sexta-feira, 16 de março de 2012

Direitos da criança ameaçados na TV

Por Vilson Vieira Junior, no Observatório da Imprensa:

Em maio de 2009, a pequena Maisa, à época com apenas seis anos de idade, protagonizou cenas constrangedoras ao lado do apresentador e empresário Silvio Santos no quadro “Pergunte pra Maisa”. O palco foi um programa dominical que leva o nome do “homem do baú”, no SBT. Numa das cenas, que foi ar no dia 10 daquele mês, ele provocou choro e muitos gritos na menina ao levar um garoto com o rosto pintado de monstro. Momentos antes, ela havia contado ao apresentador que ficou com medo ao vê-lo no camarim. Todavia, o dono do SBT quis fazer um teste e o chamou ao palco. Após ver o “menino-monstro” ao seu lado, Maisa, em desespero e aos prantos, começou a correr diante das câmeras acompanhada pelas gargalhadas sarcásticas de Silvio Santos.

Noutra ocasião, exibida uma semana depois, Maisa ficou nervosa com as provocações do apresentador pelo que havia acontecido no programa anterior. Ela deixou o palco correndo, bateu com a cabeça em uma câmera e chorou reclamando de dores com a mãe. Não bastasse aquele absurdo, Silvio Santos, em coro com o auditório, cantarolou: “Medrosa, medrosa, medrosa...” As duas cenas lamentáveis saíram da TV para virar febre na internet e logo ganharam as páginas de grandes jornais.

Resultado: a Vara da Infância e da Juventude da comarca de Osasco – cidade onde estão sediados os estúdios do SBT –, a pedido do Ministério Público Estadual, cassou a licença que permitia a participação da menina no programa. Essa longa introdução é para mostrar que fatos como esses envolvendo crianças não são isolados e, com frequência cada vez mais preocupante, invadem os lares de milhões de brasileiros. E o mais recente aconteceu no programa Raul Gil, no dia 3 de março deste ano, também no SBT.

Direitos da criança

Velho conhecido em apresentar calouros infantis para alavancar a audiência, Raul Gil comanda aos sábados o quadro “Eu e as Crianças”. Nele, as crianças interagem com o apresentador, cantam, dançam e contam piadas. Tudo em clima de muita diversão. Mas uma cena chamou a atenção por lembrar o ocorrido com Maisa há quase três anos. Desta vez, a vítima da disputa sem limites pela audiência na TV aberta foi a pequena Manuela Munhoz, que aparenta ter apenas quatro ou cinco anos de idade, embora seja bem conhecida do público que assiste ao programa.

Ao ser provocada pelo apresentador, que a interrompia voluntariamente quando ela tentava anunciar a próxima criança, começou a chorar, pedindo: “Por favor, para de brincar comigo, vovô Raul!” Como ele não atendeu aos pedidos da menina, ela disse: “Vovô Raul, eu já falei pra parar de brincar comigo!” E soluçava compulsivamente, sendo consolada por duas colegas que tinham acabado de chegar ao palco. O apresentador tentava minimizar o sofrimento da pequena caloura entoando frases que rimavam com o nome dela. Mas ainda chorando muito e com a voz embargada, Manuela teve que falar um texto decorado, um slogan que promovia o apresentador e a emissora na qual se apresentava.

Para muitos, tal episódio não passou de mais uma entre tantas estratégias já empregadas na TV para entreter o público, em sua grande maioria tão carente de diversão e lazer nos fins de semana. No entanto, crianças estão no centro desses fatos inaceitáveis e de mau gosto. Crianças que, como todas as outras, ao invés de serem objeto de exploração e chacota, merecem total proteção e respeito quanto à sua integridade física, moral e psíquica. É o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas que ainda parece desconhecido por aqueles que fazem televisão no Brasil.

Liberdade, respeito e dignidade

Vale sublinhar que o Estatuto motivou a ação do Ministério Público Estadual de São Paulo contra o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), em 2009, no caso Maisa. Sendo assim, não custa nada lembrá-los o que determina o ECA em seus artigos 4º, 5º, 15, 17 e 18, com destaque para os três últimos:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.


Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.


Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.


Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.


Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Desafio à democratização da mídia

Ao serem analisados à luz da legislação, casos como os de Maisa e Manuela só vêm confirmar a forma criminosa com que a TV aberta comercial tem abordado a criança nos últimos tempos e refletem a inoperância do Ministério das Comunicações na fiscalização do conteúdo veiculado pelas concessionárias de televisão. Estas, além de não dedicarem o devido espaço ao público infantil a partir de conteúdos educativos, de exibirem em qualquer horário programas inadequados (burlando a Classificação Indicativa) e de abusarem da publicidade direcionada a esse público, prestam um enorme desserviço ao expor crianças em situações constrangedoras e humilhantes em programas de auditório.

Em suma, o que aconteceu deve ser visto como um atentado às crianças de todo o país, além de colocar em xeque, mais uma vez, o cumprimento de obrigações legais e constitucionais por parte das emissoras de televisão. Eis aí mais um desafio para os que defendem a democratização da mídia no Brasil: preservar os direitos de crianças e adolescentes nos meios de comunicação e reivindicar políticas de conteúdo que respeitem sua condição de sujeitos em plena formação de valores éticos, sociais e intelectuais.

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