Por Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa:
Ao contrário do que vem ocorrendo nas democracias liberais nas últimas décadas, inclusive em países nossos vizinhos da América Latina, no Brasil permanece interditado o debate público sobre o papel central que a mídia ocupa no processo democrático e a imperiosa necessidade de que jornais, revistas, rádio, televisão e internet se submetam a políticas públicas regulatórias garantidoras da universalidade da liberdade de expressão.
A mídia brasileira não debate publicamente a si mesma.
É verdade que seminários e eventos dos mais variados têm sido promovidos ou contam com o apoio ostensivo dos poucos grupos empresariais privados que controlam a mídia. O tema recorrente tem sido a liberdade de expressão equacionada, sem mais, com a liberdade da imprensa. Mesmo assim, esses seminários e eventos não constituem debate público. Preocupados em garantir os incríveis privilégios assimétricos que conquistaram historicamente e numa reafirmação de sua recusa à negociação democrática, esses grupos debatem, escutam e promovem apenas a sua própria voz. Perspectivas diferentes das suas não são ouvidas e tem sido sistematicamente caracterizadas como autoritárias, populistas e defensoras do controle e da censura estatal.
São vários os exemplos de recusa à negociação. Lembro três emblemáticos:
(1) o boicote da 1ª. Conferencia Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009. Sob a alegação de controle autoritário da organização e da pauta da Conferencia por parte do governo e da sociedade civil, os principais empresários de mídia tentaram sabotar a Conferencia e satanizaram ela própria e suas centenas de propostas como se constituíssem uma tentativa deliberada de cercear a liberdade de expressão.
(2) o Código Brasileiro de Telecomunicações – lei básica de referencia para a radiodifusão – completa meio século em 2012. Apesar da revolução tecnológica ocorrida nos últimos 50 anos, os que controlam o setor, não só se apegam às mesmas posições de quando a lei foi discutida e votada no Congresso Nacional no início da década de 60 do século passado, como se recusam a admitir a necessidade de sua substituição e, até mesmo, de debater publicamente a questão.
(3) depois de um longo e complicado processo de negociação na Assembleia Nacional Constituinte, foram inseridos na Constituição Federal princípios e normas para a comunicação social pendentes de legislação complementar. Decorridos mais de 24 anos da promulgação da Constituição Cidadã, a maioria desses princípios e normas continuam sem ser regulamentados em função da ação direta e/ou indireta dos grupos de mídia. Desta forma, não são cumpridos e, recentemente, alguns desses princípios e normas passaram a ser tratados como “instrumentos de censura estatal” por parte desses grupos.
Construção e enquadramento
É importante registrar que não são somente os empresários que tem interditado o debate público sobre a mídia. Sucessivos governos, salvo raras exceções como a convocação da 1ª. Conferencia Nacional de Comunicação ao término do segundo mandato do Presidente Lula, tem abdicado de suas responsabilidades de promover o debate público. A proposta de um marco regulatório para a mídia, inúmeras vezes anunciada, até o momento em que se escreve esse Prefácio (outubro de 2012), não se materializou e não foi, portanto, submetida a apreciação do Congresso Nacional.
O que de fato está em jogo quando se interdita o debate sobre a mídia? Onde se situa a raiz de todas essas questões? Qual a liberdade de expressão que tem sido defendida pelos grupos privados de mídia? Quais os conceitos e princípios que precisam ser debatidos publicamente para que a maioria da população se dê conta de que a liberdade de expressão é assunto de seu interesse direto e tem interferência na sua vida cotidiana?
O excelente A Corrupção da Opinião Pública, dos professores mineiros Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim, constitui tentativa pioneira de oferecer, mais do que respostas a essas questões, um roteiro atualizado e didaticamente organizado do que de melhor tem sido produzido sobre o tema, tanto no exterior quanto no Brasil.
Sua leitura, por outro lado, deixa clara a necessária tarefa – ainda por ser desenvolvida – de se descrever o enfrentamento histórico entre defensores e adversários da liberdade republicana no Brasil. A referencia inicial deverá ser o ano de 1808, quando tardiamente se instala aqui a Imprensa Régia e tem origem o surgimento do que mais tarde viria a ser chamado de opinião publica.
De imediato, A Corrupção da Opinião Pública oferece ao leitor(a) uma inédita referencia teórica e conceitual para que o debate público que ainda não foi feito possa finalmente ser instalado entre nós.
