Por Silvio Caccia Bava, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Durante a redação da Constituinte norte-americana de 1787, James Madison, um de seus principais elaboradores e, posteriormente, presidente dos Estados Unidos, defendia a democracia junto a seus pares porque ela era a melhor maneira de defender os ricos e suas propriedades da pressão redistributiva dos pobres.
O pensamento liberal que inspirava James Madison considerava que os únicos que podiam assumir funções políticas - no Parlamento, no Executivo e no Judiciário - eram os proprietários. Era a afirmação da burguesia no poder. Uma nova classe criava então seu pensamento político e um sistema democrático que buscava garantir sua hegemonia política e sua permanência no poder.
Passaram-se mais de duzentos anos e o sistema político democrático liberal mudou pouco. Mas as lutas sociais do século XX acabaram por forçar a ampliação do conceito de cidadania, levando muitos países a adotar o sufrágio universal, o voto direto e secreto por parte dos cidadãos. E nesse novo cenário surgiram novos atores sociais e políticos, os trabalhadores se organizaram e entraram em cena, promoveram revoluções em muitas partes do mundo. O bloco soviético e a doutrina socialista tornaram-se uma constante ameaça para a burguesia no poder. Sob a pressão dos movimentos sociais, depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa construiu o Estado de bem-estar social, reconhecendo e garantindo direitos sociais, oferecendo políticas públicas universais de qualidade que asseguravam proteção social e boa qualidade de vida para todos.
Para enfrentar essa "perda de controle" do processo democrático por parte das elites econômicas, na segunda metade do século XX o neoliberalismo passou a propor a separação entre economia e política.
O processo econômico, liderado e conduzido por uma coalizão dos grandes grupos financeiros e industriais, correu com autonomia e em paralelo ao mundo da política, este último encarregado de construir a legitimidade dos governantes e administrar as pressões sociais, garantindo o status quo, isto é, a continuidade da democracia liberal e dos processos de eleição que asseguravam a manutenção das elites no poder.
Sob a hegemonia do pensamento neoliberal, a sociedade se organizou não para atender aos interesses das maiorias, mas para satisfazer as demandas dos grupos financeiros e industriais no poder. Para privilegiar os interesses dessa elite econômica, estabeleceu-se uma sabotagem sistemática dos interesses públicos, os interesses da coletividade. O desvio dos recursos públicos para favorecer os grandes negócios, mediante processos de suborno e corrupção que chegam até os dias de hoje, foi o modo dominante para assegurar privilégios. A corrupção tornou-se um procedimento sistemático, constitutivo da forma de fazer política em benefício das elites.
As consequências sociais da livre ação dos grandes conglomerados financeiros e industriais sobre as sociedades em que atuam são devastadoras, aumentando cada vez mais o fosso entre um punhado de ricos, e a grande maioria, cada vez mais privada de suas mínimas condições de vida.
Sem capacidade para processar os conflitos de interesses cada vez mais agudos entre o 1% e os 99%, como denunciam os movimentos Occupy, a democracia liberal, assim como os partidos políticos submetidos à sua lógica, perdeu legitimidade e abriu espaço para novas experimentações.
Novamente a realidade política escapa ao controle das elites e se acirra a disputa pela hegemonia. Essa disputa se dá tanto no plano das ideias quanto no plano da luta social e da formulação de novas políticas públicas. Um novo projeto de sociedade é defendido pelos indignados na Europa; pelos Occupy, nos Estados Unidos; pelos movimentos sociais na América Latina, que há cerca de quinze anos começaram a primeira Primavera. A segunda foi a Primavera Árabe.
Pois bem, esse projeto que se anuncia busca submeter a economia ao controle e direção democráticos, com vistas a priorizar o interesse das maiorias e preservar as condições ambientais, e não mais privilegiar os grandes grupos empresariais e financeiros. Evidentemente, o próprio conceito de democracia também mudou nessa nova disputa. Ele expressa as esperanças e sonhos de todos os despossuídos do planeta, que lutam pela criação social de novos direitos. Abre-se o espaço para o questionamento das atuais instituições e a invenção democrática.
* Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
Durante a redação da Constituinte norte-americana de 1787, James Madison, um de seus principais elaboradores e, posteriormente, presidente dos Estados Unidos, defendia a democracia junto a seus pares porque ela era a melhor maneira de defender os ricos e suas propriedades da pressão redistributiva dos pobres.
O pensamento liberal que inspirava James Madison considerava que os únicos que podiam assumir funções políticas - no Parlamento, no Executivo e no Judiciário - eram os proprietários. Era a afirmação da burguesia no poder. Uma nova classe criava então seu pensamento político e um sistema democrático que buscava garantir sua hegemonia política e sua permanência no poder.
Passaram-se mais de duzentos anos e o sistema político democrático liberal mudou pouco. Mas as lutas sociais do século XX acabaram por forçar a ampliação do conceito de cidadania, levando muitos países a adotar o sufrágio universal, o voto direto e secreto por parte dos cidadãos. E nesse novo cenário surgiram novos atores sociais e políticos, os trabalhadores se organizaram e entraram em cena, promoveram revoluções em muitas partes do mundo. O bloco soviético e a doutrina socialista tornaram-se uma constante ameaça para a burguesia no poder. Sob a pressão dos movimentos sociais, depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa construiu o Estado de bem-estar social, reconhecendo e garantindo direitos sociais, oferecendo políticas públicas universais de qualidade que asseguravam proteção social e boa qualidade de vida para todos.
Para enfrentar essa "perda de controle" do processo democrático por parte das elites econômicas, na segunda metade do século XX o neoliberalismo passou a propor a separação entre economia e política.
O processo econômico, liderado e conduzido por uma coalizão dos grandes grupos financeiros e industriais, correu com autonomia e em paralelo ao mundo da política, este último encarregado de construir a legitimidade dos governantes e administrar as pressões sociais, garantindo o status quo, isto é, a continuidade da democracia liberal e dos processos de eleição que asseguravam a manutenção das elites no poder.
Sob a hegemonia do pensamento neoliberal, a sociedade se organizou não para atender aos interesses das maiorias, mas para satisfazer as demandas dos grupos financeiros e industriais no poder. Para privilegiar os interesses dessa elite econômica, estabeleceu-se uma sabotagem sistemática dos interesses públicos, os interesses da coletividade. O desvio dos recursos públicos para favorecer os grandes negócios, mediante processos de suborno e corrupção que chegam até os dias de hoje, foi o modo dominante para assegurar privilégios. A corrupção tornou-se um procedimento sistemático, constitutivo da forma de fazer política em benefício das elites.
As consequências sociais da livre ação dos grandes conglomerados financeiros e industriais sobre as sociedades em que atuam são devastadoras, aumentando cada vez mais o fosso entre um punhado de ricos, e a grande maioria, cada vez mais privada de suas mínimas condições de vida.
Sem capacidade para processar os conflitos de interesses cada vez mais agudos entre o 1% e os 99%, como denunciam os movimentos Occupy, a democracia liberal, assim como os partidos políticos submetidos à sua lógica, perdeu legitimidade e abriu espaço para novas experimentações.
Novamente a realidade política escapa ao controle das elites e se acirra a disputa pela hegemonia. Essa disputa se dá tanto no plano das ideias quanto no plano da luta social e da formulação de novas políticas públicas. Um novo projeto de sociedade é defendido pelos indignados na Europa; pelos Occupy, nos Estados Unidos; pelos movimentos sociais na América Latina, que há cerca de quinze anos começaram a primeira Primavera. A segunda foi a Primavera Árabe.
Pois bem, esse projeto que se anuncia busca submeter a economia ao controle e direção democráticos, com vistas a priorizar o interesse das maiorias e preservar as condições ambientais, e não mais privilegiar os grandes grupos empresariais e financeiros. Evidentemente, o próprio conceito de democracia também mudou nessa nova disputa. Ele expressa as esperanças e sonhos de todos os despossuídos do planeta, que lutam pela criação social de novos direitos. Abre-se o espaço para o questionamento das atuais instituições e a invenção democrática.
* Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
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