Por Eduardo Guimarães, no Blog da Cidadania:
“Eu tinha 19 anos; eu fiquei três anos na cadeia e eu fui barbaramente torturada”. Foi assim que a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, respondeu ao senador José Agripino Maia (DEM-RN) ao ser afrontada por ele, em 2008, com insinuação de que poderia estar mentindo no depoimento que estava dando a uma comissão do Senado que a convocara para explicar acusações de que teria mandado fazer um “dossiê” contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
A tese de Agripino era a de que lera declaração pretérita de Dilma de que mentira aos torturadores quando fora presa durante a ditadura militar e de que, por isso, poderia estar mentindo também agora ao negar a confecção de um “dossiê” contra FHC que jamais se comprovou ter existido, assim como o grampo sem áudio do Gilmar Mendes e de outras invenções que o esquema Veja-Cachoeira produziu ao longo da década passada.
Cortemos para o tempo presente.
No fim de semana, os jornais Estado de Minas e Correio Brasiliense publicaram relato que Dilma fez em 2001 em entrevista a Conselho de Direitos Humanos mineiro que o ex-presidente Itamar Franco criou para definir reparações a vítimas do regime militar no Brasil.
Note-se, assim, que não se tratou de uma jogada política que alguns andaram especulando que pretenderia vitimizar a presidente da República de forma a angariar simpatias a ela, até porque Dilma não está precisando de estratégias extremadas nesse sentido, haja vista que sua popularidade está no auge, batendo todos os recordes desde que assumiu o cargo.
Dilma fez aquele relato há mais de uma década e ele repercutiu internacionalmente no fim de semana após ser difundido por dois jornais absolutamente insuspeitos de serem simpáticos ao governo federal, pois um escreve o que Aécio Neves manda e o outro integra o que se convencionou chamar de Partido da Imprensa Golpista (PIG), um conluio entre impérios de comunicação e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – ou, ao menos, as suas principais lideranças.
Suponho que todos os que se interessam por política, que são os que estão lendo este texto agora, já saibam do teor do relato de Dilma sobre as sevícias que verdugos do regime militar praticaram contra si, verdugos que tal regime encarregou de extrair informações daquela bela jovem de 19 anos, de classe média, esclarecida, estudada, branca e de ascendência européia que não tinha motivos escusos para se envolver na política brasileira, tendo apenas, então, ideais libertários que a tantos como ela envolveram naqueles anos trágicos de nossa história.
O relato de Dilma é quase insuportável porque faz visualizar o que era praticado de hediondo nos porões de um regime que a grande imprensa brasileira incensou e com o qual colaborou durante boa parte da época em que vigeu até que descobrisse que ninguém ganha com ditaduras a não ser os próprios ditadores, pois nunca precisam respeitar as alianças que fazem já que têm um poder inquestionável e incontrastável com qualquer contrapeso democrático como a Justiça, por exemplo.
Pretendo poupar o leitor dos horrores que Dilma relatou porque, de domingo para segunda-feira, durante o sono, tive pesadelos com aqueles detalhes macabros. Todavia, escrevo porque os pesadelos não ocorreram só por isso. Na verdade, o tipo de tortura que policiais e militares aplicaram naquela menina de 19 anos entre 1970 e 1972, há cerca de quarenta anos, não foi o que de principal me fez acordar com o coração batendo forte e o suor escorrendo pelas têmporas.
Uma espécie de curiosidade mórbida fez com que, no domingo, após ler em vários portais e blogs a matéria que saiu nos dois jornais supracitados, resolvesse ler, também, os comentários a ela. O teor do que dezenas, talvez centenas de pessoas escreveram é digno de um filme de terror.
Também pretendo poupar o leitor do tipo de comentário que essas “pessoas” fizeram em blogs das Organizações Globo ou em portais como os de Terra, UOL, Veja etc. sobre o sofrimento físico que Dilma relatou, há mais de uma década, que sofreu durante o regime militar. Basta dizer que continham de uma insensibilidade desumana diante da imagem que aquela matéria produziu de uma bela menina de 19 anos sendo torturada com requintes de crueldade até verdadeiro prazer sombrio de chocar as pessoas.
Em vez disso, relato o que tentei fazer para purgar aqueles sentimentos e que acabou desembocando neste texto. Ao chegar ao escritório, na manhã posterior ao pesadelo, tentei, pela enésima vez, conversar sobre a ditadura com um conhecido já idoso que a viveu como vítima. E, mais uma vez, ele se negou a falar do assunto.
