Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O patrono desses personagens típicos da sociedade de comunicação de massas chama-se Daniel Ellsberg, o cidadão que em 1971 fez o favor de revelar, através do New York Times, os célebres papéis do Pentágono. Ali, um conjunto de documentos secretos mostrava que o governo dos EUA sabia perfeitamente que a guerra do Vietnã era uma causa perdida, mas preferia seguir enviando os jovens pobres e negros da América para a morte em vez de enfrentar a elite imperial americana e negociar uma saída pacífica.
O destino de Ellsberg e de seus sucessores contém lições didáticas sobre nosso tempo.
Ellsberg foi perseguido, julgado – e absolvido. Nos anos 1970, os Estados Unidos estavam em guerra e seu gesto foi tratado como uma traição, pois ele proporcionava “conforto ao inimigo”. O New York Times foi alvo de censura e, durante duas semanas, impedido de circular, fato raríssimo na história americana.
Mas considerou-se que Ellsberg tinha o direito de revelar aos cidadãos americanos informações que eram de seu legítimo interesse. Um esforço de agentes secretos da Casa Branca para desmoralizá-lo terminou em fiasco e seus detalhes vieram a público. Descobriu-se que homens de confiança do governo Nixon haviam tentado penetrar em seus arquivos médicos para retratá-lo como louco. Foi mais um motivo para que Ellsberg fosse considerado inocente, deixando o escândalo para entrar na história da luta contra a guerra do Vietnã e da liberdade de expressão.
Quatro décadas depois, a situação é outra. Não há hipótese de Bradley Manning ser considerado inocente, ainda que seja impossível apontar um único caso em que as informações que ajudou a revelar tenham ameaçado vidas humanas ou causado prejuízos a interesses legítimos da política externa americana. Em nenhum momento se demonstrou que Manning não tinha o direito (ou quem sabe o dever) de divulgar as informações a que teve acesso.
Num sintoma do momento político, não se questiona a natureza de suas acusações nem se pergunta se o melhor local para um julgamento onde as liberdades civis estão em jogo é um tribunal militar – onde a questão disciplinar irá sobrepor-se sobre qualquer outra consideração.
Na perseguição a Assange, não falta sequer uma anedota pessoal, como ocorreu com Ellsberg. No caso, é uma obscura acusação de estupro feita na Suécia.
No mundo de Ellsberg um “traidor” saiu livre do tribunal.
Herbert Marcuse, um dos mestres da contestação nos tempos de Ellsberg, fez uma crítica conhecida da sociedade contemporânea. Dizia que ela criava o homem unidimensional, aquele que não convivia com contradições nem conflitos, enxergando a realidade a partir de suas aparências e mistificações. Marcuse era uma ótima leitura nos anos 1960, mas é curioso imaginar o que poderia ter escrito sobre o mundo de hoje.
Manning, Assange e Snowden não são personagens fora de lugar. São rebeldes num mundo conformista, onde a democracia costuma ser posta à prova com frequência surpreendente pelo governo norte-americano.
A perseguição implacável aos responsáveis pelo vazamento do Wikileaks e pela reportagem que denunciou o tamanho da espionagem mundial dos EUA fazem parte da mesma máquina que produziu e protege Guantánamo, onde cidadãos acusados de terrorismo foram sequestrados e torturados e já passaram mais de dez anos na prisão.
Como não há provas substanciais contra eles além de inaceitáveis declarações prestadas sob tortura, que a decência impede que sejam chamadas de “confissões“, palavra que tem o pressuposto de terem como base a verdade, a única atitude razoável seria mandar todos para casa após tanto tempo.
Como ocorria no Vietnã, falta coragem – e força política – para enfrentar os erros e contradições do império.
Não é pura coincidência que pelo menos um personagem tenha frequentado esses dois momentos.
A abertura dos arquivos das operações contra Ellsberg revelou que nos bastidores do governo Nixon já atuava um assessor presidencial chamado Donald Rumsfeld. Quatro décadas depois, como secretário de Defesa de George W. Bush, Rumsfeld foi denunciado pela liberação da tortura como método de investigação militar depois do 11 de setembro.
