Por Saul Leblon, no sítio Carta Maior:
Angela Merkel ruma ao seu terceiro mandato depois de haver reduzido a falência da União Europeia a um conflito entre ‘povos indolentes’ – ‘gente como os grego-ibéricos, que se aposenta cedo, dorme tarde e gosta de tirar férias’ – e os laboriosos e austeros germânicos.
Há que se reconhecer competência na elaboração discursiva da líder da UCD , a conservadora União Democrata-Cristã alemã.
Frau Merkel jogou para a esfera da moralidade aquilo que remete aos defeitos da matriz neoliberal que fundou e afundou a União Europeia.
Quais sejam: a viciosa combinação de mercados desregulados e pró-cíclicos, o desarmamento fiscal e o liberou geral entre credores e tomadores no ciclo de alta liquidez internacional.
Instada a se defrontar com o espelho trincado de sua própria extração histórica, Merkel optou por demonizar e escalpelar a devassidão do caráter, intrínseca a latitudes e longitudes ensolaradas.
A austeridade decorrente dessa elaboração, que junta preconceito e interesses de mercado, estala o relho do desemprego nas costas de mais de 27 milhões de pessoas no continente europeu nesse momento.
Um círculo vicioso de arrocho social, demência fiscal e privilégio às finanças promove o réquiem da iniciativa política num continente onde a política estendeu o mais longe possível as prerrogativas do Estado do Bem Estar Social.
A fome está de volta à sociedade que imaginava tê-la erradicado com a exuberância da produção agrícola do pós- guerra, associada à rede de proteção social.
Segundo a Oxfam, ONG presente em 100 países, em 2011 havia 120 milhões de pobres na União Europeia.
O contingente dos deserdados pode crescer entre 15 e 25 milhões até 2025, adverte a organização, se a austeridade não for derrotada.
As taxas de desemprego triplicaram na Espanha e na Grécia nos últimos seis anos.
Elas atingem 42% entre os jovens em Portugal; 56% na Espanha e 59% na Grécia.
A predominar a purga cobrada por Frau Merkel, o mercado de trabalho dificilmente irá mudar.
A busca do equilíbrio fiscal galopa uma aritmética classista, que tem na Inglaterra, do engomadinho Cameron, a sua referência de rigidez.
A fórmula obedece à seguinte proporção: de cada 100 unidades de redução do déficit, 85 devem resultar de cortes em gastos sociais e investimentos.
Apenas 15 apoia-se na elevação de impostos sobre os mais ricos.
Para que a conta de chegar se efetive, o conservadorismo britânico prevê cortar 1 milhão e 100 mil empregos do setor público até 2018.
A exceção alemã numa terra devastada, ademais de suspeita, assenta-se igualmente em mecânica perversa.
Frau Merkel gaba-se de ter acrescentado 1,4 milhão de vagas ao mercado de trabalho germânico no século 21.
O feito encobre uma aritmética ardilosa. Desde 2000, a classe trabalhadora alemã perdeu 1,6 milhão vagas de tempo integral, com direitos plenos.
Substituídas por 3 milhões de contratações em regime precário, de tempo parcial.
O salário mínimo (hora/trabalho) do semi-emprego alemão só não é pior que o dos EUA, de Obama.
É no alicerce das ruínas trabalhistas que repousa o sucesso das exportações germânicas, cantadas em redondilhas pelo jogral conservador aqui e alhures.
Exportando arrocho, o colosso alemão consegue vender mais do que consome internamente.
A fórmula espalha desemprego e ‘bons costumes’ ao resto do mundo.
Como se vê, também dá votos e prestígio a Merkel.
O ‘modelo alemão’, todavia, traz no DNA o traço de um esgotamento histórico que o torna inimitável: se todos acionarem o moedor de carne de Frau Merkel, quem vai comprar o excesso de salsicha?
A ortodoxia brasileira se recusa a fazer as contas.
E insiste em trazer ao país a caixa de ferramentas made in germany.
A América Latina já provou dessa poção.
Com resultados desastrosos.
Sob o efeito sequencial da crise da dívida externa, anos 80, e do ajuste neoliberal na década seguinte, capitaneado aqui pelo PSDB, a renda per capita latino-americana regrediu, em média, 15 anos.
Em 2000, a taxa desigualdade regional atingiu seu recorde histórico: a porcentagem de pobres saltou de 40,5%, em 1980, para cerca de 48%.
