Por Maria Inês Nassif, no JornalGGN:
Dois fatos ocorridos ontem (16) indicam que o bom senso pode trazer para os trilhos as relações entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Os dois, direta ou indiretamente, remetem a uma ação sistemática do ministro Gilmar Mendes contra decisões tomadas por maiorias parlamentares dentro do Congresso, que pelo menos momentaneamente parece ter sido contida pelo bom senso dos ministros Marco Aurélio Mello e Celso Mello.
Estimulados pela liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes a partidos contrários a uma decisão da maioria dos deputados - quando Mendes simplesmente decidiu sustar a conclusão da votação do projeto que limita direitos de novos partidos pelo Senado - a oposição perdeu ontem na Câmara a votação da MP dos Portos e tentou impedir, por meio de um mandato de segurança com pedido de liminar, a votação da matéria pelos senadores. O ministro Celso Mello rejeitou o pedido. Agora, se os partidos de oposição entenderem inconstitucional a lei aprovada pelo Congresso, deverão entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) para derrubar a lei no Supremo Tribunal Federal (STF). Somente aí o Supremo decide. Essa é a normalidade, no relacionamento entre os poderes.
Mais significativa ainda foi a reação do ministro Marco Aurélio Mello a uma argumentação jurídica de Gilmar Mendes, na sessão plenária do STF de ontem (16), transmitida ao vivo pela TV Justiça. Mello chamou seu colega às falas, ao vivo e a cores, quando Mendes debatia uma reclamação apresentada pelo governo do Acre que remeteu ao debate sobre o artigo 52 da Constituição, que permite ao Senado rever decisões tomadas pelo Supremo. Mendes argumentava que o artigo constitucional não tinha valor.
“Vossa Excelência declara inconstitucional um artigo da Constituição?”, perguntou Marco Aurélio Mello ao colega. Com cara de espanto, Gilmar reagiu. “Vossa Excelência me respeite”.
“Vossa Excelência quer declarar guerra total ao Congresso Nacional?”, indagou Mello.
Mendes tentou encerrar a sessão, argumentando que não havia mais clima para o debate. Foi salvo por Teori Zavascki, que pediu vistas à matéria e, assim, encerrou o debate.
Pela primeira vez houve uma manifestação tão incisiva de desagrado de um ministro do STF contra a escalada de intervenções feitas pela Corte em decisões do Congresso, não raro por uma decisão de Mendes, ou por decisões inspiradas em precedentes abertos por Gilmar Mendes. A liminar que impediu o Senado de votar a lei que reduziria privilégios de novos partidos foi concedida por Mendes, numa inovação total do direito constitucional brasileiro: nunca antes na história da República o Congresso foi impedido de analisar e votar uma matéria. Essa foi a inspiração para que a oposição fosse ao Supremo pedir a sustação da tramitação da PEC que reduzia poderes do STF e para impedir a votação da MP dos Portos.
A lógica dos últimos dez anos, com a grande contribuição de Mendes, tem sido perversa para as instituições cujos representantes são eleitos pelo voto direto e secreto. Os partidos vão às urnas e elegem suas bancadas. O sistema político brasileiro obriga soluções de compromisso para a governabilidade dos presidentes eleitos, inclusive pela grande pulverização partidária que existe (problema que o STF impede de resolver, ao rejeitar sistematicamente leis aprovadas pelo Congresso para desestimular a criação de legendas sem representatividade, mas com poder de veto no Congresso). São construídas maiorias parlamentares, sem as quais não existem condições de governabilidade.
Essas maiorias são mobilizadas, evidentemente, quando os governos – eleitos pelo voto direto e secreto – têm premência de resolver pendências legais para administrar o país. As minorias, em geral, perdem essas votações; afinal, são minorias e essa é a lógica da democracia. E são minorias não por origem social ou econômica, mas porque não tiveram o apoio popular suficiente para que se tornassem maiorias Era assim também nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco, Fernando Collor e José Sarney – e era assim também nos governos militares, que mantiveram a fachada eleitoral e usavam o Congresso para legitimar parte de suas ações.
