Por Marcelo Semer, no blog Sem Juízo:
Meses atrás, manchetes de grandes jornais davam conta de que cem mil presos iam sair das cadeias da noite para o dia com a nova lei das prisões.
A fotografia de uma delegacia em Goiás nesta semana, com detentos jogados ao chão e algemados na parede por falta de vagas dá bem o retrato do embuste que foi a criação dessa expectativa.
Mas o discurso do medo teve lá a sua serventia. Como diz o escritor Mia Couto, "Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas".
Esse discurso elevado propositadamente à enésima potência tem servido para legitimar, se é que o verbo pode se adequar a hipóteses tão dramáticas, a política de ordem e disciplina que vem pouco a pouco se instalando em corações e mentes.
A forte repressão, policial e jurídica, à marcha da maconha; a tropa de choque contra estudantes na USP; a polícia na linha de frente da saúde pública, na Cracolândia; o abrupto despejo de milhares de almas em Pinheirinho.
Como drogados, estudantes rebeldes, famílias inteiras foram submetidas a doses de dor e sofrimento em nome do restabelecimento da ordem. Afinal, onde ficaria o respeito à propriedade privada e à decisão judicial?
Mas será que um terreno de um milhão de metros quadrados vazio por décadas, ao lado de milhares de pessoas que não têm onde morar, também não seria por si só uma violação da ordem?
Com o apoio de um certo terror midiático, que busca convencer que o fim do mundo está na próxima esquina, as políticas de estado vão sendo paulatinamente subordinadas a decisões bélicas -é basicamente disso que se trata quando a PM prepara por meses a inteligência de suas intervenções.
Acontece com frequência incomum na São Paulo atual, mas não apenas nela. Militarização e repressão tem se espalhado por outros cantos do país.
A supervalorização da ordem desconsidera, sobretudo, a solidariedade, fundamento dos principais objetivos de nossa República.
Eles ainda estão lá perdidos no art. 3º, da Constituição e lidos hoje parecem pouco mais do que contos de fada: "construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos...".
Se isso tudo que está no coração da Lei Maior não vale nada, como ensinar ao povo que a lei deve ser cumprida? Com a força e pronto.
O pior de tudo é que nossa experiência recente ensinou que a solidariedade, além de justa, produz efeitos colaterais irrenunciáveis.
As políticas de transferência de renda vitaminaram uma considerável ascensão social e revigoraram o mercado interno consumidor, importante para amortecer o peso da crise mundial.
É preciso apostar mais nas pessoas e não menos. Emancipar o povo fará do Brasil um país muito melhor -sacrificá-lo, o devolverá ao passado, não à modernidade que tanto se apregoa.
Afinal, privilegiar a ordem sem solidariedade é investir na mera dominação. Usar a polícia para tutelar a propriedade privada é coisa que se faz no país desde a escravatura. Mas a supervalorização da ordem que se vê hoje pode ir além do que o tradicional predomínio do mais forte: é um passaporte para o fascismo.
Um jornalista da Rede Record chorou em plena produção da reportagem quando viu uma criança de dois anos, chupeta na boca, sentada sobre um tijolo de sua casa despedaçada em Pinheirinho, talvez sem entender o que acontecia.
Também foi impossível ver a imagem do preso goiano deitado e algemado na parede e não se lembrar da amarra de um animal indócil.
Quiçá possamos ser um pouco reféns dessas imagens que nos perturbam e nos comovem.
Para além dos cálculos e dos códigos, dos cassetetes e dos tratores, existem vidas esperando ser simplesmente consideradas.
Por quanto tempo vamos ignorá-las?
Meses atrás, manchetes de grandes jornais davam conta de que cem mil presos iam sair das cadeias da noite para o dia com a nova lei das prisões.
A fotografia de uma delegacia em Goiás nesta semana, com detentos jogados ao chão e algemados na parede por falta de vagas dá bem o retrato do embuste que foi a criação dessa expectativa.
Mas o discurso do medo teve lá a sua serventia. Como diz o escritor Mia Couto, "Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas".
Esse discurso elevado propositadamente à enésima potência tem servido para legitimar, se é que o verbo pode se adequar a hipóteses tão dramáticas, a política de ordem e disciplina que vem pouco a pouco se instalando em corações e mentes.
A forte repressão, policial e jurídica, à marcha da maconha; a tropa de choque contra estudantes na USP; a polícia na linha de frente da saúde pública, na Cracolândia; o abrupto despejo de milhares de almas em Pinheirinho.
Como drogados, estudantes rebeldes, famílias inteiras foram submetidas a doses de dor e sofrimento em nome do restabelecimento da ordem. Afinal, onde ficaria o respeito à propriedade privada e à decisão judicial?
Mas será que um terreno de um milhão de metros quadrados vazio por décadas, ao lado de milhares de pessoas que não têm onde morar, também não seria por si só uma violação da ordem?
Com o apoio de um certo terror midiático, que busca convencer que o fim do mundo está na próxima esquina, as políticas de estado vão sendo paulatinamente subordinadas a decisões bélicas -é basicamente disso que se trata quando a PM prepara por meses a inteligência de suas intervenções.
Acontece com frequência incomum na São Paulo atual, mas não apenas nela. Militarização e repressão tem se espalhado por outros cantos do país.
A supervalorização da ordem desconsidera, sobretudo, a solidariedade, fundamento dos principais objetivos de nossa República.
Eles ainda estão lá perdidos no art. 3º, da Constituição e lidos hoje parecem pouco mais do que contos de fada: "construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos...".
Se isso tudo que está no coração da Lei Maior não vale nada, como ensinar ao povo que a lei deve ser cumprida? Com a força e pronto.
O pior de tudo é que nossa experiência recente ensinou que a solidariedade, além de justa, produz efeitos colaterais irrenunciáveis.
As políticas de transferência de renda vitaminaram uma considerável ascensão social e revigoraram o mercado interno consumidor, importante para amortecer o peso da crise mundial.
É preciso apostar mais nas pessoas e não menos. Emancipar o povo fará do Brasil um país muito melhor -sacrificá-lo, o devolverá ao passado, não à modernidade que tanto se apregoa.
Afinal, privilegiar a ordem sem solidariedade é investir na mera dominação. Usar a polícia para tutelar a propriedade privada é coisa que se faz no país desde a escravatura. Mas a supervalorização da ordem que se vê hoje pode ir além do que o tradicional predomínio do mais forte: é um passaporte para o fascismo.
Um jornalista da Rede Record chorou em plena produção da reportagem quando viu uma criança de dois anos, chupeta na boca, sentada sobre um tijolo de sua casa despedaçada em Pinheirinho, talvez sem entender o que acontecia.
Também foi impossível ver a imagem do preso goiano deitado e algemado na parede e não se lembrar da amarra de um animal indócil.
Quiçá possamos ser um pouco reféns dessas imagens que nos perturbam e nos comovem.
Para além dos cálculos e dos códigos, dos cassetetes e dos tratores, existem vidas esperando ser simplesmente consideradas.
Por quanto tempo vamos ignorá-las?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: