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Outrora se falava que “ainda existem juízes em Berlim”, referindo-se aos derradeiros magistrados que resistiram à sanha nazista e defenderam princípios constitucionais numa Alemanha mergulhada em profunda crise. Que grande ironia assistir, num Brasil que vive o apogeu de sua democracia e goza de sólida estabilidade econômica, a inversão dessa frase. Não existem mais juízes em Brasília? Essa pergunta ainda está no ar, visto que há um fiapo de esperança de vermos o STF evitar a desmoralização de se render às forças do atraso e à arbitrariedade. Mas a frase vale para uma outra atividade crucial quando se discute este processo político e judiciário conhecido por “mensalão”. Ainda existem jornalistas no Brasil? Felizmente, sim. Endereço a frase especialmente para o editor da revista Retrato do Brasil, Raimundo Pereira, que realizou um trabalho criterioso e completo para descontruir as mentiras contidas na denúncia da Ação Penal 470.
Se durante o julgamento, as matérias de Pereira fossem publicadas num jornal de grande circulação e seu conteúdo fosse adaptado para a televisão, outro seria o destino dos réus, e poderíamos testemunhar um outro debate, bem mais consequente. Estaríamos agora discutindo, de maneira mais objetiva, um fato gravíssimo: a construção de uma conspirata política para derrubar um governo eleito, ao arrepio de inúmeros direitos constitucionais consagrados. A procuradoria e alguns ministros lançaram cidadãos na fogueira da vergonha pública apenas para provar uma tese pré-montada.
Relendo a Edição Especial da Retrato do Brasil, cuja manchete é “A Construção do Mensalão”, e a edição número 65, intitulada “A Prova do erro do STF”, senti o alívio de constatar que parte do trabalho que eu me dispunha a fazer, já está pronto, o que me deixa um caminho aberto para passar à etapa seguinte, a análise das consequências. O material coletado por Pereira derruba as teorias centrais da denúncia da Procuradoria. A demolição que faz no caso Visanet, inclusive publicando os documentos que os juízes se recusaram a ver, é particularmente arrasadora. Não sobra pedra sobre pedra.
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Pereira faz o serviço que caberia a um juiz honrado: inocenta Henrique Pizzolato consultando os documentos apresentados pelo próprio réu à acusação. E ainda envereda por um caminho que eu também procurei trilhar nessa história: o aspecto humano. É um aspecto essencial porque nos faz pôr de lado, por um momento, as paixões políticas.
Perdoem-me insistir tanto na figura de Pizzolato. Não sou advogado dele, não temos nenhum acordo pecuniário. Minha insistência se dá por várias razões. Primeiro, por praticidade. Ele mora perto da minha casa, é uma figura de fácil acesso, e sua vida familiar hoje tem apenas um objetivo: provar sua inocência; com toda a calma e convicção, conta o que aconteceu, mostra os documentos, esclarece e procura nos olhos do interlocutor uma explicação plausível para a arbitrariedade terrível que lhe esmagou.
Segundo, por razões de afinidade: Pizzolato não é uma celebridade, como José Dirceu, cercado de fãs e frenesi militante. É um indivíduo pacato, de hábitos extremamente simples. Seria um pouco inexato chamá-lo de “um homem comum”, porque não é fácil encontrar gente com uma história tão bonita. Uma história de conquistas, luta política, grandes sonhos. Foi o primeiro diretor sindical eleito para cargo de representação funcional na administração do Banco do Brasil. Foi um dos articuladores, junto ao Banco, da campanha contra a fome idealizada por Betinho, junto do qual viajou todo o país, iniciativa que abriria caminho para Lula mais tarde fazer suas caravanas da cidadania. Na campanha de 2002, idealizou os kits de apoio a Lula para a Classe A, as famosas estrelinhas douradas, que tanto ajudaram a quebrar o preconceito das elites contra o PT. Como diretor de marketing do BB, levou a cabo várias inovações, muitas das quais hoje passaram por retrocesso; e tinha planos de fazer inúmeras outras, que poderiam trazer benefícios à instituição e ao país.
