Por Saul Leblon, no sítio Carta Maior:
Caberia a ela transferir recursos dos mais ricos para os fundos públicos, destinados a contemplar os mais pobres e o bem comum.
A sonegação praticada pela Globo (R$ 615 milhões) e aquela que teria sido cometida pelo presidente do STF, (Joaquim Barbosa, noticia-se, teria adquirido apartamento de R$ 1 milhão, declarando gasto de R$ 10 reais), são pequenas ilustrações da afronta a esse princípio, facilitadas, no caso, pelo acesso (legal?) a operações em paraísos fiscais
Palavras como ética, transparência, republicanismo, justiça, interesse público soam constrangedoras quando a contraface do emissor é a sonegação.
Sem carga tributária adequada não se constrói uma Nação, mas um ajuntamento conflagrado.
A carga tributária adequada depende do estágio de desenvolvimento da sociedade. Mas não apenas isso. Sua composição é decisiva na incidência regressiva ou redistributiva que provoca.
Um país como o Brasil, com 200 milhões de habitantes e enormes carências estruturais, não pode avançar com uma carga equivalente a da Europa, cuja infraestrutura está consolidada (nos dois casos, a carga média gira em torno de 36%; mas há vários países com infraestrutura madura onde a carga passa de 40%).
O sistema brasileiro avulta, ademais, como um caso pedagógico de regressividade.
Impostos indiretos, embutidos nos preços dos bens de consumo, representam mais de 60% do que se recolhe.
Não importa a renda do consumidor: ganhe um ou 100 salários mínimos por mês, o imposto que paga por litro de leite é o mesmo.
Regressividade é isso: uma engrenagem fiscal feita para taxar mais os pobres do que os ricos.
O imposto sobre o patrimônio, em contrapartida, que incide diretamente sobre os endinheirados, não chega a 3,5% da arrecadação total.
Nem é preciso ir à Suécia para um contraponto.
Na festejada Coréia do Sul, meca da eficiência capitalista, ele é da ordem de 11%; nos EUA passa de 12%.
A taxação direta, no Brasil, recai fortemente sobre os assalariados da classe média (amplo sentido), o que explica, em parte, a revolta com a qualidade dos serviços públicos obtidos em troca.
Cerca de 25% da receita fiscal incide diretamente sobre a renda, assim:
a) a metade sobre o holerite da classe média;
b) a outra metade sobre os ganhos de capitais, que é onde se concentra cada vez mais a riqueza no capitalismo financeiro dos nossos dias.
Bancos, por exemplo, pagam menos impostos no Brasil que o conjunto dos assalariados.
As distorções não param aí.
A receita obtida tampouco se destina automaticamente a reduzir abismos sociais.
Há filtros de classe pelo caminho
A dívida pública é o principal deles.
Ela funciona como uma espécie de reforço na regressividade do sistema fiscal brasileiro.
Assemelha-se a uma coleira, um enforcador que subordina o princípio da solidariedade à primazia rentista.
O mecanismo é ‘autossustentável’.
Vejamos.
Sem espaço político para taxar endinheirados e o seu patrimônio, afinal, o Estado tem que ser mínimo, diz o cuore neoliberal, governos são compelidos cada vez mais a compensar a anemia tributária com endividamento público.
Emprestam e pagam juros por aquilo que deveriam arrecadar.
Do ponto de vista do dinheiro grosso, um belo negócio.
Em vez de impostos adicionais, investimentos em títulos do Tesouro, um porto seguro de renda e liquidez.
O segredo do negócio é a vigilância diuturna da matilha midiática sobre a boa gestão da dívida pública.
O dinheiro grosso investe nisso. Uma legião de consultores dá plantão permanente no telefone para esclarecer e municiar ventríloquos e ventríloquas dos mercados em suas obsequiosas colunas diárias.
Prover a ração bilionária destinada anualmente aos rentistas é o objetivo.
No linguajar técnico, trata-se de fazer cumprir a ‘meta cheia do superávit primário’.
Ou seja, o arrocho sobre o resto.