As minorias apenas não perdem quando vão para o voto articuladas com dissidências da bancada governista, e isso normalmente é possível em questões absolutamente polêmicas e que têm grande potencial de mobilização popular a favor – em regra, quando andam a favor da maré de defesa de direitos coletivos, ou quando têm por trás grandes lobbies com poder econômico. A MP dos Portos não negava direitos: o governo negociou anteriormente com as centrais sindicais e, embora ainda existam pontos nebulosos em relação ao texto aprovado, existia um consenso dos trabalhadores que estavam na mesa de negociações de que o projeto, ao contrário, havia melhorado muito as condições atuais de trabalho nos portos. A única excessão foi a Força Sindical, de Paulo Pereira da Silva, mas os interesses que defendia não qualificam a Central a reivindicar a representação dos trabalhadores na negociação.
A oposição à MP tinha, é certo, um grande lobby por trás, o das atuais concessionárias, mas o governo ganhou o embate. Conseguiu valer a sua maioria – que resulta da soma dos votos que cada deputado e senador que votaram a favor da medida têm e das alianças parlamentares construídas legitimamente para apoiar o governo. O governo pode ter se beneficiado também do lobbie das empresas que querem furar o cerco das atuais concessões dos portos e entrar no negócio, mas o fato objetivo é de que obteve uma maioria parlamentar.
A minoria, no entanto, aprendeu nos últimos anos, principalmente pelas decisões tomadas pelo ministro Gilmar Mendes, que o voto é relativo. E para relativizá-lo, o STF usa o artifício de confundir minoria parlamentar e direitos difusos. É que isso tem dado ao STF uma grande desenvoltura para interferir nos direitos de minorias parlamentares sobre questões que não envolvem direitos difusos.
A decisão do ministro Dias Toffolli, de não suspender a proposta de emenda constitucional que reduz os poderes do STF (que não vai impedir o STF de decidir sobre ela, mas apenas se e quando for aprovada); o freio de Celso Mello ao desejo da minoria parlamentar de suspender a votação da MP dos Portos e a reação pública de Mello a mais uma investida de Gilmar Mendes contra o Congresso são um sinal de que o Supremo vai deixar de ser um partido auxiliar de uma oposição eventual (oposições mudam, só depende do voto do eleitor) no governo federal e no Congresso. É torcer para isso.
Dois fatos ocorridos ontem (16) indicam que o bom senso pode trazer para os trilhos as relações entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Os dois, direta ou indiretamente, remetem a uma ação sistemática do ministro Gilmar Mendes contra decisões tomadas por maiorias parlamentares dentro do Congresso, que pelo menos momentaneamente parece ter sido contida pelo bom senso dos ministros Marco Aurélio Mello e Celso Mello.
Estimulados pela liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes a partidos contrários a uma decisão da maioria dos deputados - quando Mendes simplesmente decidiu sustar a conclusão da votação do projeto que limita direitos de novos partidos pelo Senado - a oposição perdeu ontem na Câmara a votação da MP dos Portos e tentou impedir, por meio de um mandato de segurança com pedido de liminar, a votação da matéria pelos senadores. O ministro Celso Mello rejeitou o pedido. Agora, se os partidos de oposição entenderem inconstitucional a lei aprovada pelo Congresso, deverão entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) para derrubar a lei no Supremo Tribunal Federal (STF). Somente aí o Supremo decide. Essa é a normalidade, no relacionamento entre os poderes.
Mais significativa ainda foi a reação do ministro Marco Aurélio Mello a uma argumentação jurídica de Gilmar Mendes, na sessão plenária do STF de ontem (16), transmitida ao vivo pela TV Justiça. Mello chamou seu colega às falas, ao vivo e a cores, quando Mendes debatia uma reclamação apresentada pelo governo do Acre que remeteu ao debate sobre o artigo 52 da Constituição, que permite ao Senado rever decisões tomadas pelo Supremo. Mendes argumentava que o artigo constitucional não tinha valor.
“Vossa Excelência declara inconstitucional um artigo da Constituição?”, perguntou Marco Aurélio Mello ao colega. Com cara de espanto, Gilmar reagiu. “Vossa Excelência me respeite”.
“Vossa Excelência quer declarar guerra total ao Congresso Nacional?”, indagou Mello.
Mendes tentou encerrar a sessão, argumentando que não havia mais clima para o debate. Foi salvo por Teori Zavascki, que pediu vistas à matéria e, assim, encerrou o debate.
