Por Tadeu Breda, na Rede Brasil Atual:
“Existe um profundo descompasso entre o que se ouve na televisão e o que é compartilhado nas redes sociais, blogs e meios independentes do México”, diz Aarón Flores. Como milhões de mexicanos, todos os dias, Aarón sente na pele, nos olhos e nos ouvidos a falta de correspondência entre o discurso transmitido pela grande mídia do país e a vida dos cidadãos comuns.
Aarón é comunicador, mas não a tempo completo. Nas horas vagas, trabalha voluntariamente para a Rádio Chinelo, uma emissora comunitária de Cuernavaca, estado de Morelos, região central do México. A audiência dos "chineleiros" é baixa, mas Aarón tem motivos pra comemorar: o debate sobre manipulação midiática entrou com força na campanha presidencial mexicana.
As urnas se abrem ao voto popular no domingo, 1° de julho. Ao lado da Guerra ao Narcotráfico, as mentiras contadas diariamente pelas grandes empresas de comunicação e os conluios entre emissoras e candidatos à presidência tomaram de assalto a agenda pública. Os mais otimistas acreditam que a discussão poderá conquistar eleitores indecisos e até mesmo mudar os resultados do pleito, que parecia estar decidido desde o ano passado.
O espectro radioelétrico que permite a transmissão de sinais de rádio e televisão é bastante concentrado no México – mais do que no Brasil. Dois grandes conglomerados detêm 95% das emissoras. O homem mais rico do mundo, Carlos Slim, é um dos latifundiários da mídia mexicana. Comanda a Telmex América Móvil, que nasceu como uma companhia telefônica, mas foi se expandindo junto com o avanço e a convergência tecnológica. Outro representante da concentração é Emílio Azcárraza, dono da Televisa, o maior e mais influente canal de tevê do país.
“É um duopólio que determina os conteúdos que serão consumidos por uma ampla parcela da população”, analisa Aarón. “No México, a mídia deixou de ser o que conhecemos como 'quarto poder' para converter-se num suprapoder. Há anos entraram no Congresso, favorecendo deputados e senadores que propusessem reformas e projetos de lei segundo seus interesses. Agora, querem definir quem será o próximo presidente da República.”
O comunicador da Rádio Chinelo não tirou essas acusações da cartola. Desde o último mês de maio, denúncias nacionais e internacionais colocaram o duopólio na berlinda. E tudo começou com uma inocente visita do favorito nas pesquisas presidenciais, Enrique Peña Nieto, ao campus da Universidade Ibero-Americana, na Cidade do México.
Era pra ser um evento de campanha, mas o representante do Partido Revolucionário Institucional (PRI) foi criticado por alguns estudantes devido à sua atuação como governador do Estado do México. Em 2006, Peña Nieto ordenou que a polícia reprimisse um protesto na cidade de Atenco. Duas pessoas morreram, 40 mulheres foram estupradas e 250 acabaram presos. Os alunos da Ibero lembraram o episódio, o candidato não gostou e fugiu.
Não demorou para que os grandes canais de televisão mexicanos, Televisa e TV Azteca, comprassem a versão de Peña Nieto e difundissem a informação de que o incidente não passava de uma ação orquestrada por inimigos políticos infiltrados, representados por um grupelho de 131 jovens. Saiu na telinha, mas era mentira. Os estudantes – que haviam protestado espontaneamente – se viram no meio da armação e resolveram difundir um vídeo no YouTube dizendo que ninguém os havia pagado para criticar Peña Nieto, que eram alunos devidamente matriculados e tinham opinião própria. Estava fundado o movimento #YoSoy132, nascido das entranhas da manipulação midiática mexicana.
“A iniciativa estudantil foi resultado de uma leitura equivocada da realidade por parte do PRI e dos canais de tevê, o que é apenas um reflexo da dicotomia que existe entre o que pensam os jovens mexicanos e o que a Televisa pensa que os jovens devem pensar”, contextualiza Aarón. Quando não havia internet, esse golpe à realidade dos fatos, aplicado pela mídia em conluio com um partido político, passaria batido por todos. Agora que aproximadamente 40% dos mexicanos estão conectados, a versão dos estudantes pôde ser divulgada quase que imediatamente – e com uma audiência bem maior que a da emissora.