Até 2005, as taxas de pobreza permaneciam em níveis superiores às de 1980.
Ou seja, a América Latina levou 25 anos para recuperar o patamar de pobreza anterior à crise da dívida externa, lembra a mesma Oxfam.
Soa desconcertante, assim, após uma década de avanços econômicos e sociais, que o conservadorismo nativo – a exemplo de Frau Merkel—tente reduzir os desafios atuais do desenvolvimento brasileiro a uma questão moral.
Nossos ‘gregos’, segundo eles, seriam os ’mensaleiros’.
Desobrigam-se assim de discutir questões substantivas para as quais as respostas são um tanto mais complexas .
Entre elas, como assegurar certa estabilidade cambial em uma quadra em que a manipulação da liquidez pelos países ricos incide direta e abruptamente sobre as contas externas e os índices de preços das nações e desenvolvimento.
A omissão tem lógica.
Combinar estabilidade cambial com a sacrossanta mobilidade de capitais e a autonomia monetária constitui uma espécie de ‘cubo mágico’ do capitalismo.
Uma combinação imiscível nos seus próprios termos.
Uma impossibilidade intrínseca às economias de mercado avessas à coordenação pública da economia e ao papel indutor do Estado no desenvolvimento.
Justamente o modelo preconizado pelo conservadorismo como panaceia para os problemas brasileiros.
O economista e estudioso da globalização, Dani Rodrik, sobrepõe a esse dilema clássico, outro de natureza política, que condensa a falência da agenda conservadora em nosso tempo.
Rodrik chama a atenção para a incompatibilidade histórica entre globalização, democracia e soberania nacional.
O que o prestigiado economista turco está dizendo é que o cuore da liberalização financeira e comercial é incompatível com soberania econômica e democrática da sociedade.
Esse desassossego entre as urnas e os livres mercados --que torna imprescindível a presença do Estado na agenda do desenvolvimento-- impede que os seguidores nativos de Merkel, a exemplo da inspiradora, discutam seriamente os desafios econômicos atuais.
Resta-lhe o campo do moralismo.
Nele, a caça às bruxas resume, figurativamente, a aderência de suas ideias à realidade.
Angela Merkel ruma ao seu terceiro mandato depois de haver reduzido a falência da União Europeia a um conflito entre ‘povos indolentes’ – ‘gente como os grego-ibéricos, que se aposenta cedo, dorme tarde e gosta de tirar férias’ – e os laboriosos e austeros germânicos.
Há que se reconhecer competência na elaboração discursiva da líder da UCD , a conservadora União Democrata-Cristã alemã.
Frau Merkel jogou para a esfera da moralidade aquilo que remete aos defeitos da matriz neoliberal que fundou e afundou a União Europeia.
Quais sejam: a viciosa combinação de mercados desregulados e pró-cíclicos, o desarmamento fiscal e o liberou geral entre credores e tomadores no ciclo de alta liquidez internacional.
Instada a se defrontar com o espelho trincado de sua própria extração histórica, Merkel optou por demonizar e escalpelar a devassidão do caráter, intrínseca a latitudes e longitudes ensolaradas.
A austeridade decorrente dessa elaboração, que junta preconceito e interesses de mercado, estala o relho do desemprego nas costas de mais de 27 milhões de pessoas no continente europeu nesse momento.
Um círculo vicioso de arrocho social, demência fiscal e privilégio às finanças promove o réquiem da iniciativa política num continente onde a política estendeu o mais longe possível as prerrogativas do Estado do Bem Estar Social.
A fome está de volta à sociedade que imaginava tê-la erradicado com a exuberância da produção agrícola do pós- guerra, associada à rede de proteção social.
Segundo a Oxfam, ONG presente em 100 países, em 2011 havia 120 milhões de pobres na União Europeia.
O contingente dos deserdados pode crescer entre 15 e 25 milhões até 2025, adverte a organização, se a austeridade não for derrotada.
As taxas de desemprego triplicaram na Espanha e na Grécia nos últimos seis anos.
Elas atingem 42% entre os jovens em Portugal; 56% na Espanha e 59% na Grécia.
A predominar a purga cobrada por Frau Merkel, o mercado de trabalho dificilmente irá mudar.
A busca do equilíbrio fiscal galopa uma aritmética classista, que tem na Inglaterra, do engomadinho Cameron, a sua referência de rigidez.
