Por Breno Altman
A comoção provocada pela morte do cinegrafista Santiago Andrade tem produzido importantes debates sobre violência política. Um dos focos dessa discussão é desmascarar a prática black bloc como veneno no interior de alguns movimentos sociais, ao sabor dos que desejam criminalizar a mobilização popular e tonificar o aparato repressivo do Estado.
Somam-se a esta tática mascarada tanto uma franja niilista, marginal e bem-vestida da juventude quanto a infiltração policial, com o apoio da mão de gato do conservadorismo. A todos une a ideia do caos. Para os garotos da baderna, fuzarca é a alegoria do que entendem por rebelião. No dicionário dos marmanjos da reação, significa chance para desgastar o governo às vésperas de eleições presidenciais.
Não é novidade histórica. Casos de conduta similar são numerosos. Na Comuna de Paris, em 1871, a burguesia francesa abriu as portas das cadeias, oferecendo a determinados presos o caminho da liberdade em troca de tocarem o rebu nas ruas governadas pelo proletariado francês. Agregado aos provocadores policiais, um razoável número de delinquentes deu os braços a certas correntes anarquistas e, juntos, barbarizaram a autoridade das instituições comunais. De bandeja, serviram o pretexto que ampliou a audiência do discurso de restauração da ordem, finalmente imposta pela aliança entre o exército alemão e as elites locais, que esmagou a Comuna.
Não resta dúvida, portanto, que os black blocs são erva daninha a ser extirpada das lutas sociais. Na melhor das hipóteses, praticam esbulho de representatividade ao assumir papel violento que não lhes foi delegado por ninguém, favorecendo os mais tresloucados inimigos do povo. Na pior, comportam-se como criminosos rasteiros e devem ser punidos como manda a lei. Os indivíduos que cometerem atos delituosos devem ser identificados, detidos e levados às barras dos tribunais.
Outra coisa, porém, é responder ao fenômeno da violência de grupos minoritários com o recrudescimento da repressão estatal e adoção de legislação especial. Assim estão atuando, por exemplo, senadores – incluindo o petista Jorge Viana, do Acre – desejosos de acelerar a aprovação da Lei Antiterrorista, que endurece penas e tipifica situações excepcionais de combate ao protesto tido como violento.
Afora demagogia com a morte, a iniciativa deve ser condenada por ser um atentado contra a democracia. Compreensível que o assassinato de um trabalhador estimule sensação, entre diversos setores da sociedade, de que algo precisa ser feito para evitar que a tragédia se repita. Mas não é aceitável que a resposta faça o jogo da direita mais vulgar, cuja lógica é fortalecer as casamatas judiciárias e policiais do Estado, em detrimento da participação cidadã e da soberania popular.
O conservadorismo, portanto, sabe bem o que quer e dispõe suas peças com coerência. Mas homens e mulheres progressistas, quando caem nesta esparrela, cometem – ou repetem – erros históricos.
O primeiro entre estes equívocos é aceitar o diagnóstico de que exista uma epidemia de violência política no país, fruto da guerra psicológica diuturna que a velha mídia trava contra o PT e o governo. Medidas especiais são apenas para cenários extraordinários. Estamos diante de casos graves, porém pontuais e isolados, que podem ser adequadamente enfrentados pelas leis e instituições atualmente disponíveis. Ao comprar a análise do caos, quem o faz ajuda a destacar agenda que interessa às forças reacionárias.
O segundo erro é não compreender que a ação de patotas marginais, como os black blocs, tem sua origem e é alimentada pela violência descontrolada das polícias militares estaduais, herança maldita da ditadura. A repressão às manifestações é o caldo de cultura no qual o anarquismo de boutique encontra alguma legitimidade política e social. Mais que isso: são as armas de agentes do Estado que, incomparavelmente, produzem mais vítimas e mortes. Leis que ampliem a repressão produzirão mais violência contra o povo em movimento. O que o país mais precisa é um esforço concentrado para desmilitarizar as polícias, denunciando e punindo seus abusos, como preâmbulo da repactuação no qual todas as classes e partidos renunciem à violência como instrumento de luta política.
