segunda-feira, 25 de junho de 2012

O golpe asséptico e suas ameaças

Por Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes:

O golpe de Estado contra o presidente eleito do Paraguai, para além dos graves danos que causa à evolução da incipiente democracia do país – que até 1989 esteve sob a ditadura de Stroessner e desde então só elegera mandatários do partido de centro-direita Colorado, com exceção de Lugo -, abre um precedente perigoso e potencialmente ameaçador à normalidade democrática na América do Sul.


Tal constatação é corroborada por três fatores principais: o primeiro é a natureza cosmética da deposição de Lugo, um golpe de Estado travestido de impeachment, não obstante tratar-se de mera pantomima jurídica, com o raio de ação e o tempo disponível à defesa do acusado drasticamente limitados e armado com acusações baseadas em platitudes sem definição legal ou critérios objetivos de averiguação, tais como “mau exercício do governo”.

Guess who's coming to dinner?

A velocidade recorde com que os Estados Unidos, confirmando sua autoatribuída vocação de país defensor da democracia, reconheceram o novo governo de um golpista que atende pela sugestiva alcunha de Franco é um segundo elemento a caracterizar a quartelada civil paraguaia como ameaçadora à soberania sul-americana. O reativamento da Quarta Frota, as evocações cada vez mais frequentes à Doutrina Monroe e a tentativa recente - e malsucedida – de fincar uma base militar no Equador são representativas da atenção e das intenções do país mais bélico do mundo para com a região (leia texto de Azenha sobre interesses dos EUA no golpe).

Tanto mais pelo crescimento que ora se verifica, no subcontinente, no número de regimes, democraticamente eleitos, alinhados à centro-esquerda ou à esquerda bolivariana, ambos patrocinadores, em maior ou menor grau, de projetos políticos que implicam tanto na recusa à ALCA quanto ao fim do alinhamento automático e preferencial com os EUA.

A tal configuração, que forma o último item de nossa lista tríplice, a quartelada que depôs Lugo (foto) se contrapõe como sugestão às forças conservadoras sul-americanas ora na oposição – e a seus parceiros transnacionais – de uma promissora novidade: a armação de cenários golpistas aparentemente assépticos, sem tanques na rua, a partir do conluio entre oligarquia, parlamentares e mídia.

Reações
Ante tal quadro, duas medidas se impõem como mais do que urgentes, necessárias: a reação ao golpe paraguaio, como forma de revertê-lo, restituindo a ordem constitucional; e a tomada das devidas precauções para impedir que conspirações similares tenham lugar nos demais países da América Latina.

Quanto à reação, é forçoso constatar que a janela de reversão imediata do golpe estreita-se à medida que o tempo passa, sobretudo se se leva em conta a rapidez com que ditas potências imperialistas do hemisfério norte vêm reconhecendo o novo regime. Mesmo com a reação enfática de Argentina, Venezuela e Equador – e com nota oficial firme e ponderada do governo brasileiro – a possibilidade de ver Lugo reempossado já nos próximos dias depende agora de uma combinação extraordinária de sucessos.

De qualquer forma, hoje ou em um futuro próximo, a reversão do quadro dependerá de uma ação coordenada entre os países com governos progressistas na região e as forças legalistas paraguaias visando, a um tempo, esvaziar a autoridade dos golpistas e construir meios de recondução e bases institucionais de sustentação a Lugo. Além do enfrentamento com os próprios golpistas e com a elite paraguaia, tal operação implica numa batalha surda com os EUA e em deparar-se com delicadas e potencialmente explosivas questões - inclusive algumas diretamente relativas ao Brasil, como no caso dos brasiguaios e dos “sacoleiros” - derivadas da permeabilidade das fronteiras paraguaias e do protagonismo da questão agrária no país, tema este analisado por Chico Bicudo.

Medidas preventivas
Já em relação a medidas preventivas contra esse tipo de golpe low profile, afiguram-se urgentes ações em três frentes: no âmbito sul-americano, numa interação coordenada entre os governos progressistas da região no sentido de, com ações de inteligência, antecipá-las e as neutralizar e de, se mesmo assim efetivadas, agir pronta e conjuntamente para esvaziá-las e as reverter.

Já em termos nacionais, a mais efetiva medida contra anomalias golpistas é o reforço das instituições democráticas, notadamente assegurar-se de dar à Justiça, ao Legislativo e ao Executivo não apenas as melhores condições para o exercício de suas funções – e isso inclui a adoção dos métodos mais democráticos para eleição ou seleção dos cidadãos e cidadãs melhor capacitados a desempenhar tais funções -, mas a preservação do equilíbrio de relações o mais harmoniosas entre os três poderes.

Ademais -e ainda no âmbito das medidas institucionais anti-golpismo - a implementação do que Norberto Bobbio denominou Direitos Humanos de quarta geração acaba por implicar, além de numa vacina anti-golpismo (não fosse este, por definição, um ato múltiplo de violação de DHs), na necessidade de efetivação do esforço de superação positiva dos meios de participação popular na democracia representativa convencional, com o recurso a uma interação maior, mais frequente e mais efetiva dos cidadãos com os poderes constituídos, para além do momento de eleição.