A fórmula obedece à seguinte proporção: de cada 100 unidades de redução do déficit, 85 devem resultar de cortes em gastos sociais e investimentos.
Apenas 15 apoia-se na elevação de impostos sobre os mais ricos.
Para que a conta de chegar se efetive, o conservadorismo britânico prevê cortar 1 milhão e 100 mil empregos do setor público até 2018.
A exceção alemã numa terra devastada, ademais de suspeita, assenta-se igualmente em mecânica perversa.
Frau Merkel gaba-se de ter acrescentado 1,4 milhão de vagas ao mercado de trabalho germânico no século 21.
O feito encobre uma aritmética ardilosa. Desde 2000, a classe trabalhadora alemã perdeu 1,6 milhão vagas de tempo integral, com direitos plenos.
Substituídas por 3 milhões de contratações em regime precário, de tempo parcial.
O salário mínimo (hora/trabalho) do semi-emprego alemão só não é pior que o dos EUA, de Obama.
É no alicerce das ruínas trabalhistas que repousa o sucesso das exportações germânicas, cantadas em redondilhas pelo jogral conservador aqui e alhures.
Exportando arrocho, o colosso alemão consegue vender mais do que consome internamente.
A fórmula espalha desemprego e ‘bons costumes’ ao resto do mundo.
Como se vê, também dá votos e prestígio a Merkel.
O ‘modelo alemão’, todavia, traz no DNA o traço de um esgotamento histórico que o torna inimitável: se todos acionarem o moedor de carne de Frau Merkel, quem vai comprar o excesso de salsicha?
A ortodoxia brasileira se recusa a fazer as contas.
E insiste em trazer ao país a caixa de ferramentas made in germany.
A América Latina já provou dessa poção.
Com resultados desastrosos.
Sob o efeito sequencial da crise da dívida externa, anos 80, e do ajuste neoliberal na década seguinte, capitaneado aqui pelo PSDB, a renda per capita latino-americana regrediu, em média, 15 anos.
Em 2000, a taxa desigualdade regional atingiu seu recorde histórico: a porcentagem de pobres saltou de 40,5%, em 1980, para cerca de 48%.
Até 2005, as taxas de pobreza permaneciam em níveis superiores às de 1980.
Ou seja, a América Latina levou 25 anos para recuperar o patamar de pobreza anterior à crise da dívida externa, lembra a mesma Oxfam.
Soa desconcertante, assim, após uma década de avanços econômicos e sociais, que o conservadorismo nativo – a exemplo de Frau Merkel—tente reduzir os desafios atuais do desenvolvimento brasileiro a uma questão moral.
Nossos ‘gregos’, segundo eles, seriam os ’mensaleiros’.
Desobrigam-se assim de discutir questões substantivas para as quais as respostas são um tanto mais complexas .
Entre elas, como assegurar certa estabilidade cambial em uma quadra em que a manipulação da liquidez pelos países ricos incide direta e abruptamente sobre as contas externas e os índices de preços das nações e desenvolvimento.
A omissão tem lógica.
Combinar estabilidade cambial com a sacrossanta mobilidade de capitais e a autonomia monetária constitui uma espécie de ‘cubo mágico’ do capitalismo.
Uma combinação imiscível nos seus próprios termos.
Uma impossibilidade intrínseca às economias de mercado avessas à coordenação pública da economia e ao papel indutor do Estado no desenvolvimento.
Justamente o modelo preconizado pelo conservadorismo como panaceia para os problemas brasileiros.
O economista e estudioso da globalização, Dani Rodrik, sobrepõe a esse dilema clássico, outro de natureza política, que condensa a falência da agenda conservadora em nosso tempo.
Rodrik chama a atenção para a incompatibilidade histórica entre globalização, democracia e soberania nacional.
O que o prestigiado economista turco está dizendo é que o cuore da liberalização financeira e comercial é incompatível com soberania econômica e democrática da sociedade.
Esse desassossego entre as urnas e os livres mercados --que torna imprescindível a presença do Estado na agenda do desenvolvimento-- impede que os seguidores nativos de Merkel, a exemplo da inspiradora, discutam seriamente os desafios econômicos atuais.
Resta-lhe o campo do moralismo.
Nele, a caça às bruxas resume, figurativamente, a aderência de suas ideias à realidade.
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