Apesar de lhe explicar que precisava escrever para agravar elementos que estão ironizando e até comemorando o sofrimento a que, como Dilma, fora submetido um dia, respondeu, apenas, que não queria saber de nada porque, à diferença de muitos dos que passaram o que passou, não pretendia se deixar torturar de novo.
Diante de tal argumento, não havia o que dizer. Quedou-me a alternativa de encerrar respeitosamente a conversa com um lacônico “entendo…”.
Sobreveio, assim, reflexão sobre o grau de sofrimento que a relativização, a ironia ou até a comemoração do sofrimento das vítimas da ditadura deveria provocar nas que sobreviveram. Se eu, que não estive entre as vítimas, tenho pesadelos após ler sobre o que era praticado contra belas meninas idealistas, contra idosos, religiosos, estudantes e, sobretudo, contra pessoas que nada mais fizeram além de discordar do regime de exceção, imaginei o que estaria se passando na alma de quem foi vitimado.
Nesse aspecto, lembrei-me de evento de que participei na semana passada. Estive em audiência pública na Assembléia Legislativa de São Paulo em que o Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, proferiu aula magna sobre o período autoritário que se abateu sobre este país e sobre as providências que o Estado brasileiro está tomando para ressarcir, moral e materialmente, as vítimas do… Estado brasileiro.
A mesa de palestrantes de que o doutor Paulo participou contou, por exemplo, com vítimas da ditadura como Ivan Seixas, hoje presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), que, aos 16 anos, viu o pai ser trucidado pela ditadura, tendo chegado a ler a notícia de sua morte em jornal coligado ao Grupo Folha antes mesmo de ele ser assassinado.
Durante a audiência a platéia também pôde se manifestar. Eu mesmo fiz ao doutor Paulo uma questão sobre o comportamento da mídia em relação ao período autoritário. Mas isso não importa, agora. Foi Rose Nogueira, presidente da Organização Tortura Nunca Mais, que emocionou a todos. Ela deixou ver um fato que não chega a ser surpreendente, mas que exaspera.
Rose não falou do período de exceção ou do que fazer no futuro não só para indenizar ou reparar os crimes do Estado naquele período da história, mas para impedir que algo similar àquele horror volte a ocorrer. Ela, simplesmente, leu uma poesia. Como um lenitivo à própria alma que a cada dia, a cada noite, revive aqueles momentos – muitos deles intermináveis, que duraram anos -, Rose declamou.
Antes de escrever este texto, consegui visualizar seu olhar do alto daquela tribuna naquela Casa Legislativa. Imaginei-a lendo os comentários desumanos sobre a tortura da companheira Dilma e suportando as mentiras que a imprensa que ajudou a torturá-la ainda difunde e, de repente, o termo Comissão da Verdade fez todo sentido.
A ditadura ainda tortura Roses, Dilmas e Ivans. Daquele passado remoto, coloca-lhas as almas no pau-de-arara a cada vez que seus descendentes mentem descarada e impiedosamente, como quando pretendem criar “dois lados” que teriam cometido crimes de lesa-humanidade naquele período, quando o que houve de erros praticados pelo lado dos que resistiram ao regime ilegal que estuprou a vontade democrática dos brasileiros restringiu-se a casos isolados.
No último domingo, por exemplo, a concessão ilegal de espaço na tevê pública de São Paulo que o governo do Estado deu a um daqueles jornais que colaboraram com a ditadura, a Folha de São Paulo, torturou os sobreviventes da ditadura e amigos e familiares deles ou dos que não resistiram. A tal “TV Folha” apresentou matéria sobre supostos crimes praticados pela resistência à ditadura.
De fato, em algum momento ocorreram alguns poucos casos em que a resistência à ditadura militar matou quem colaborou com a ditadura ou integrou um regime de exceção que tanto aprisionava o Brasil que o impedia de escolher seu governo nas urnas. Todavia, o homem são entende que se o Estado desencadeia uma era de horror em que belas meninas de 19 anos são torturadas, desfiguradas, estupradas e até assassinadas, evidentemente que alguém pode perder a cabeça.
Contudo, a conta que a matéria da “TV Folha” apresentou dá bem a dimensão de como os excessos da resistência à ditadura foram isolados: o jornal buscou, buscou, mas só encontrou 4 (quatro!) casos, enquanto que, entre mortos e desaparecidos formais do lado que resistiu à ditadura, as baixas chegam às centenas, sem falar dos muitos torturados, perseguidos e encarcerados sem justa causa que sobreviveram para contar a história, tais como Dilma, Rose ou Ivan.