Terceiro, porque derrubando a acusação contra Pizzolato, desmonta-se um dos suportes cruciais da Ação Penal 470, o uso de dinheiro público no mensalão, que serviu à Procuradoria e ao STF para rechaçar a tese da defesa, de que os volumes movimentados corresponderiam a um caixa 2 de campanha eleitoral.
A principal razão, sobretudo, do meu interesse na figura de Pizzolato é que sua condenação (e o linchamento moral que sofreu, ainda mais severo) simboliza o caso mais chocante de arbitrariedade que já testemunhei. Me fez pensar inclusive na diferença entre injustiça e arbitrariedade.
Uma coisa é a injustiça, para o qual sempre concorrem as agruras do destino e cujas responsabilidades se diluem por todo o corpo social e pelo tempo histórico. Uma criança famélica vagando nas ruas da nossa cidade é culpa de todos nós, é culpa da nossa história, mas justamente por essa culpa distribuir-se tanto, ela perde força em nossa consciência. Viramos o rosto e seguimos em frente. Não podemos consertar tudo.
Uma arbitrariedade é diferente. Não é, como a injustiça, uma consequência de vícios históricos; ela tem um rosto ou vários rostos, e emerge de um ambiente de violência extrema, no caso a violência covarde dos estamentos conservadores da sociedade (mídia corporativa, certa elite aristocrática do funcionalismo, setores raivosos da classe média) contra um ou mais indivíduos, sem lhe dar chance de se defender.
Eu me recuso a aceitar ser responsável pela arbitrariedade cometida contra Pizzolato; sinto-me, ao contrário, também uma vítima. Sinto-me vulnerável. O que aconteceu a ele poderia acontecer a qualquer um. Claro, o fato de ser petista e ter lutado, a vida inteira, por justiça social, ajuda a virar alvo.
Não é uma arbitrariedade que se poderia atribuir a uma confusão judiciária. Tanto os procuradores quanto Joaquim Barbosa, que desde o início tinham acesso aos documentos, dispunham de provas que o inocentavam completamente. Não só ignoraram essas provas. Ocultaram-nas! Isso é o mais chocante. Documentos fundamentais para se esclarecer a relação entre BB, Visanet e DNA foram simplesmente escondidos embaixo do tapete pela procuradoria – e igualmente ignorados por Joaquim Barbosa. Destacamos, principalmente, os pareceres jurídicos do BB em relação à Visanet e o Regulamento do Fundo de Marketing, da própria Visanet (de 2001), que derrubam a tese de que os recursos eram do BB; e o Laudo 2828, que inocenta Pizzolato.
Se falássemos de uma comarca do interior, sempre poderíamos esperar que Pizzolato, que não tem direito a fóro privilegiado, poderia apelar para uma segunda instância, ou seja, para o Supremo. Mas não. Ele foi lançado diretamente para o último círculo do inferno, sem esperança de redenção!
Temos, portanto, uma situação de absoluta ironia. O julgamento vendido à sociedade como uma vitória da ética sobre a política foi, na verdade, um espetáculo grotesco de desonestidade, tanto por parte da procuradoria quanto por parte de ministros do STF.
Joaquim Barbosa, pintado pela revista Veja como o “menino que mudou o Brasil”, entrará para história como um dos mais incompetentes e desonestos juízes que já passaram pelo Supremo Tribunal Federal. A responsabilidade de Barbosa é particularmente grave porque ele acompanhou os inquéritos desde o início, antes mesmo de se tornarem a Ação Penal 470. Foi dele a decisão de manter toda a documentação fora do alcance dos próprios ministros do STF, até pouco antes do julgamento, de maneira que estes, sem tempo hábil para estudar a contento o processo, inclinaram-se a seguir a orientação do relator, ou seja, o próprio Joaquim Barbosa.