Enquanto o #YoSoy132 ganhava atenção da sociedade, organizava assembleias universitárias e se expandia para além do movimento estudantil, o jornal britânico The Guardian publicou documentos que supostamente provavam uma parceria entre Enrique Peña Nieto e Televisa firmada em 2006, mesma época do massacre de Atenco. A emissora estaria sendo paga para privilegiá-lo em noticiários e programas de entretenimento. E também para criticar um de seus maiores desafetos, Andrés Manuel López Obrador, que na época disputava – como agora – as eleições presidenciais.
No dia 27 de junho, a três dias do pleito, o The Guardian voltou a veicular evidências do conluio entre PRI, Peña Nieto e Televisa. Desta vez, o jornal teve acesso a contratos assinados há dois anos entre diretores do partido e funcionários do grupo empresarial comandado por Emílio Azcárraga. Pelo acordo, a Televisa e suas subsidiárias deveriam produzir material alabando o priísta e peças midiáticas jocosas sobre erros políticos do Partido Ação Nacional (PAN), que atualmente ocupa a presidência.
“Nem seria necessário comprovar as denúncias: é evidente que existe um viés informativo muito forte a favor de Enrique Peña Nieto, e foi esse viés que mobilizou o protesto do movimento #YoSoy132”, atesta John Ackerman, pesquisador do Centro de Investigações Jurídicas da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). “Qualquer um que acompanhe a cobertura eleitoral verá claramente que não existe pluralidade e objetividade.”
Não é coincidência, portanto, que uma das primeiras exigências do #YoSoy132 tenha sido eleições limpas e transparentes. “Todas as vezes em que o fantasma da fraude eleitoral recaiu sobre a sociedade mexicana, e também durante os episódios mais críticos do país, os meios de comunicação foram utilizados pelos poderes políticos e econômicos para ocultar a verdade”, recorda Serch, comunicador da Rádio livre Zapote, da Cidade do México. “Precisávamos de um movimento a favor da verdade.”
Os resultados de ao menos duas eleições presidenciais mexicanas são profundamente contestados no país até hoje. Em 1988, o candidato do Partido da Revolução Democrática (PRD), Cuahutémoc Cárdenas, teria sido roubado por Carlos Salinas de Gortari, do PRI, sigla que ocupou o Executivo federal ininterruptamente entre 1929 e 2000. Em 2006, foi a vez do PAN, auxiliado pelos meios de comunicação, manipular os resultados das urnas contra o PRD – e dar a vitória a Felipe Calderón. “Seis anos depois, cerca de 40% da população ainda desconfia da lisura do pleito”, contabiliza John Ackerman, da Unam.
Daí que a democratização da comunicação seja, pra muita gente, uma das necessidades mais urgentes do país. “Seria um grande avanço reconhecer na legislação mexicana que a comunicação livre e comunitária é um instrumento para favorecer o bem comum contra a voracidade econômica e os programas de baixa qualidade das emissoras tradicionais”, explica Serch.
O sociólogo e ativista Alij Anaya, que milita na Rádio Chinelo de Cuernavaca, acredita que uma reforma midiática no México poderia ter apenas uma lei: “Toda tentativa de comunicação popular, comunitária ou autogestionada não tem porquê pedir permissão para existir”, resume. Com ou sem autorização, os meios independentes pouco a pouco vão se espalhando pelo país.
Se em 2006, quando da última denúncia grave de fraude eleitoral, havia no máximo vinte iniciativas radiofônicas circulando pela internet, hoje em dia Aarón Flores constata a existência de centenas. “É claro que essa proliferação gera algum tipo de contraponto ao discurso dominante”, acredita.
Enquanto o espectro radioelétrico mexicano não passa por uma reforma agrária, são as redes sociais que vão garantindo a liberdade de expressão dos cidadãos – pelo menos àqueles que têm acesso a computadores e internet. “Estão sobrepassando os ritmos, as velocidades e os fluxos tradicionais de informação e organização”, constata Alij Anaya.