O personagem do momento é Barack Obama, que oferece uma nova prova de melancólica fraqueza política para dar um mínimo de coerência entre palavras e atos. Como Marcuse poderia ter dito, o homem unidimensional atingiu um nível absoluto no governo Obama.
Suas decisões e gestos são movimentos de uma máquina implacável, que avança sobre direitos que se pensava sagrados e devora conquistas de valor histórico.
O desrespeito às liberdades individuais e privacidade de milhões de pessoas mostra uma postura sem freios nem pudores para defender aquilo que a Casa Branca considera seus interesses.
Imagine o destino reservado a quem pretender confrontá-los, não é mesmo?
A própria sociedade americana mudou. Há 40 anos, houve uma reação de solidariedade a favor de Ellsberg. Com o New York Times sob censura, o Washington Post, que havia tomado o furo, passou a divulgar os papéis do Pentágono, oferecidos pelo mesmo Ellsberg. E agora?
Pouco a pouco, muitas publicações que divulgaram os textos do Wikileaks preferiram tomar distância de Julian Assange.
O julgamento de Bradley Manning ocorre em ambiente de segredo, e isso não gera grande emoção dentro ou fora dos Estados Unidos. Edward Snowden já é descrito como “delator” pelos meios de comunicação – palavra que envolve um juízo negativo e aponta para a criminalização de um gesto político.
Em declaração recente, o já velhinho Ellsberg voltou à cena e declarou que a democracia encontra-se à beira do abismo, nos EUA – e é bom refletir sobre o que ele diz.
A perseguição a Edward Snowden é um episódio típico de nosso tempo.
Antigo funcionário da CIA, responsável pela revelação de que o governo americano possui uma máquina de espionagem de dimensões que superam temores que até ontem comentaristas de ar arrogante definiriam como “paranoia”, Snowden é o mais novo fugitivo da liberdade de expressão.
Antigo funcionário da CIA, responsável pela revelação de que o governo americano possui uma máquina de espionagem de dimensões que superam temores que até ontem comentaristas de ar arrogante definiriam como “paranoia”, Snowden é o mais novo fugitivo da liberdade de expressão.
Encontra-se no mesmo patamar no qual o soldado Bradly Manning aguarda julgamento, pelo vazamento de milhares de documentos do Departamento de Estado, que derrubaram diversas máscaras da diplomacia norte-americana. Também lhe faz companhia, claro, Julian Assange, o criador do Wikileaks, até hoje à espera de um salvo conduto na embaixada do Equador em Londres.
O patrono desses personagens típicos da sociedade de comunicação de massas chama-se Daniel Ellsberg, o cidadão que em 1971 fez o favor de revelar, através do New York Times, os célebres papéis do Pentágono. Ali, um conjunto de documentos secretos mostrava que o governo dos EUA sabia perfeitamente que a guerra do Vietnã era uma causa perdida, mas preferia seguir enviando os jovens pobres e negros da América para a morte em vez de enfrentar a elite imperial americana e negociar uma saída pacífica.
O destino de Ellsberg e de seus sucessores contém lições didáticas sobre nosso tempo.
Ellsberg foi perseguido, julgado – e absolvido. Nos anos 1970, os Estados Unidos estavam em guerra e seu gesto foi tratado como uma traição, pois ele proporcionava “conforto ao inimigo”. O New York Times foi alvo de censura e, durante duas semanas, impedido de circular, fato raríssimo na história americana.
Mas considerou-se que Ellsberg tinha o direito de revelar aos cidadãos americanos informações que eram de seu legítimo interesse. Um esforço de agentes secretos da Casa Branca para desmoralizá-lo terminou em fiasco e seus detalhes vieram a público. Descobriu-se que homens de confiança do governo Nixon haviam tentado penetrar em seus arquivos médicos para retratá-lo como louco. Foi mais um motivo para que Ellsberg fosse considerado inocente, deixando o escândalo para entrar na história da luta contra a guerra do Vietnã e da liberdade de expressão.