O leitor(a) desse livro compreenderá de maneira clara o porquê de, no Brasil, liberdade e liberdade de expressão constituírem conceitos em disputa e, ao mesmo tempo, princípios a ser defendidos em nome de uma democracia republicana.
Os adversários da isegoria, ao interditarem o debate público, conseguiram construir como significação dominante o entendimento de que estaríamos diante de uma batalha entre liberdade (liberdade de expressão) e censura do Estado (regulação).
Ademais, o vazio provocado pela ausência de propostas do governo e a impotência histórica dos (não) atores da sociedade civil fazem com que o campo de significações sobre o que de fato deveria estar em debate esteja hoje sob o controle exatamente dos opositores históricos da universalização da liberdade de expressão.
Na verdade, trata-se de velha e conhecida tática. Escolhe-se um princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se para seu campo de significação a questão em disputa. Como em política, apoiar uma posição significa estar contra outra, é preciso identificar um adversário, no caso, os inimigos da liberdade de expressão, por extensão, aqueles que querem a censura.
Torna-se necessário, portanto, que se convença a maioria da população de que “alguém” é contra a liberdade. Como os grupos de mídia (ainda) têm o poder de construir e “enquadrar” a agenda “pública”, eles apresentam a si mesmos como os grandes defensores da liberdade e da liberdade de expressão, em particular.
Convite implícito
Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e princípios constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para se negociar a regulação; não basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma atualização da legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição Federal nem com a liberdade de expressão. Nada é suficiente.
Ao usar como estratégia o bordão da ameaça constante de retorno à censura e de que a liberdade de expressão está em risco, os adversários da isegoria transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo e escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público – na maioria das vezes – só ocorre quando pautado pelos grupos privados de mídia e que, mesmo assim, uma imensa maioria da população dele continua historicamente excluída.
Contribuir para a mudança desse quadro histórico, diante da importância crítica que a liberdade republicana – democraticamente construída – assume nas democracias contemporâneas, é a razão básica pela qual A Corrupção da Opinião Pública foi escrito.
Esse objetivo terá sido alcançado na medida em que todos os atores envolvidos finalmente aceitem o convite implícito para um debate público democrático que se espera venha a acontecer no interesse coletivo. (Belo Horizonte, outubro de 2012).
A mídia brasileira não debate publicamente a si mesma.
É verdade que seminários e eventos dos mais variados têm sido promovidos ou contam com o apoio ostensivo dos poucos grupos empresariais privados que controlam a mídia. O tema recorrente tem sido a liberdade de expressão equacionada, sem mais, com a liberdade da imprensa. Mesmo assim, esses seminários e eventos não constituem debate público. Preocupados em garantir os incríveis privilégios assimétricos que conquistaram historicamente e numa reafirmação de sua recusa à negociação democrática, esses grupos debatem, escutam e promovem apenas a sua própria voz. Perspectivas diferentes das suas não são ouvidas e tem sido sistematicamente caracterizadas como autoritárias, populistas e defensoras do controle e da censura estatal.
São vários os exemplos de recusa à negociação. Lembro três emblemáticos:
(1) o boicote da 1ª. Conferencia Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009. Sob a alegação de controle autoritário da organização e da pauta da Conferencia por parte do governo e da sociedade civil, os principais empresários de mídia tentaram sabotar a Conferencia e satanizaram ela própria e suas centenas de propostas como se constituíssem uma tentativa deliberada de cercear a liberdade de expressão.
(2) o Código Brasileiro de Telecomunicações – lei básica de referencia para a radiodifusão – completa meio século em 2012. Apesar da revolução tecnológica ocorrida nos últimos 50 anos, os que controlam o setor, não só se apegam às mesmas posições de quando a lei foi discutida e votada no Congresso Nacional no início da década de 60 do século passado, como se recusam a admitir a necessidade de sua substituição e, até mesmo, de debater publicamente a questão.
(3) depois de um longo e complicado processo de negociação na Assembleia Nacional Constituinte, foram inseridos na Constituição Federal princípios e normas para a comunicação social pendentes de legislação complementar. Decorridos mais de 24 anos da promulgação da Constituição Cidadã, a maioria desses princípios e normas continuam sem ser regulamentados em função da ação direta e/ou indireta dos grupos de mídia. Desta forma, não são cumpridos e, recentemente, alguns desses princípios e normas passaram a ser tratados como “instrumentos de censura estatal” por parte desses grupos.