A tese de Agripino era a de que lera declaração pretérita de Dilma de que mentira aos torturadores quando fora presa durante a ditadura militar e de que, por isso, poderia estar mentindo também agora ao negar a confecção de um “dossiê” contra FHC que jamais se comprovou ter existido, assim como o grampo sem áudio do Gilmar Mendes e de outras invenções que o esquema Veja-Cachoeira produziu ao longo da década passada.
Cortemos para o tempo presente.
No fim de semana, os jornais Estado de Minas e Correio Brasiliense publicaram relato que Dilma fez em 2001 em entrevista a Conselho de Direitos Humanos mineiro que o ex-presidente Itamar Franco criou para definir reparações a vítimas do regime militar no Brasil.
Note-se, assim, que não se tratou de uma jogada política que alguns andaram especulando que pretenderia vitimizar a presidente da República de forma a angariar simpatias a ela, até porque Dilma não está precisando de estratégias extremadas nesse sentido, haja vista que sua popularidade está no auge, batendo todos os recordes desde que assumiu o cargo.
Dilma fez aquele relato há mais de uma década e ele repercutiu internacionalmente no fim de semana após ser difundido por dois jornais absolutamente insuspeitos de serem simpáticos ao governo federal, pois um escreve o que Aécio Neves manda e o outro integra o que se convencionou chamar de Partido da Imprensa Golpista (PIG), um conluio entre impérios de comunicação e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – ou, ao menos, as suas principais lideranças.
Suponho que todos os que se interessam por política, que são os que estão lendo este texto agora, já saibam do teor do relato de Dilma sobre as sevícias que verdugos do regime militar praticaram contra si, verdugos que tal regime encarregou de extrair informações daquela bela jovem de 19 anos, de classe média, esclarecida, estudada, branca e de ascendência européia que não tinha motivos escusos para se envolver na política brasileira, tendo apenas, então, ideais libertários que a tantos como ela envolveram naqueles anos trágicos de nossa história.
O relato de Dilma é quase insuportável porque faz visualizar o que era praticado de hediondo nos porões de um regime que a grande imprensa brasileira incensou e com o qual colaborou durante boa parte da época em que vigeu até que descobrisse que ninguém ganha com ditaduras a não ser os próprios ditadores, pois nunca precisam respeitar as alianças que fazem já que têm um poder inquestionável e incontrastável com qualquer contrapeso democrático como a Justiça, por exemplo.
Pretendo poupar o leitor dos horrores que Dilma relatou porque, de domingo para segunda-feira, durante o sono, tive pesadelos com aqueles detalhes macabros. Todavia, escrevo porque os pesadelos não ocorreram só por isso. Na verdade, o tipo de tortura que policiais e militares aplicaram naquela menina de 19 anos entre 1970 e 1972, há cerca de quarenta anos, não foi o que de principal me fez acordar com o coração batendo forte e o suor escorrendo pelas têmporas.
Uma espécie de curiosidade mórbida fez com que, no domingo, após ler em vários portais e blogs a matéria que saiu nos dois jornais supracitados, resolvesse ler, também, os comentários a ela. O teor do que dezenas, talvez centenas de pessoas escreveram é digno de um filme de terror.
Também pretendo poupar o leitor do tipo de comentário que essas “pessoas” fizeram em blogs das Organizações Globo ou em portais como os de Terra, UOL, Veja etc. sobre o sofrimento físico que Dilma relatou, há mais de uma década, que sofreu durante o regime militar. Basta dizer que continham de uma insensibilidade desumana diante da imagem que aquela matéria produziu de uma bela menina de 19 anos sendo torturada com requintes de crueldade até verdadeiro prazer sombrio de chocar as pessoas.
Em vez disso, relato o que tentei fazer para purgar aqueles sentimentos e que acabou desembocando neste texto. Ao chegar ao escritório, na manhã posterior ao pesadelo, tentei, pela enésima vez, conversar sobre a ditadura com um conhecido já idoso que a viveu como vítima. E, mais uma vez, ele se negou a falar do assunto.
Apesar de lhe explicar que precisava escrever para agravar elementos que estão ironizando e até comemorando o sofrimento a que, como Dilma, fora submetido um dia, respondeu, apenas, que não queria saber de nada porque, à diferença de muitos dos que passaram o que passou, não pretendia se deixar torturar de novo.