Quatro décadas depois, a situação é outra. Não há hipótese de Bradley Manning ser considerado inocente, ainda que seja impossível apontar um único caso em que as informações que ajudou a revelar tenham ameaçado vidas humanas ou causado prejuízos a interesses legítimos da política externa americana. Em nenhum momento se demonstrou que Manning não tinha o direito (ou quem sabe o dever) de divulgar as informações a que teve acesso.
Num sintoma do momento político, não se questiona a natureza de suas acusações nem se pergunta se o melhor local para um julgamento onde as liberdades civis estão em jogo é um tribunal militar – onde a questão disciplinar irá sobrepor-se sobre qualquer outra consideração.
Na perseguição a Assange, não falta sequer uma anedota pessoal, como ocorreu com Ellsberg. No caso, é uma obscura acusação de estupro feita na Suécia.
No mundo de Ellsberg um “traidor” saiu livre do tribunal.
Herbert Marcuse, um dos mestres da contestação nos tempos de Ellsberg, fez uma crítica conhecida da sociedade contemporânea. Dizia que ela criava o homem unidimensional, aquele que não convivia com contradições nem conflitos, enxergando a realidade a partir de suas aparências e mistificações. Marcuse era uma ótima leitura nos anos 1960, mas é curioso imaginar o que poderia ter escrito sobre o mundo de hoje.
Manning, Assange e Snowden não são personagens fora de lugar. São rebeldes num mundo conformista, onde a democracia costuma ser posta à prova com frequência surpreendente pelo governo norte-americano.
A perseguição implacável aos responsáveis pelo vazamento do Wikileaks e pela reportagem que denunciou o tamanho da espionagem mundial dos EUA fazem parte da mesma máquina que produziu e protege Guantánamo, onde cidadãos acusados de terrorismo foram sequestrados e torturados e já passaram mais de dez anos na prisão.
Como não há provas substanciais contra eles além de inaceitáveis declarações prestadas sob tortura, que a decência impede que sejam chamadas de “confissões“, palavra que tem o pressuposto de terem como base a verdade, a única atitude razoável seria mandar todos para casa após tanto tempo.
Como ocorria no Vietnã, falta coragem – e força política – para enfrentar os erros e contradições do império.
Não é pura coincidência que pelo menos um personagem tenha frequentado esses dois momentos.
A abertura dos arquivos das operações contra Ellsberg revelou que nos bastidores do governo Nixon já atuava um assessor presidencial chamado Donald Rumsfeld. Quatro décadas depois, como secretário de Defesa de George W. Bush, Rumsfeld foi denunciado pela liberação da tortura como método de investigação militar depois do 11 de setembro.
O personagem do momento é Barack Obama, que oferece uma nova prova de melancólica fraqueza política para dar um mínimo de coerência entre palavras e atos. Como Marcuse poderia ter dito, o homem unidimensional atingiu um nível absoluto no governo Obama.
Suas decisões e gestos são movimentos de uma máquina implacável, que avança sobre direitos que se pensava sagrados e devora conquistas de valor histórico.
O desrespeito às liberdades individuais e privacidade de milhões de pessoas mostra uma postura sem freios nem pudores para defender aquilo que a Casa Branca considera seus interesses.
Imagine o destino reservado a quem pretender confrontá-los, não é mesmo?
A própria sociedade americana mudou. Há 40 anos, houve uma reação de solidariedade a favor de Ellsberg. Com o New York Times sob censura, o Washington Post, que havia tomado o furo, passou a divulgar os papéis do Pentágono, oferecidos pelo mesmo Ellsberg. E agora?
Pouco a pouco, muitas publicações que divulgaram os textos do Wikileaks preferiram tomar distância de Julian Assange.
O julgamento de Bradley Manning ocorre em ambiente de segredo, e isso não gera grande emoção dentro ou fora dos Estados Unidos. Edward Snowden já é descrito como “delator” pelos meios de comunicação – palavra que envolve um juízo negativo e aponta para a criminalização de um gesto político.
Em declaração recente, o já velhinho Ellsberg voltou à cena e declarou que a democracia encontra-se à beira do abismo, nos EUA – e é bom refletir sobre o que ele diz.
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