Pela primeira vez houve uma manifestação tão incisiva de desagrado de um ministro do STF contra a escalada de intervenções feitas pela Corte em decisões do Congresso, não raro por uma decisão de Mendes, ou por decisões inspiradas em precedentes abertos por Gilmar Mendes. A liminar que impediu o Senado de votar a lei que reduziria privilégios de novos partidos foi concedida por Mendes, numa inovação total do direito constitucional brasileiro: nunca antes na história da República o Congresso foi impedido de analisar e votar uma matéria. Essa foi a inspiração para que a oposição fosse ao Supremo pedir a sustação da tramitação da PEC que reduzia poderes do STF e para impedir a votação da MP dos Portos.
A lógica dos últimos dez anos, com a grande contribuição de Mendes, tem sido perversa para as instituições cujos representantes são eleitos pelo voto direto e secreto. Os partidos vão às urnas e elegem suas bancadas. O sistema político brasileiro obriga soluções de compromisso para a governabilidade dos presidentes eleitos, inclusive pela grande pulverização partidária que existe (problema que o STF impede de resolver, ao rejeitar sistematicamente leis aprovadas pelo Congresso para desestimular a criação de legendas sem representatividade, mas com poder de veto no Congresso). São construídas maiorias parlamentares, sem as quais não existem condições de governabilidade.
Essas maiorias são mobilizadas, evidentemente, quando os governos – eleitos pelo voto direto e secreto – têm premência de resolver pendências legais para administrar o país. As minorias, em geral, perdem essas votações; afinal, são minorias e essa é a lógica da democracia. E são minorias não por origem social ou econômica, mas porque não tiveram o apoio popular suficiente para que se tornassem maiorias Era assim também nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco, Fernando Collor e José Sarney – e era assim também nos governos militares, que mantiveram a fachada eleitoral e usavam o Congresso para legitimar parte de suas ações.
As minorias apenas não perdem quando vão para o voto articuladas com dissidências da bancada governista, e isso normalmente é possível em questões absolutamente polêmicas e que têm grande potencial de mobilização popular a favor – em regra, quando andam a favor da maré de defesa de direitos coletivos, ou quando têm por trás grandes lobbies com poder econômico. A MP dos Portos não negava direitos: o governo negociou anteriormente com as centrais sindicais e, embora ainda existam pontos nebulosos em relação ao texto aprovado, existia um consenso dos trabalhadores que estavam na mesa de negociações de que o projeto, ao contrário, havia melhorado muito as condições atuais de trabalho nos portos. A única excessão foi a Força Sindical, de Paulo Pereira da Silva, mas os interesses que defendia não qualificam a Central a reivindicar a representação dos trabalhadores na negociação.
A oposição à MP tinha, é certo, um grande lobby por trás, o das atuais concessionárias, mas o governo ganhou o embate. Conseguiu valer a sua maioria – que resulta da soma dos votos que cada deputado e senador que votaram a favor da medida têm e das alianças parlamentares construídas legitimamente para apoiar o governo. O governo pode ter se beneficiado também do lobbie das empresas que querem furar o cerco das atuais concessões dos portos e entrar no negócio, mas o fato objetivo é de que obteve uma maioria parlamentar.
A minoria, no entanto, aprendeu nos últimos anos, principalmente pelas decisões tomadas pelo ministro Gilmar Mendes, que o voto é relativo. E para relativizá-lo, o STF usa o artifício de confundir minoria parlamentar e direitos difusos. É que isso tem dado ao STF uma grande desenvoltura para interferir nos direitos de minorias parlamentares sobre questões que não envolvem direitos difusos.
A decisão do ministro Dias Toffolli, de não suspender a proposta de emenda constitucional que reduz os poderes do STF (que não vai impedir o STF de decidir sobre ela, mas apenas se e quando for aprovada); o freio de Celso Mello ao desejo da minoria parlamentar de suspender a votação da MP dos Portos e a reação pública de Mello a mais uma investida de Gilmar Mendes contra o Congresso são um sinal de que o Supremo vai deixar de ser um partido auxiliar de uma oposição eventual (oposições mudam, só depende do voto do eleitor) no governo federal e no Congresso. É torcer para isso.
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