“Se a possibilidade de criar, informar e compartilhar é direta e já não precisa passar por qualquer filtro, o fenômeno pode tornar-se incontrolável”, sugere. Sempre e quando esse descontrole trabalhar contra as fraudes eleitorais, a concentração de poder político e à manipulação informativa, a tão combalida democracia mexicana – todos concordam – só tem a agradecer.
Aarón é comunicador, mas não a tempo completo. Nas horas vagas, trabalha voluntariamente para a Rádio Chinelo, uma emissora comunitária de Cuernavaca, estado de Morelos, região central do México. A audiência dos "chineleiros" é baixa, mas Aarón tem motivos pra comemorar: o debate sobre manipulação midiática entrou com força na campanha presidencial mexicana.
As urnas se abrem ao voto popular no domingo, 1° de julho. Ao lado da Guerra ao Narcotráfico, as mentiras contadas diariamente pelas grandes empresas de comunicação e os conluios entre emissoras e candidatos à presidência tomaram de assalto a agenda pública. Os mais otimistas acreditam que a discussão poderá conquistar eleitores indecisos e até mesmo mudar os resultados do pleito, que parecia estar decidido desde o ano passado.
O espectro radioelétrico que permite a transmissão de sinais de rádio e televisão é bastante concentrado no México – mais do que no Brasil. Dois grandes conglomerados detêm 95% das emissoras. O homem mais rico do mundo, Carlos Slim, é um dos latifundiários da mídia mexicana. Comanda a Telmex América Móvil, que nasceu como uma companhia telefônica, mas foi se expandindo junto com o avanço e a convergência tecnológica. Outro representante da concentração é Emílio Azcárraza, dono da Televisa, o maior e mais influente canal de tevê do país.
“É um duopólio que determina os conteúdos que serão consumidos por uma ampla parcela da população”, analisa Aarón. “No México, a mídia deixou de ser o que conhecemos como 'quarto poder' para converter-se num suprapoder. Há anos entraram no Congresso, favorecendo deputados e senadores que propusessem reformas e projetos de lei segundo seus interesses. Agora, querem definir quem será o próximo presidente da República.”
O comunicador da Rádio Chinelo não tirou essas acusações da cartola. Desde o último mês de maio, denúncias nacionais e internacionais colocaram o duopólio na berlinda. E tudo começou com uma inocente visita do favorito nas pesquisas presidenciais, Enrique Peña Nieto, ao campus da Universidade Ibero-Americana, na Cidade do México.
Era pra ser um evento de campanha, mas o representante do Partido Revolucionário Institucional (PRI) foi criticado por alguns estudantes devido à sua atuação como governador do Estado do México. Em 2006, Peña Nieto ordenou que a polícia reprimisse um protesto na cidade de Atenco. Duas pessoas morreram, 40 mulheres foram estupradas e 250 acabaram presos. Os alunos da Ibero lembraram o episódio, o candidato não gostou e fugiu.
Não demorou para que os grandes canais de televisão mexicanos, Televisa e TV Azteca, comprassem a versão de Peña Nieto e difundissem a informação de que o incidente não passava de uma ação orquestrada por inimigos políticos infiltrados, representados por um grupelho de 131 jovens. Saiu na telinha, mas era mentira. Os estudantes – que haviam protestado espontaneamente – se viram no meio da armação e resolveram difundir um vídeo no YouTube dizendo que ninguém os havia pagado para criticar Peña Nieto, que eram alunos devidamente matriculados e tinham opinião própria. Estava fundado o movimento #YoSoy132, nascido das entranhas da manipulação midiática mexicana.
“A iniciativa estudantil foi resultado de uma leitura equivocada da realidade por parte do PRI e dos canais de tevê, o que é apenas um reflexo da dicotomia que existe entre o que pensam os jovens mexicanos e o que a Televisa pensa que os jovens devem pensar”, contextualiza Aarón. Quando não havia internet, esse golpe à realidade dos fatos, aplicado pela mídia em conluio com um partido político, passaria batido por todos. Agora que aproximadamente 40% dos mexicanos estão conectados, a versão dos estudantes pôde ser divulgada quase que imediatamente – e com uma audiência bem maior que a da emissora.