E agora, que os embargos trazem à tôna um oceano de inconsistências, mentiras e arbitrariedades, o próprio STF se vê numa sinuca de bico. Assistimos a uma interessante mudança nos ventos. O barquinho dos réus, que se dirigia aceleradamente na direção da cascata, onde se despedaçaria nas pedras lá embaixo, prendeu-se a um galho na margem e pode vir a ganhar proteção de uma rocha logo à frente.
O que eu temo, contudo, é que a sociedade se contente com uma migalha: que os embargos façam os ministros reverem as penas de Dirceu e Genoíno, que os dois não sejam encarcerados em regime fechado ou mesmo semi-aberto; mas os outros réus sejam lançados aos leões para satisfazer o circo romano da opinião publicada. Não penso apenas em Pizzolato, mas naquelas secretárias, algumas condenadas a penas superiores a conferidas a homicidas confessos. O que elas têm a ver com as negociatas políticas dos partidos ou, pior, com a trama ficcional inventada pela acusação e aceita pelo STF?
Estamos na Roma Antiga ou no Brasil do Século XXI?
A luta da sociedade, hoje, não é apenas evitar o dano político causado pela prisão, absurda e injusta, de José Dirceu, mas para salvar a honra do Supremo Tribunal Federal (STF) da vergonha histórica de pactuar com um golpe. Nos colégios e universidades, os professores já estão tendo que oferecer uma versão do que foi o mensalão. O Ministério da Educação terá que patrocinar livros de história que tratam do assunto. O que ensinaremos?
Lembro de Gilmar Mendes, com sua boca mole, vociferando em frente às câmeras da TV Justiça: “O que fizeram com o Banco do Brasil?” Pois é, melhor seria se perguntar: “Meu Deus, o que fizeram com o STF?”
O governo federal se manteve até agora intimidado, assistindo a tudo de camarote, mas não poderá fugir da luta final. Tem de investir pesado na disseminação das reportagens de Raimundo Pereira. Tem obrigação moral, educativa, de oferecer o outro lado dessa história. Sabemos, no entanto, que o mensalão teve como objetivo justamente pôr um cabresto no governo. Conseguiu. Jamais nenhum ministro de Estado protestou, de maneira clara, contra o desequilíbrio na cobertura do mensalão. Alguns, ao contrário, inicialmente até tentaram fazer do caso “uma página virada”, como se fosse natural, em pleno século XXI, cometermos sacrifícios humanos em prol de um projeto político.
O que, aliás, nem é o caso. O principal partido de oposição, o PSDB, incorporou de vez todas as características do antigo udenismo. Diante de um cenário econômico estável, com pleno emprego e salários em alta, o presidenciável Aécio Neves tem aparecido na TV se promovendo como o legítimo representante da ética na política. Em 2012, vimos José Serra atacar seu adversário mostrando imagens de Dirceu na televisão.
A desconstrução da farsa, portanto, deve ser feita não apenas em nome da verdade e da justiça; também cumpre um objetivo político. O povo brasileiro rechaçou um projeto que fracassou; não é justo que seja ludibriado a abraçá-lo novamente induzido por uma mentira disfarçada de “ética”. Não há nada de ético na condenação de inocentes. Ao contrário, se a corrupção política é um mal que corrói o desenvolvimento, a desonestidade judiciária desequilibra a democracia e mina o próprio Estado de Direito.
Com base nos documentos que temos à nossa disposição, estamos tranquilos que a história julgará os fatos com imparcialidade, e virá à tôna a iniquidade e covardia dos procuradores gerais e de alguns ministros do STF. O que nos preocupa, no entanto, é algo relativo à brevidade da vida humana. Por quanto tempo o STF, por submissão a interesses políticos e midiáticos, inflingirá sofrimento a réus inocentes? Por quanto tempo os juízes pretendem interferir na vida política do país mantendo acesa a chama de uma mentira?
