segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A guinada conservadora de Dilma

Por Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes:

A oportunidade histórica de se apresentar como uma liderança capaz de oferecer uma alternativa de centro-esquerda à hegemonia do receituário neoliberal – panaceia que ora destrói a economia europeia - foi desperdiçada por Dilma Rousseff. Seu governo acaba de acentuar ainda mais, e de forma irreversível, uma guinada conservadora.

Enquanto Lula herdara de Fernando Henrique um país aos cacos, à beira da insolvência, com índices pornográficos de desemprego e baixa atividade econômica, Dilma recebeu um Brasil renovado, recém reestruturado socioeconomicamente - através da diminuição expressiva dos índices de miséria e de pobreza e da ascensão de uma nova classe média – e com uma economia interna vibrante, marcada por inclusão e aumento no consumo e por recordes de baixo desemprego, a qual permitira que a crise mundial fosse aqui sentida (quase) como “uma marolinha”.

Eleita, em tais condições, presidenta de um grande país emergente, potência regional e um dos principais incentivadores do diálogo Sul-Sul, muitos acreditavam que a nova mandatária, livre da “herança maldita” tucana, estava fadada a aprimorar e expandir o legado de Lula, seja - como prometera no discurso de posse - priorizando o muito que se há de fazer na Saúde e na Educação, seja expurgando de vez as políticas de orientação neoliberal que, voltadas à satisfação desse ente caprichoso chamado mercado, tanto mal já causaram ao povo e à economia brasileiros. “Venho para consolidar a obra transformadora do presidente Luis Inácio Lula da Silva”, anunciava a candidata.


Decepção inicial

Já a partir do segundo mês de governo, com a imposição de um duríssimo choque anticíclico – que o futuro confirmaria não apenas desnecessário, mas deletério à saúde econômica do país – tais alvissareiras possibilidades foram dando lugar a um retorno à primazia, no interior da administração, do economicismo mais tacanho, de planilha. Este tem, desde então - e de forma ainda mais intensa nos últimos meses - mantido o governo permanentemente apavorado ante a iminência do agravamento da crise econômica internacional, gerando o que Paulo Kliass, em imperdível artigo na Carta Maior, chama de “síndrome da perda de popularidade”, a qual estaria levando Dilma a agir da forma apressada e improvisada que temos verificado.

Em seu texto, Kliass observa, em relação às pífias consequências advindas do aperto macroeconômico acima referido: “Quando a maioria esperava justamente uma mudança de rota a partir de tais resultados colhidos ao longo do primeiro ano de seu mandato em termos da economia, eis que Dilma inicia 2012 com a mesma lenga-lenga da ortodoxia conservadora: esforço fiscal para geração de superávit primário e contenção de despesas orçamentárias essenciais (…) Apesar de ela ter revelado uma atuação importante no sentido de provocar a reversão da taxa oficial de juros (SELIC), isso só começou a ocorrer muito tarde, a partir de 1 de setembro de 2011” (e, acrescento eu, não conseguiu até agora que tal medida significasse uma redução realmente expressiva do spread que os grandes bancos, com exceção dos estatais, cobram do cidadão comum, notadamente no que concerne a cartão de crédito e cheque especial).

Como decorrência de tal contexto, no lugar do avanço esperado, o que se observa nas áreas sociais desde o início do governo - ressalvados os programas de renda mínima - é, além do agravamento das condições de alguns campi das novas federais, do sucateamento das Defensorias Públicas e da adoção de um programa de ajustes (que, levando dezenas de médicos a pedirem demissão, prejudicou sobremaneira o funcionamento do SUS), é o absoluto desprezo pelos servidores em geral e pelos professores universitários em particular, cuja greve já supera inacreditáveis três meses, sob a intransigência irresponsável do governo.

Direita, volver!
Porém, o ponto culminante da guinada conservadora do governo Dilma, o qual enterra de vez as esperanças de que pudesse contribuir para a constituição de uma alternativa ao neoliberalismo - obstáculo principal aos avanços sociais e à efetivação de uma agenda politicamente avançada - deu-se na semana que passou, com o anúncio de um megaprograma privatista para obras de infraestrutura (rodovias, portos e aeroportos), pelo qual o governo desembolsa, só na primeira fase, referente a estradas, R$133 bilhões à iniciativa privada.

