segunda-feira, 3 de junho de 2013

A inflação da carteira assinada

Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:

A série de reportagens pintando um cenário de apocalipse na economia brasileira, que marca as edições recentes dos principais jornais genéricos de circulação nacional, traz como pano de fundo uma tese perigosa: a de que a plena oferta de empregos seria uma das principais causas de aumento dos preços no Brasil.

Observe-se que a imprensa brasileira não questiona se estamos de fato imersos no perigoso jogo inflacionário, embora os aumentos de preços tenham se mostrado pontuais e randômicos, não lineares, o que indica a ocorrência de causas múltiplas e não necessariamente um processo consistente de inflação.

Há apenas dois meses, os jornais e os noticiários da televisão e do rádio martelavam a tese da inflação de alimentos; depois, com o tomate voltando ao molho com preços 75% inferiores, a imprensa passou a ressaltar o custo de produtos eletrônicos, depois das viagens aéreas e agora o vilão é o setor de serviços.

Nesse período, artigos e reportagens tentam impor a seguinte teoria: se o crescimento econômico é insatisfatório, o pleno emprego torna-se fator de inflação porque a disputa por bons funcionários aumenta o custo das empresas, o que acaba se refletindo no preço final dos produtos. Por outro lado, dizem esses teóricos, o crescimento da renda dos trabalhadores aumenta a procura, porque há mais gente com dinheiro para as compras e, apesar do aumento recente dos juros, a oferta de crédito segue em alta.

Os defensores dessa tese consideram que, para fazer a economia crescer sem inflação, é preciso manter um exército de trabalhadores sem renda, ou dispostos a ganhar pouco, para que os preços se mantenham estáveis e o Produto Interno Bruto possa crescer a níveis chineses. Para eles, a boa política econômica é aquela que preserva os “bons fundamentos da economia”, e não aquela que produz bem-estar para a maior parcela da população.

O pensador francês Edgar Morin já observou que “a economia é, ao mesmo tempo, a ciência humana mais avançada matematicamente e a mais atrasada humanamente”. No caso do Brasil, os especialistas mais apreciados pela imprensa são os que se apegam a fundamentos que se justificam mais por ideologia do que por evidências científicas, e se recusam a considerar a nova complexidade da sociedade brasileira.

Esse novo contexto social se baseia no ingresso de uma nova classe de renda no mercado, que permite a milhares de produtos e serviços alcançarem uma escala nunca antes vista. Durante alguns anos, esses novos protagonistas irão realizar alguns sonhos de consumo que acalentam desde a infância, o que certamente produz desequilíbrios nas cestas do mercado.

Que dó, que dó!

Foi assim com biscoitos recheados e iogurte, nos primeiros anos do Plano Real; foi assim com os calçados esportivos e vestuário até 2005, o que estimulou a maior frequência a shopping centers, que proliferaram por todo o país; depois vieram os carros populares, as viagens aéreas, os cruzeiros marítimos, os computadores, e, mais recentemente a TV digital, tablets e smartphones.

O enigma que os economistas devem decifrar é: quais setores do sistema produtivo precisam de uma injeção de produtividade para atender essa demanda sem aumento abusivo de preços.

O pleno emprego e o aumento da renda dos trabalhadores, ocorrendo em curto prazo num contexto de desigualdades históricas, baixa renda e trabalho informal, tendem a produzir distorções de preços, em parte, porque a economia estava organizada para os padrões estáveis de uma classe média tradicional e de pouca escala. De repente, essa classe média, que nunca passou de 15% da população brasileira, tem a companhia dos emergentes, que representam mais de 55% da população e formam um novo país de 105 milhões de consumidores.

Mas jornais e revistas são feitos para a classe média tradicional, o que justifica a reportagem de capa da revista Época desta semana. O texto é um primor de falácia jornalística: “O arrocho da classe média”, diz o título da reportagem, com a chamada de capa em tom de manifesto: “A conta sobrou pra você”.

Com uma série de exemplos de famílias com renda superior a R$ 8 mil mensais que agora precisam conter custos, Época faz coro aos lamentos da dona de casa que se vê obrigada a reduzir seus gastos com cabeleireiro, de R$ 800 por mês – e agora tem que fazer hidratação facial em sua própria casa!

Também há o exemplo dos brasileiros de classes A/B que não aguentam mais pagar o preço do vinho nos restaurantes, porque não dá para manter esse hábito essencial e ao mesmo tempo custear o médico particular. Eles são obrigados a reunir os amigos para beber em casa!

A reportagem nota, com espanto, que na última década a renda dos 10% mais pobres subiu 91,2% acima da inflação, enquanto a dos 10% mais ricos subiu apenas 16,6%.

Há outras referências, mas bastam esses exemplos do que a revista chama de “calvário” da classe média tradicional. O texto termina com um recado para seus leitores: “Eu era feliz e não sabia”.

A frase poderia ser bem outra: “É a distribuição de renda, cidadão”.

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