filme ou desenho que chame a atenção, ligam o videogame. Ali gastam o resto da tarde enquanto a vó ocupa-se das atividades domésticas. Lúcia nem pensa muito quando a pergunta vem: “Agora (por volta das 15h) o que os seus filhos estão fazendo? “Estão vendo TV”, dispara em tom de adivinha.
A exemplo dos filhos de Lúcia, as crianças brasileiras chegam a ficar entre 4 e 6 horas diárias na companhia da televisão. Segundo pesquisa do Ibope, no ano de 2008, as crianças entre quatro e 11 anos de idade, das classes ABCDE, dedicam em média 4h54min por dia à televisão. Do aparelhinho mágico saltam os heróis e as histórias que permeiam a imaginação de todos. De lá também, chinelos, bonecos e sanduíches com meninos e meninas sorridentes. Miguel, certo dia, esperou a mãe ansioso até as 6 da noite. “Mãe, me dá uma pistola igual daquele cara (apontando um personagem na TV)”, disse eufórico. Ficou de castigo para aprender que “arma não é brinquedo”.
No último dia 30 de novembro, um pedido de vista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa suspendeu o julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2404) ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) contra dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que classifica como infração administrativa a transmissão de programa de rádio ou televisão em horário diverso do autorizado pelo governo federal. O dispositivo em questão é o artigo 254 que estabelece a chamada classificação indicativa. O que está em jogo no trâmite é o poder de incidência legal que o Estado deve ter sob os conteúdos dos programas veiculados pela televisão e pelo rádio, sobretudo em horários em que a audiência é formada por crianças e adolescentes.
Embora a classificação indicativa seja um mecanismo de proteção da criança e do adolescente previsto na Constituição Federal (art. 21, XVI e 220, §3٥) e tenha sido implantada no Brasil desde 2007, os requerentes do processo pretendem, sob a alegação de ferir a liberdade de expressão, retirar o caráter punitivo, que prevê multas e sanções às emissoras que descumprirem os horários estabelecidos para a transmissão de acordo com a faixa etária a qual a programação é indicada.
Proteção sob ameaça
O temor dos movimentos de direitos humanos é que a queda do dispositivo represente, em última instância, a perda da eficácia da classificação indicativa. “Apesar de o Ministério da Justiça, após inúmeros estudos e longos debates, ter publicado uma portaria que faz a divisão dos conteúdos de programação de acordo com as faixas etárias, estabelecendo os horários adequados para a sua veiculação, na prática as emissoras que não cumprirem essa regra não serão punidas", explica Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana.
Enquanto o trâmite legal se desenrola no judiciário, em Fortaleza (CE), num bairro que está a três ônibus do centro, Miguel, Rafael e Gabriel se amontoam na cama da mãe para ver a novela das nove. Num certo ponto, Lúcia sente as maçãs do rosto avermelharem, inventa uma desculpa e muda o canal. “Não dá pra explicar certas coisas pros garotos tão novos”. O que Lúcia não sabe é que aquele conteúdo, destinado à faixa etária de 14 anos como indica a tarja no início, poderá ser veiculado em qualquer horário se o julgamento do STF for favorável a ADI.
A Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert), que representa as emissoras do setor, defende a classificação indicativa como “instrumento de informação à disposição dos pais, para que estes decidam o que seus filhos devem assistir”. No entendimento da associação, o texto constitucional ressalta o caráter indicativo da classificação utilizando verbos como “recomendar” e “informar”. Para Ekaterine, a classificação é indicativa para os pais, mas obrigatória para as emissoras de radiodifusão. A advogada ressalta que as empresas são concessionárias de serviço público e, portanto, devem veicular conteúdos éticos que respeitem os valores da pessoa e da família de acordo com o artigo 221, capítulo IV da Constituição Federal.
Jairo Ponte, advogado, mestre em direito na área de políticas públicas de comunicação, também defende que o artigo 254 do ECA não descumpre a constituição mas, ao contrário, regulamenta o conteúdo dos artigos 220 e 221 que versam sobre a programação das empresas de radiodifusão. Para ele, o ponto crucial está no tocante à participação da sociedade civil na regulação dos conteúdos conforme colocada na lei 10.359/2001 (dispõe sobre a obrigatoriedade de os novos aparelhos de televisão conterem dispositivo que possibilite o bloqueio temporário da recepção de programação inadequada). A lei estabelece que competirá ao Poder Executivo, ouvidas as entidades representativas das emissoras especificadas, proceder à classificação indicativa dos programas de televisão.
Desta forma, a população estaria excluída do processo que estabelece as faixas etárias e os horários adequados a cada programação. “O que mais surpreende no caso da ADI 2404 é que em meio aos fundamentos apresentados pelo relator, segundo li na imprensa, ele defendeu que houvesse uma auto-regulação feito pelas próprias emissoras. Ou seja, nós, telespectadores e ouvintes, somos livres apenas para escolher dentre aquilo que já escolheram para vermos e ouvirmos”, completa.
Após o pedido de vistas do ministro Joaquim Barbosa, a pauta da ADI 2404 aguarda votação. Até o fechamento desta reportagem a data não havia sido divulgada. Se for mantida a tendência da última votação, onde quatro ministros foram favoráveis a ADI, como ficará a programação? Lúcia ensaia um prognóstico: “Tenho certeza que se isso daí acontecer vai mudar pra pior (...). As nossas crianças que a gente preserva de tanta coisa feia que tem na rua agora vão ter o exemplo da TV”, responde preocupada.