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Concordo com Paulo Moreira Leite, autor de um excelente livro sobre o tema, de que é uma ilusão achar que teremos “a volta do cipó de aroeira sobre o lombo de quem mandou dar”, no caso do mensalão tucano. Até porque não interessa ao Brasil que as arbitrariedades contra os réus do mensalão sejam chanceladas através de uma repetição da mesma injustiça com réus ligados ao tucanato. Isso não deveria acontecer, e não acontecerá. Os réus tucanos serão julgados em duas instâncias, e o julgamento foi devidamente desmembrado. Serão julgados com calma e objetividade, sem nenhum clima de linchamento.
A volta do cipó não será contra os tucanos. Será contra as arbitrariedades, leviandade, incompetência e desonestidade dos ministros do STF, caso não façam uma revisão total da Ação Penal 470. Joaquim Barbosa se tornou herói dos saguões de aeroporto, mas a História não precisa viajar de avião. A História viaja a pé, descalça, sentindo a terra e contemplando sem pressa a paisagem. Demora mais a ir onde quer, mas chega conhecendo minuciosamente os detalhes, desmascarando hipócritas, desnudando interesses, derrubando farsas.
Esperarei ansiosamente por esse encontro, que assistirei comendo pipocas, entre Joaquim Barbosa e a História…
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Prefácio: Mensalão, a história de uma farsa.
Capítulo 1: Acusações contra Pizzolato lembram Dreyfus e Kafka.
Capítulo 2: O caso Visanet.
Capítulo 3: As bombas lá fora.
Capítulo 4: Tirem as crianças da sala.
Capítulo 5: As bombas aqui dentro.
Texto simplesmente admirável! Sou cúmplice em tudo que foi dito,na revolta diante de injustiças e infâmias armadas, no direito absoluto à defesa dos réus e, especialmente, quando diz "a história não anda de avião".
ResponderExcluirMais que da essência do Poder, a corrupção é ordenadora das instituições humanas. Quer sejam políticas, religiosas, esportivas... e até sóciobenemerentes.
ResponderExcluirTenho repetido à exaustão, e por vezes censurado nos blogs, que o Judiciário é de longe o mais corrupto dos poderes.
Porque garantidor da impunidade dos poderosos endinheirados. Montesquieu não pensou em um poder acima de qualquer suspeita.
A instituição de um judiciário ansiolítico dos poderosos, farta em habeas corpus para banqueiros lavadores-de-dinheiro, médicos estupradores e assassinos de freiras nada tem a ver com a ideia de República.
O STF é a suprema corrupção: porque quem indica ministros e quem os sabatina têm rabo.
Ora, direis: "Dilma é honesta!"
Concordo. Tão honesta quanto alguns ministros do STF: estes olhando para o lado oposto aos malfeitos do Gilmar. Aquela, aos do partido dos mercadejantes.
Enfim, Poder é isso.
Minhas homenagens a Lorde Acton, cristão-católico que, salvo engano, questionou a infalibilidade papal (e foi pro index, tal como é prática em muitos blogs “progressistas”):
“O poder tende a corromper; e o poder absoluto corrompe absolutamente. Os grandes homens são quase sempre homens maus, mesmo quando exercem influência e não autoridade, ainda mais quando você levar em consideração a tendência ou a certeza da corrupção pela autoridade. Não há nenhuma heresia pior que santificar alguém em razão do cargo que exerce.”
(Essays on Freedom and Power, John Emerich Edward Dalberg Acton, 1949, 120 reais na Estante Virtual)
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Quando nos veremos em numerosa manifestação diante do STF?
Espetacular! Miguel do Rosário promoveu uma redenção em meu espírito. Vou atras da revista "Retratos do Brasil". Depois, vou contribuir para o blog. Gratíssima!
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