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Depois de anos de abuso do recurso adversativo – ‘país vai bem, mas...’ – o jornalismo de economia agora se agarra ao verbo ‘surpreender’. E nele equilibra precariamente a sua credibilidade.
Por exemplo: a FGV informa nesta 3ª feira que a confiança do consumidor na economia é a maior em cinco meses.
A notícia colide com as previsões alarmistas veiculadas nos últimos meses.
Não só ela.
O PIB também 'surpreendeu' no segundo trimestre, resmungaram as manchetes diante do crescimento econômico bem acima do previsto pelo noticioso isento: 3,3% em relação a igual período de 2012.
O emprego foi outra variável que ‘surpreendeu’ em agosto, com um salto de 26% na oferta de vagas formais.
A arrecadação tributária manifestou também o seu desacordo, nesta 2ª feira, com as previsões cinzentas da emissão conservadora.
A receita atingiu valor recorde no mês passado, com alta da ordem de 3% sobre agosto de 2012.
‘Surpreendeu’, apesar dos R$ 51 bi em desonerações concedidas para fomentar a produção. Intervencionismo, de resto, inaceitável, pelos critérios da mídia financeirizada, que há anos vaticina o desequilíbrio fiscal ‘iminente’ causado pela ‘gastança petista’.
Para surpresa dos seus leitores, não foi o que ocorreu até agora.
A sequência é infernal.
Antes, ainda, as manchetes já haviam manifestado surpresa com a volta da inflação ao limite da meta do BC, em julho e agosto.
E os consumidores não param de teimar.
Em movimento quase paradoxal, eles reduziram a inadimplência e aumentaram as compras.
O comércio varejista brasileiro ‘surpreendeu’, com avanço de 1,4% de janeiro a agosto, frente ao mesmo período de 2012, desdenharam as manchetes na semana passada.
Por fim, a contrariedade atravessou a fronteira para atazanar a vida dos pregoeiros do colapso.
Ben Bernanke, o presidente do Banco Central norte-americano, o Fed, pirraceou na 4ª feira passada.
O incentivo à liquidez nos EUA não vai acabar tão cedo, anunciou sem precisar o novo horizonte, que pode varar 2014.
Colunistas que saboreavam a inevitável escalada da Selic, para conter o efeito da pressão cambial, associada a alta dos juros nos EUA, engoliram em seco e concederam:
‘O Fed surpreendeu’.
A presença recorrente do efeito surpresa nas manchetes não deve ser entendida como sintoma do que não é.
O país tem problemas estruturais sérios.
Mas não exatamente aqueles listados pela mídia que se espanta com a inconsequência de seus vereditos e a baixa aderência de suas 'soluções'.
A engrenagem econômica brasileira se ressente de mortífera sobrevalorização cambial que inibe exportações e transfere demanda para o exterior.
As contas externas sofrem, ademais, com a erosão nas cotações das commodities.
O parque industrial, defasado tecnologicamente, está vendo suas cadeias serem esfareladas pela invasão dos importados.
A infraestrutura grita e o modelo de investimento necessário à aceleração das grandes obras tarda.
Falta, sobretudo, uma estratégia política pactuada com a sociedade para vencer a transição entre uma economia pensada para 1/3 da população, e aquela requerida agora que o mercado de massa atingiu uma escala estruturante no Brasil.
Ao contrário do que sugere a pregação midiática, o desafio reside justamente em construir alternativas à matriz anacrônica da liberalização, sobretudo dos fluxos de capitais, que sonega consistência a qualquer projeto de desenvolvimento.
Isso já era verdade na reunião de Bretton Woods, em 1944.
Um certo John Maynard Keynes dizia, então, que mesmo nos marcos do capitalismo, que afinal era o seu foco, não se pode servir a três deuses ao mesmo tempo.
A saber: a liberdade de capitais; o livre comércio e a autonomia da política monetária – leia-se, a definição da taxa de juro, espoleta decisiva de um ciclo de investimento.
Um exemplo ilustra o quanto a lição ainda é atual.
Ao primeiro sinal de recuo nas injeções de liquidez nos EUA, o BC brasileiro foi impelido a elevar os juros.
Para preservar a atratividade do país diante de capitais ariscos, deu uma paulada na variável que pode reverter a natureza do capital especulativo em produtivo.
E vice versa, como neste caso.
Compreender o papel que joga o monopólio midiático nessa encruzilhada é crucial para reagir com eficácia ao cerco da agenda conservadora.
Em que medida é possível estruturar a agenda do desenvolvimento, centrando esforços no plano exclusivamente econômico, como tem sido feito, sem alterar o desequilíbrio clamoroso na difusão das ideias?
Em que medida a manipulação do discernimento social, condicionado por esférica máquina de difusão de interesses rentistas, restringe a própria palheta de soluções para a crise?
Recapitulemos.
Vivemos há cinco anos o maior colapso do capitalismo desde 1929.
Obra-prima do credo no Estado mínimo, associada à delegação suicida do destino da sociedade aos mercados autorreguláveis.
Restituir ao Estado o seu papel –o que inclui, entre outras obrigações, o controle de capitais, para proteger a economia dos solavancos das finanças globalizadas-- é parte da solução.
Sacrificada, porém, no altar da desregulação, pelo mesmo jornalismo que, ora enfatiza as adversativas, ora flexiona ardilosamente o verbo ‘surpreender’.
Quase como se fosse um sinônimo de desmentido.
Não de suas premissas.
Mas da própria realidade, que ele tudo fará para desautorizar.
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