Os irmãos Miguel, Rafael e Gabriel têm respectivamente 5, 9 e 12 anos e cumprem uma rotina diária típica de muitas crianças brasileiras. São sacudidos cedo pela mãe e vão juntos à escola do bairro localizada a poucos quarteirões da casa onde vivem. No fim da aula, seguem a pé até a casa da avó, onde ficam até a mãe, Lúcia Helena, retornar do trabalho. Após o almoço, cumprem as tarefas de casa “voando” e correm pra frente da TV. Se não passa um filme ou desenho que chame a atenção, ligam o videogame. Ali gastam o resto da tarde enquanto a vó ocupa-se das atividades domésticas. Lúcia nem pensa muito quando a pergunta vem: “Agora (por volta das 15h) o que os seus filhos estão fazendo? “Estão vendo TV”, dispara em tom de adivinha.
A exemplo dos filhos de Lúcia, as crianças brasileiras chegam a ficar entre 4 e 6 horas diárias na companhia da televisão. Segundo pesquisa do Ibope, no ano de 2008, as crianças entre quatro e 11 anos de idade, das classes ABCDE, dedicam em média 4h54min por dia à televisão. Do aparelhinho mágico saltam os heróis e as histórias que permeiam a imaginação de todos. De lá também, chinelos, bonecos e sanduíches com meninos e meninas sorridentes. Miguel, certo dia, esperou a mãe ansioso até as 6 da noite. “Mãe, me dá uma pistola igual daquele cara (apontando um personagem na TV)”, disse eufórico. Ficou de castigo para aprender que “arma não é brinquedo”.
No último dia 30 de novembro, um pedido de vista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa suspendeu o julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2404) ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) contra dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que classifica como infração administrativa a transmissão de programa de rádio ou televisão em horário diverso do autorizado pelo governo federal. O dispositivo em questão é o artigo 254 que estabelece a chamada classificação indicativa. O que está em jogo no trâmite é o poder de incidência legal que o Estado deve ter sob os conteúdos dos programas veiculados pela televisão e pelo rádio, sobretudo em horários em que a audiência é formada por crianças e adolescentes.
Embora a classificação indicativa seja um mecanismo de proteção da criança e do adolescente previsto na Constituição Federal (art. 21, XVI e 220, §3٥) e tenha sido implantada no Brasil desde 2007, os requerentes do processo pretendem, sob a alegação de ferir a liberdade de expressão, retirar o caráter punitivo, que prevê multas e sanções às emissoras que descumprirem os horários estabelecidos para a transmissão de acordo com a faixa etária a qual a programação é indicada.
Proteção sob ameaça
O temor dos movimentos de direitos humanos é que a queda do dispositivo represente, em última instância, a perda da eficácia da classificação indicativa. “Apesar de o Ministério da Justiça, após inúmeros estudos e longos debates, ter publicado uma portaria que faz a divisão dos conteúdos de programação de acordo com as faixas etárias, estabelecendo os horários adequados para a sua veiculação, na prática as emissoras que não cumprirem essa regra não serão punidas", explica Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana.
Enquanto o trâmite legal se desenrola no judiciário, em Fortaleza (CE), num bairro que está a três ônibus do centro, Miguel, Rafael e Gabriel se amontoam na cama da mãe para ver a novela das nove. Num certo ponto, Lúcia sente as maçãs do rosto avermelharem, inventa uma desculpa e muda o canal. “Não dá pra explicar certas coisas pros garotos tão novos”. O que Lúcia não sabe é que aquele conteúdo, destinado à faixa etária de 14 anos como indica a tarja no início, poderá ser veiculado em qualquer horário se o julgamento do STF for favorável a ADI.
A Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert), que representa as emissoras do setor, defende a classificação indicativa como “instrumento de informação à disposição dos pais, para que estes decidam o que seus filhos devem assistir”. No entendimento da associação, o texto constitucional ressalta o caráter indicativo da classificação utilizando verbos como “recomendar” e “informar”. Para Ekaterine, a classificação é indicativa para os pais, mas obrigatória para as emissoras de radiodifusão. A advogada ressalta que as empresas são concessionárias de serviço público e, portanto, devem veicular conteúdos éticos que respeitem os valores da pessoa e da família de acordo com o artigo 221, capítulo IV da Constituição Federal.
Jairo Ponte, advogado, mestre em direito na área de políticas públicas de comunicação, também defende que o artigo 254 do ECA não descumpre a constituição mas, ao contrário, regulamenta o conteúdo dos artigos 220 e 221 que versam sobre a programação das empresas de radiodifusão. Para ele, o ponto crucial está no tocante à participação da sociedade civil na regulação dos conteúdos conforme colocada na lei 10.359/2001 (dispõe sobre a obrigatoriedade de os novos aparelhos de televisão conterem dispositivo que possibilite o bloqueio temporário da recepção de programação inadequada). A lei estabelece que competirá ao Poder Executivo, ouvidas as entidades representativas das emissoras especificadas, proceder à classificação indicativa dos programas de televisão.
Desta forma, a população estaria excluída do processo que estabelece as faixas etárias e os horários adequados a cada programação. “O que mais surpreende no caso da ADI 2404 é que em meio aos fundamentos apresentados pelo relator, segundo li na imprensa, ele defendeu que houvesse uma auto-regulação feito pelas próprias emissoras. Ou seja, nós, telespectadores e ouvintes, somos livres apenas para escolher dentre aquilo que já escolheram para vermos e ouvirmos”, completa.
Após o pedido de vistas do ministro Joaquim Barbosa, a pauta da ADI 2404 aguarda votação. Até o fechamento desta reportagem a data não havia sido divulgada. Se for mantida a tendência da última votação, onde quatro ministros foram favoráveis a ADI, como ficará a programação? Lúcia ensaia um prognóstico: “Tenho certeza que se isso daí acontecer vai mudar pra pior (...). As nossas crianças que a gente preserva de tanta coisa feia que tem na rua agora vão ter o exemplo da TV”, responde preocupada.
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