Por fim, a terceira frente de ação preventiva diz respeito à mídia – talvez o mais urgente e danoso dos elementos potencialmente golpistas do cenário brasileiro, hoje.

O fator mídia
O comportamento da mídia brasileira quanto ao golpe em Assunção, em sua quase totalidade, veio a corroborar sua posição de defensora dos interesses das forças conservadoras, obedientes às regras democráticas ou não. As falas de personagens como Arnaldo Jabor ou Merval Pereira no sentido de, mais do que legitimar, enaltecer o golpe acabam, por sua falta de coerência e excesso de parcialidade, a deixar ainda mais evidente que eles – como tantos de seus colegas com assento na mídia corporativa - não passam de ventríloquos travestidos de jornalistas, a vocalizar um texto ditado pelo mercado e pela corporação que lhes paga o salário. E, assim, o apreço que tais corporações nutrem pela democracia se torna evidente.

Por outro lado, como demonstrado com o brilho costumeiro e de forma cabal por Dênis de Moraes no último encontro nacional de blogueiros, o Brasil encontra-se em um estágio consideravelmente mais atrasado do que vizinhos como Venezuela, Equador e Argentina no que concerne à regulamentação e à decorrente diversificação político-ideológica da mídia [em breve farei um post específico sobre sua apresentação no evento.] É preciso muita indulgência para não reconhecer que os governos Lula, com sua resistência passiva, e Dilma, com seus esforços de cooptação, se esforçaram pouco e avançaram menos ainda na democratização e na defesa da regulamentação da mídia.

Portanto, a questão midiática certamente se mostraria problemática na eventualidade agourenta de um dia sofrermos uma tentativa de golpe aos moldes em questão – dados o grau de penetrabilidade capilar interna de parte mídia brasileira e sua conformação como corporação transnacional, com um peso e um potencial danoso exponencialmente maiores do que ora se verifica no golpe no Paraguai. Desnecessário assinalar que este forma mais uma entre tantas razões a evidenciar a urgência e a centralidade da questão midiática no Brasil, e o quanto esta demanda uma imediata e condizente atenção.

Diferença de escala
Embora seja prudente tomar todas as medidas preventivas contra a disseminação de tal espécie de golpe, é preciso ter claro, no que nos tange diretamente enquanto nação, que o Brasil não é o Paraguai.

Pois uma análise sem preconceitos mas também sem ilusões mostra-nos, de forma clara, que, comparativamente, a situação institucional é bem mais frágil no país vizinho, devido a fatores diversos - em algum grau passíveis de serem atribuídas a uma herança histórica para a qual o próprio Brasil contribuiu, quase exterminando, com sangue escravo e a soldo da Inglaterra, a população masculina adulta paraguaia, num genocídio que muito deveria nos envergonhar (e que, por isso mesmo, alguns revisionistas tentam a todo custo desmentir).

De qualquer maneira, o fato é que a fragilidade comparativa do país vizinho é hoje gritante no tamanho da economia e na decorrente volubilidade econômica; na cultura política construída num contexto de redemocratização tardia e precária, virtualmente monopolizada pela centro-direita e marcada por episódios golpistas mais ou menos recentes - além, sobretudo, da pobreza e da miséria brutais as quais está submetida, sem colchões assistenciais efetivos, a grande maioria da população paraguaia.

Tais constatações, não obstante lamentáveis, se contrapostas às mostras de resilência da democracia brasileira nas últimas décadas permitem, mesmo reconhecendo que esta está longe de poder ser considerada avançada, identificar diferenças de escala entre um e outro modelo político-institucional e de estágio entre graus de evolução democrática..

No pasarán
Esta é uma razão a mais para que, embora, como já dito, devamos estar atentos para evitar ao máximo a possibilidade de que algo similar ao golpe paraguaio tenha lugar aqui, o novo modelo de insurgência das elites não possa servir para a defesa de uma postura ainda mais cordata e indulgente da esquerda em relação às forças conservadoras nacionais, impulsionada por tais temores golpistas.

Seria, na democracia, o pior dos cenários: na já excessivamente contemporizadora e, no sentido buarqueano do termo, cordial política brasileira, a inoculação do medo – e, pior, do medo golpista – como forma de impor alianças mais dilatadas entre progressistas e conservadores. Tal feito significaria não apenas a sujeição ainda maior a demandas regressivas, mas, assim, a promoção espontânea de um processo de indistinção entre esquerda e direita que só tende a beneficiar esta, enquanto descaracteriza aquela. (Não é mera coincidência que o golpe no Paraguai venha sendo utilizado nas redes sócias para justificar aliança do PT de São Paulo com Paulo Maluf, o que é o cúmulo do oportunismo – e não só porque o político em questão é, ele mesmo, produto de uma ditadura militar.)

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