Diante de tal argumento, não havia o que dizer. Quedou-me a alternativa de encerrar respeitosamente a conversa com um lacônico “entendo…”.
Sobreveio, assim, reflexão sobre o grau de sofrimento que a relativização, a ironia ou até a comemoração do sofrimento das vítimas da ditadura deveria provocar nas que sobreviveram. Se eu, que não estive entre as vítimas, tenho pesadelos após ler sobre o que era praticado contra belas meninas idealistas, contra idosos, religiosos, estudantes e, sobretudo, contra pessoas que nada mais fizeram além de discordar do regime de exceção, imaginei o que estaria se passando na alma de quem foi vitimado.
Nesse aspecto, lembrei-me de evento de que participei na semana passada. Estive em audiência pública na Assembléia Legislativa de São Paulo em que o Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, proferiu aula magna sobre o período autoritário que se abateu sobre este país e sobre as providências que o Estado brasileiro está tomando para ressarcir, moral e materialmente, as vítimas do… Estado brasileiro.
A mesa de palestrantes de que o doutor Paulo participou contou, por exemplo, com vítimas da ditadura como Ivan Seixas, hoje presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), que, aos 16 anos, viu o pai ser trucidado pela ditadura, tendo chegado a ler a notícia de sua morte em jornal coligado ao Grupo Folha antes mesmo de ele ser assassinado.
Durante a audiência a platéia também pôde se manifestar. Eu mesmo fiz ao doutor Paulo uma questão sobre o comportamento da mídia em relação ao período autoritário. Mas isso não importa, agora. Foi Rose Nogueira, presidente da Organização Tortura Nunca Mais, que emocionou a todos. Ela deixou ver um fato que não chega a ser surpreendente, mas que exaspera.
Rose não falou do período de exceção ou do que fazer no futuro não só para indenizar ou reparar os crimes do Estado naquele período da história, mas para impedir que algo similar àquele horror volte a ocorrer. Ela, simplesmente, leu uma poesia. Como um lenitivo à própria alma que a cada dia, a cada noite, revive aqueles momentos – muitos deles intermináveis, que duraram anos -, Rose declamou.
Antes de escrever este texto, consegui visualizar seu olhar do alto daquela tribuna naquela Casa Legislativa. Imaginei-a lendo os comentários desumanos sobre a tortura da companheira Dilma e suportando as mentiras que a imprensa que ajudou a torturá-la ainda difunde e, de repente, o termo Comissão da Verdade fez todo sentido.
A ditadura ainda tortura Roses, Dilmas e Ivans. Daquele passado remoto, coloca-lhas as almas no pau-de-arara a cada vez que seus descendentes mentem descarada e impiedosamente, como quando pretendem criar “dois lados” que teriam cometido crimes de lesa-humanidade naquele período, quando o que houve de erros praticados pelo lado dos que resistiram ao regime ilegal que estuprou a vontade democrática dos brasileiros restringiu-se a casos isolados.
No último domingo, por exemplo, a concessão ilegal de espaço na tevê pública de São Paulo que o governo do Estado deu a um daqueles jornais que colaboraram com a ditadura, a Folha de São Paulo, torturou os sobreviventes da ditadura e amigos e familiares deles ou dos que não resistiram. A tal “TV Folha” apresentou matéria sobre supostos crimes praticados pela resistência à ditadura.
De fato, em algum momento ocorreram alguns poucos casos em que a resistência à ditadura militar matou quem colaborou com a ditadura ou integrou um regime de exceção que tanto aprisionava o Brasil que o impedia de escolher seu governo nas urnas. Todavia, o homem são entende que se o Estado desencadeia uma era de horror em que belas meninas de 19 anos são torturadas, desfiguradas, estupradas e até assassinadas, evidentemente que alguém pode perder a cabeça.
Contudo, a conta que a matéria da “TV Folha” apresentou dá bem a dimensão de como os excessos da resistência à ditadura foram isolados: o jornal buscou, buscou, mas só encontrou 4 (quatro!) casos, enquanto que, entre mortos e desaparecidos formais do lado que resistiu à ditadura, as baixas chegam às centenas, sem falar dos muitos torturados, perseguidos e encarcerados sem justa causa que sobreviveram para contar a história, tais como Dilma, Rose ou Ivan.
Parabéns Rodrigo pelo texto, fiquei bem emocionado.. eu e muitos brasileiros estamos deixando de ler a imprensa do PIG porque cansamos de ver o parcialismo dela: Folha; globo; Estadão; e a Veja/Cachoeira.
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