O corte adicional de R$ 10 bi nos gastos este ano, anunciado agora pelo governo Dilma, tem essa finalidade.
Reconquistar a ‘confiança’ rentista na política fiscal, teoricamente ensombrecida por artifícios contábeis – tolos, mas lícitos — cometidos em 2012.
A gendarmeria sustentada pelos rentistas para proteger seus interesses abriu fogo e fuzilou a administração fiscal, por conta da 'manobra' para fechar as contas em 2012.
Mídia, consultores, professores banqueiros e assemelhados puseram a faca na boca: o Brasil precisa de arrocho efetivo; corte real nas despesas, sem malabarismos contábeis.
E mais juros.
Porque a inflação, diziam, e agora se vê, era um engodo (como mostra Amir Khair, nesta pág) ameaça corroer a renda do capital a juro, finalidade primordial de uma nação, no entender do jornalismo embarcado nos mercados.
O governo aquiesceu em uma ponta e outra.
Não inovou nesse aspecto.
A agenda fiscal brasileira foi sequestrada pelo rentismo há muito tempo.
Discute-se de tudo --carga excessiva, gestão deficiente dos gastos, superávit insuficiente, maquiagens etc.
Menos o custo do próprio rentismo para o país.
Em média, o preço da supremacia financeira sobre a agenda fiscal custa R$ 200 bilhões por ano.
Cerca de 5% do PIB em juros pagos aos detentores de títulos da dívida pública.
Equivale a mais de dez vezes o custo do Bolsa Família que beneficia 13 milhões de famílias, 52 milhões de pessoas.
É quatro vezes mais o que supostamente custaria a implantação da tarifa zero no transporte coletivo das grandes cidades brasileiras.
Treze vezes o que o programa ‘Mais Médicos’ deve investir até 2014 em obras em 16 mil Unidades Básicas de Saúde; na aquisição de equipamentos para 5 mil unidades já existentes; com as reformas em 818 hospitais; para equipar outros 2,5 mil e providenciar melhorias nas instalações de 877 Unidades de Pronto Atendimento.
Repita-se: o dinheiro destinado ao rentismo em um ano daria para ampliar em 13 vezes a escala e a intensidade do programa ‘Mais Médicos’, atacando mais depressa as carências sabidas de infraestrutura e equipamentos de saúde.
Não serve de consolo, mas já foi pior.
No final do governo FHC, gastava-se quase 10% do PIB com juros.
O investimento público direto da União em logística e infraestrutura social era um traço.
Agora, o que a União investe oscila em torno de 1% do PIB (descontado o Minha Casa, Minha Vida).
Muito distante do desejável para uma sociedade que atingiu o ponto de saturação na convivência com serviços públicos insuficientes e de baixa qualidade.
A questão é saber quem vai amarrar o guizo no gato.
Dizer à população que, para cada um real destinado pela União a gerar escolas, hospitais e estradas, outros quatro vão para os bolsos da plutocracia rentista.
Naturalmente, não se trata de um capricho contábil.
A equação fiscal condensa uma correlação de forças.
Hoje ela reflete a supremacia das finanças desreguladas.
Não só aqui, mas em escala planetária, vive-se sob a coação permanente de fluxos voláteis de capitais, capazes de produzir a desestabilização de uma economia quando contrariados.
Inverter o jogo não se resume, assim, a uma mudança nas rubricas de receita/despesa.
Tampouco, porém, a equação pode ser naturalizada como uma fatalidade acima da história.
Aqueles que, a exemplo de Carta Maior, evocam espírito público da parte dos profissionais da medicina, diante da dimensão emergencial do ‘Mais Médicos’, não podem exigir menos da pátria rentista.
Mesmo sabendo de antemão que seu quociente de solidariedade é baixo.
Por certo, inferior a 0,38% dos cheques robustos que emite.
Essa era a alíquota da CPMF, derrubada em 2007, por um mutirão que reuniu a crème de la crème do espírito cidadão entre nós: a coalizão demotucana, os endinheirados e o jogral midiático conservador.
A ver.
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