O terceiro tropeço é a ignorância histórica. Ou é possível esquecer o que aconteceu na Espanha, durante o governo do socialista Felipe González, quando foi adotada a lei antiterrorista, para combater a guerrilha basca, liderada pela ETA? Primeiro, foram reprimidos os combatentes armados. Depois, todos os agrupamentos ou movimentos pacíficos acusados de serem simpáticos ou até de dialogarem com os insurgentes. Por fim, com os Grupos Antiterroristas de Libertação, os GAL, foi criado um esquadrão da morte clandestino para fazer o serviço sujo. Esse quadro, a propósito, foi um dos motivos que levou, naquele momento, à ruina do PSOE de González: para trilhar por esse caminho, o eleitorado prefere quem é historicamente do ramo.
Outros exemplos poderiam ser dados. Bastante conhecido é o caso norte-americano, após a aprovação do Patriot Act e a abertura da prisão de Guantánamo, em resposta aos atentados contra o World Trade Center, em 2001. O atropelo contra direitos civis passou a ser marca contemporânea da crescente limitação do regime de liberdades previsto na Constituição dos Estados Unidos.
São incontáveis, enfim, as evidências que leis repressivas, ao forjar cenários de exceção, são um câncer para a democracia, alimentando mecanismos de criminalização da participação popular e suas organizações. Nada poderia ser pior ao avanço do processo de reformas. Qualquer perspectiva de esquerda, não importa as circunstâncias, ou tem no protagonismo social o seu sal da terra ou estará fadada ao fracasso.
* Publicado originalmente no sítio Brasil-247. Breno Altman é diretor do site Opera Mundi
A comoção provocada pela morte do cinegrafista Santiago Andrade tem produzido importantes debates sobre violência política. Um dos focos dessa discussão é desmascarar a prática black bloc como veneno no interior de alguns movimentos sociais, ao sabor dos que desejam criminalizar a mobilização popular e tonificar o aparato repressivo do Estado.
Somam-se a esta tática mascarada tanto uma franja niilista, marginal e bem-vestida da juventude quanto a infiltração policial, com o apoio da mão de gato do conservadorismo. A todos une a ideia do caos. Para os garotos da baderna, fuzarca é a alegoria do que entendem por rebelião. No dicionário dos marmanjos da reação, significa chance para desgastar o governo às vésperas de eleições presidenciais.
Não é novidade histórica. Casos de conduta similar são numerosos. Na Comuna de Paris, em 1871, a burguesia francesa abriu as portas das cadeias, oferecendo a determinados presos o caminho da liberdade em troca de tocarem o rebu nas ruas governadas pelo proletariado francês. Agregado aos provocadores policiais, um razoável número de delinquentes deu os braços a certas correntes anarquistas e, juntos, barbarizaram a autoridade das instituições comunais. De bandeja, serviram o pretexto que ampliou a audiência do discurso de restauração da ordem, finalmente imposta pela aliança entre o exército alemão e as elites locais, que esmagou a Comuna.
Não resta dúvida, portanto, que os black blocs são erva daninha a ser extirpada das lutas sociais. Na melhor das hipóteses, praticam esbulho de representatividade ao assumir papel violento que não lhes foi delegado por ninguém, favorecendo os mais tresloucados inimigos do povo. Na pior, comportam-se como criminosos rasteiros e devem ser punidos como manda a lei. Os indivíduos que cometerem atos delituosos devem ser identificados, detidos e levados às barras dos tribunais.
Outra coisa, porém, é responder ao fenômeno da violência de grupos minoritários com o recrudescimento da repressão estatal e adoção de legislação especial. Assim estão atuando, por exemplo, senadores – incluindo o petista Jorge Viana, do Acre – desejosos de acelerar a aprovação da Lei Antiterrorista, que endurece penas e tipifica situações excepcionais de combate ao protesto tido como violento.