Enquanto o #YoSoy132 ganhava atenção da sociedade, organizava assembleias universitárias e se expandia para além do movimento estudantil, o jornal britânico The Guardian publicou documentos que supostamente provavam uma parceria entre Enrique Peña Nieto e Televisa firmada em 2006, mesma época do massacre de Atenco. A emissora estaria sendo paga para privilegiá-lo em noticiários e programas de entretenimento. E também para criticar um de seus maiores desafetos, Andrés Manuel López Obrador, que na época disputava – como agora – as eleições presidenciais.
No dia 27 de junho, a três dias do pleito, o The Guardian voltou a veicular evidências do conluio entre PRI, Peña Nieto e Televisa. Desta vez, o jornal teve acesso a contratos assinados há dois anos entre diretores do partido e funcionários do grupo empresarial comandado por Emílio Azcárraga. Pelo acordo, a Televisa e suas subsidiárias deveriam produzir material alabando o priísta e peças midiáticas jocosas sobre erros políticos do Partido Ação Nacional (PAN), que atualmente ocupa a presidência.
“Nem seria necessário comprovar as denúncias: é evidente que existe um viés informativo muito forte a favor de Enrique Peña Nieto, e foi esse viés que mobilizou o protesto do movimento #YoSoy132”, atesta John Ackerman, pesquisador do Centro de Investigações Jurídicas da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). “Qualquer um que acompanhe a cobertura eleitoral verá claramente que não existe pluralidade e objetividade.”
Não é coincidência, portanto, que uma das primeiras exigências do #YoSoy132 tenha sido eleições limpas e transparentes. “Todas as vezes em que o fantasma da fraude eleitoral recaiu sobre a sociedade mexicana, e também durante os episódios mais críticos do país, os meios de comunicação foram utilizados pelos poderes políticos e econômicos para ocultar a verdade”, recorda Serch, comunicador da Rádio livre Zapote, da Cidade do México. “Precisávamos de um movimento a favor da verdade.”
Os resultados de ao menos duas eleições presidenciais mexicanas são profundamente contestados no país até hoje. Em 1988, o candidato do Partido da Revolução Democrática (PRD), Cuahutémoc Cárdenas, teria sido roubado por Carlos Salinas de Gortari, do PRI, sigla que ocupou o Executivo federal ininterruptamente entre 1929 e 2000. Em 2006, foi a vez do PAN, auxiliado pelos meios de comunicação, manipular os resultados das urnas contra o PRD – e dar a vitória a Felipe Calderón. “Seis anos depois, cerca de 40% da população ainda desconfia da lisura do pleito”, contabiliza John Ackerman, da Unam.
Daí que a democratização da comunicação seja, pra muita gente, uma das necessidades mais urgentes do país. “Seria um grande avanço reconhecer na legislação mexicana que a comunicação livre e comunitária é um instrumento para favorecer o bem comum contra a voracidade econômica e os programas de baixa qualidade das emissoras tradicionais”, explica Serch.
O sociólogo e ativista Alij Anaya, que milita na Rádio Chinelo de Cuernavaca, acredita que uma reforma midiática no México poderia ter apenas uma lei: “Toda tentativa de comunicação popular, comunitária ou autogestionada não tem porquê pedir permissão para existir”, resume. Com ou sem autorização, os meios independentes pouco a pouco vão se espalhando pelo país.
Se em 2006, quando da última denúncia grave de fraude eleitoral, havia no máximo vinte iniciativas radiofônicas circulando pela internet, hoje em dia Aarón Flores constata a existência de centenas. “É claro que essa proliferação gera algum tipo de contraponto ao discurso dominante”, acredita.
Enquanto o espectro radioelétrico mexicano não passa por uma reforma agrária, são as redes sociais que vão garantindo a liberdade de expressão dos cidadãos – pelo menos àqueles que têm acesso a computadores e internet. “Estão sobrepassando os ritmos, as velocidades e os fluxos tradicionais de informação e organização”, constata Alij Anaya.
“Se a possibilidade de criar, informar e compartilhar é direta e já não precisa passar por qualquer filtro, o fenômeno pode tornar-se incontrolável”, sugere. Sempre e quando esse descontrole trabalhar contra as fraudes eleitorais, a concentração de poder político e à manipulação informativa, a tão combalida democracia mexicana – todos concordam – só tem a agradecer.
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