Como observa Kliass, “Se os recursos existem e estão disponíveis, não há razão para oferecê-los graciosamente ao setor privado. O Estado brasileiro teria todas as condições de iniciar os projetos necessários, bastando para isso a sinalização da vontade política por parte da Presidenta”. O governo Dilma prefere, no entanto, ignorar as graves implicações político-ideológicas de tal decisão e se coloca mais uma vez contra o Estado (e seus servidores) enquanto protagonista da economia nacional, apostando, como forma de aprimorar a infraestrutura - mas talvez ainda mais de criar empregos e fermentar a economia – numa espécie de aggiornamento neoliberal do New Deal de Roosevelt, o que é, por si, uma contradição em termos.

Diferenças mínimas
Deve-se reconhecer , para o bem do debate, que, como argumentam muitos defensores do governo, as privatizações (ao estilo FHC) e as concessões (à moda Dilma) não constituem exatamente a mesma coisa, já que as primeiras são para sempre, enquanto as últimas duram várias décadas. Mas, excetuada essa diferença de duração, não há como negar que se trata, nos dois casos, de uma operação privatizante, que segue uma lógica caracteristicamente privatista, ao transferir do Estado para a iniciativa privada a tarefa de executar grandes obras de infraestrutura – e de auferir, para sempre em um caso, durante um longuíssimo período em outro, lucros com isso.

Convém apontar, ainda, que tanto privatizações tucanas quanto “concessões” petistas têm em comum uma original contribuição ao receituário neoliberal à brasileira, na constatação de que grande parte do capital demandado por tais obras advém de dinheiro público – ou seja, o povo paga para construir e pagará para usufruir, mas o lucro ficará com a iniciativa privada. Trata-se do “governo pagar pra capitalista administrar mal, cobrar caro e lucrar sobre um bem que é do povo brasileiro”, como resume “na lata” a blogueira Maria Frô.

Tão importante quanto assinalar essas coincidências, digamos, operacionais entre privatizações tucanas e “concessões” petistas, é atentar para o fato de que a lógica política que orienta ambas é muito similar e, obediente aos preceitos do Consenso de Washington, deriva da mesma ideologia neoliberal que apregoa o protagonismo do mercado como agente econômico e que, se tanto, tolera a limitação do Estado à função reguladora. O retrocesso que um governo dito de centro-esquerda promove ao sucumbir a tal ideologia orientadora de políticas oficiais – a mesma que a oposição à direita que nas urnas derrotou cultivava – é imensurável. Mas não quero me estender neste tema. Tudo o que eu tinha a dizer sobre a agenda privatista do governo Dilma e suas diferenças – ou ausência delas – em relação às privatizações tucanas já o fiz em outro post (link).

Traição eleitoral
Dilma fez toda uma campanha eleitoral condenando as privatizações e os políticos que as promoveram, ao mesmo tempo em que reiterava o compromisso com um Estado atuante e promotor do desenvolvimento do país. Eram críticas fortes, contundentes, que não deixavam margem à dúvida: transferir ao setor privado a administração de áreas estruturais do país, e ainda por cima fazê-lo com dinheiro público, era uma prática condenável do passado, que sua administração não cometeria. Não há, nos discursos de campanha, nenhuma referência à possibilidade de que viesse a adotar um modelo temporário de privatização, que a novilíngua petista prefere chamar de concessão mas que, como já aludido acima, significa, na prática o retorno de um modelo privatista, e com duração assegurada por longas décadas.

Portanto agora, ao recorrer, com dinheiro público, a uma política privatista de longo prazo, Dilma Rousseff trai os seus compromissos de campanha e a confiança de muitos daqueles que acreditaram em sua palavra. O desprezo que demonstra pelos aspectos político-ideológicos de suas medidas, além de permitir a seus adversários tucanos se refastelarem em gozações e provocações, coloca, com sua guinada rumo ao conservadorismo, a centro-esquerda e seu programa político em uma situação extremamente desconfortável. Cría cuervos...