Construção e enquadramento
É importante registrar que não são somente os empresários que tem interditado o debate público sobre a mídia. Sucessivos governos, salvo raras exceções como a convocação da 1ª. Conferencia Nacional de Comunicação ao término do segundo mandato do Presidente Lula, tem abdicado de suas responsabilidades de promover o debate público. A proposta de um marco regulatório para a mídia, inúmeras vezes anunciada, até o momento em que se escreve esse Prefácio (outubro de 2012), não se materializou e não foi, portanto, submetida a apreciação do Congresso Nacional.
O que de fato está em jogo quando se interdita o debate sobre a mídia? Onde se situa a raiz de todas essas questões? Qual a liberdade de expressão que tem sido defendida pelos grupos privados de mídia? Quais os conceitos e princípios que precisam ser debatidos publicamente para que a maioria da população se dê conta de que a liberdade de expressão é assunto de seu interesse direto e tem interferência na sua vida cotidiana?
O excelente A Corrupção da Opinião Pública, dos professores mineiros Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim, constitui tentativa pioneira de oferecer, mais do que respostas a essas questões, um roteiro atualizado e didaticamente organizado do que de melhor tem sido produzido sobre o tema, tanto no exterior quanto no Brasil.
Sua leitura, por outro lado, deixa clara a necessária tarefa – ainda por ser desenvolvida – de se descrever o enfrentamento histórico entre defensores e adversários da liberdade republicana no Brasil. A referencia inicial deverá ser o ano de 1808, quando tardiamente se instala aqui a Imprensa Régia e tem origem o surgimento do que mais tarde viria a ser chamado de opinião publica.
De imediato, A Corrupção da Opinião Pública oferece ao leitor(a) uma inédita referencia teórica e conceitual para que o debate público que ainda não foi feito possa finalmente ser instalado entre nós.
O leitor(a) desse livro compreenderá de maneira clara o porquê de, no Brasil, liberdade e liberdade de expressão constituírem conceitos em disputa e, ao mesmo tempo, princípios a ser defendidos em nome de uma democracia republicana.
Os adversários da isegoria, ao interditarem o debate público, conseguiram construir como significação dominante o entendimento de que estaríamos diante de uma batalha entre liberdade (liberdade de expressão) e censura do Estado (regulação).
Ademais, o vazio provocado pela ausência de propostas do governo e a impotência histórica dos (não) atores da sociedade civil fazem com que o campo de significações sobre o que de fato deveria estar em debate esteja hoje sob o controle exatamente dos opositores históricos da universalização da liberdade de expressão.
Na verdade, trata-se de velha e conhecida tática. Escolhe-se um princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se para seu campo de significação a questão em disputa. Como em política, apoiar uma posição significa estar contra outra, é preciso identificar um adversário, no caso, os inimigos da liberdade de expressão, por extensão, aqueles que querem a censura.
Torna-se necessário, portanto, que se convença a maioria da população de que “alguém” é contra a liberdade. Como os grupos de mídia (ainda) têm o poder de construir e “enquadrar” a agenda “pública”, eles apresentam a si mesmos como os grandes defensores da liberdade e da liberdade de expressão, em particular.
Convite implícito
Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e princípios constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para se negociar a regulação; não basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma atualização da legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição Federal nem com a liberdade de expressão. Nada é suficiente.
Ao usar como estratégia o bordão da ameaça constante de retorno à censura e de que a liberdade de expressão está em risco, os adversários da isegoria transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo e escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público – na maioria das vezes – só ocorre quando pautado pelos grupos privados de mídia e que, mesmo assim, uma imensa maioria da população dele continua historicamente excluída.
Contribuir para a mudança desse quadro histórico, diante da importância crítica que a liberdade republicana – democraticamente construída – assume nas democracias contemporâneas, é a razão básica pela qual A Corrupção da Opinião Pública foi escrito.
Esse objetivo terá sido alcançado na medida em que todos os atores envolvidos finalmente aceitem o convite implícito para um debate público democrático que se espera venha a acontecer no interesse coletivo. (Belo Horizonte, outubro de 2012).
* Prefácio de A corrupção da opinião pública – Uma defesa republicana da liberdade de expressão, de Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim, 144 pp., Editora Boitempo, 2013; R$ 30; título e intertítulos do OI
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