8 comentários:

  1. Votei na Dilma Roussef para afastar o obscurantismo religioso apresentado pela campanha do Zé Chirico. Nunca achei o Lula um cara de "esquerda", mas sim, um bom negociador, que dada diferentes circunstâncias nas quais se metia, mudava o discurso para agradar a plateia. Seu governo foi reformista, mas um reformismo mequetrefe, dentro dos limites impostos pela atual fase de domínio do capital financeiro. Lula deu uma arrumada na bagunça e a Dilma, se quisesse, poderia fazer um governo mil vezes melhor, pois a priori, não tinha mais "a herança maldita" para enterrar. Meu apoio ao PT se restringe, unicamente, à política externa, que acho quase irretocável. De resto, a orientação é claramente neoliberal, com um pouquinho de intervenção estatal para atenuar problemas estruturais. Mas tudo dentro dos limites, senão os pitbulls do capital financeiro vão morder. Obediência ao capital e nem um centavo para os professores e demais trabalhadores que se encontram em greve!

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  2. Dizer que existe apenas "diferença de duração" entre as Privatizações de FHC e as Concessões de Dilma é um mero artifício ideológico do incomodado articulista. A prática do PSDB entregou bens públicos por pouco e em troca de nada. Não permitirá retomá-los em caso de desvios e má administração. E as ditas agências reguladoras são o jogo de cena que são. Sem contar que se constituiu numa negociata de compadres, como denunciado no livro Privataria Tucana.

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  3. Plenamente, de acordo com o post.
    Estou seguro que a Presidenta Dilma Roussef, se contentará com as obras do Minha Casa, Minha Vida,e só.
    Por isso digo e repito, em 2014 ou 2018, "Vote Márcio Pochmann para Presidente".

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  4. O sonho acabou. Falta a nossa querida presidenta profundidade intelectual, estofo cultural, um conceito univerval mais abrangente, portanto, a esperança será cada vez mais pela volta de Lula para recomeçarmos de onde paramos ou, se quisermos avançar de verdade, eleger alguém realmente de esquerda e corajoso, como fizeram Venezuela, Argentina, Equador, Bolivia ou Uruguai. Que tal Stédile?

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  5. Muito cedo para este tipo de conclusão. Afinal há limites que o capital impõe e que não será nenhum elegível que irá quebrar.

    Agora confundir concessão com privatização é dureza. Um dicionário cairia bem as vezes...

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  6. Votaram na Dilma e elegeram o programa do Serra, ou quase todo. Isso eu tenho orgulho de dizer que não fiz.

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  7. Sempre desconfiei deste blogueiro, agora tenho certeza que é de direita. Usa os mesmos argumentos que os tucanos usam, dizendo que a Dilma é "privatista".Ô meu, desculpe, mas dizer que é a mesma coisa, diferença só de tempo; e não ver que existe uma diferença enorme entre "privataria tucana" e parcerias com o setor privado. Ou ele acha que a esquerda tem que estatizar tudo ?

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  8. No caso da concessão de serviço público, "há cláusulas pré-definidas que podem ser alteradas unilateralmente pelo Poder Concedente, sem que caiba, de forma legítima, irresignação por parte do concessionário quanto a tais alterações".

    Privatização ou desestatização é o processo de venda de uma empresa ou instituição do setor público - que integra o patrimônio do Estado - para o setor privado, geralmente por meio de leilões públicos.


    wikpedia

    Concessão x Privatização

    Tem kilometros de diferença

    Mas quanto será investido nessa concessão e por quanto tempo prestarão o serviço. Deve se questionar se as agencias que regularão esses serviços públicos funcionarão corretamente.

    Acredito que a presidenta vai saber lidar com os professores e os demais funcionários públicos, está muito cedo para julga-la conforme esse bom texto a cima. Portanto é cedo fazer tais afirmações

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