Afora demagogia com a morte, a iniciativa deve ser condenada por ser um atentado contra a democracia. Compreensível que o assassinato de um trabalhador estimule sensação, entre diversos setores da sociedade, de que algo precisa ser feito para evitar que a tragédia se repita. Mas não é aceitável que a resposta faça o jogo da direita mais vulgar, cuja lógica é fortalecer as casamatas judiciárias e policiais do Estado, em detrimento da participação cidadã e da soberania popular.
O conservadorismo, portanto, sabe bem o que quer e dispõe suas peças com coerência. Mas homens e mulheres progressistas, quando caem nesta esparrela, cometem – ou repetem – erros históricos.
O primeiro entre estes equívocos é aceitar o diagnóstico de que exista uma epidemia de violência política no país, fruto da guerra psicológica diuturna que a velha mídia trava contra o PT e o governo. Medidas especiais são apenas para cenários extraordinários. Estamos diante de casos graves, porém pontuais e isolados, que podem ser adequadamente enfrentados pelas leis e instituições atualmente disponíveis. Ao comprar a análise do caos, quem o faz ajuda a destacar agenda que interessa às forças reacionárias.
O segundo erro é não compreender que a ação de patotas marginais, como os black blocs, tem sua origem e é alimentada pela violência descontrolada das polícias militares estaduais, herança maldita da ditadura. A repressão às manifestações é o caldo de cultura no qual o anarquismo de boutique encontra alguma legitimidade política e social. Mais que isso: são as armas de agentes do Estado que, incomparavelmente, produzem mais vítimas e mortes. Leis que ampliem a repressão produzirão mais violência contra o povo em movimento. O que o país mais precisa é um esforço concentrado para desmilitarizar as polícias, denunciando e punindo seus abusos, como preâmbulo da repactuação no qual todas as classes e partidos renunciem à violência como instrumento de luta política.
O terceiro tropeço é a ignorância histórica. Ou é possível esquecer o que aconteceu na Espanha, durante o governo do socialista Felipe González, quando foi adotada a lei antiterrorista, para combater a guerrilha basca, liderada pela ETA? Primeiro, foram reprimidos os combatentes armados. Depois, todos os agrupamentos ou movimentos pacíficos acusados de serem simpáticos ou até de dialogarem com os insurgentes. Por fim, com os Grupos Antiterroristas de Libertação, os GAL, foi criado um esquadrão da morte clandestino para fazer o serviço sujo. Esse quadro, a propósito, foi um dos motivos que levou, naquele momento, à ruina do PSOE de González: para trilhar por esse caminho, o eleitorado prefere quem é historicamente do ramo.
Outros exemplos poderiam ser dados. Bastante conhecido é o caso norte-americano, após a aprovação do Patriot Act e a abertura da prisão de Guantánamo, em resposta aos atentados contra o World Trade Center, em 2001. O atropelo contra direitos civis passou a ser marca contemporânea da crescente limitação do regime de liberdades previsto na Constituição dos Estados Unidos.
São incontáveis, enfim, as evidências que leis repressivas, ao forjar cenários de exceção, são um câncer para a democracia, alimentando mecanismos de criminalização da participação popular e suas organizações. Nada poderia ser pior ao avanço do processo de reformas. Qualquer perspectiva de esquerda, não importa as circunstâncias, ou tem no protagonismo social o seu sal da terra ou estará fadada ao fracasso.
* Publicado originalmente no sítio Brasil-247. Breno Altman é diretor do site Opera Mundi
Ponderações importantes para meditarmos.
ResponderExcluirGostei do nível da discussão, com argumentos razoáveis, mas a lei que tipifica o terorismo é necessária. Tallvez o senador é que tenha se valido da ocasião, para apressar o projeto. Parabéns, companheiro.
ResponderExcluirMuita ingenuidade (?) achar que SÓ desmilitarizar a polícia (o que aliás é necessario) vai resolver os problemas da violência nas manifestações. E um absurdo não considerar que é preciso uma legislação que contemple essas situações, já que a existente é 'omissa' por não ter tido de lidar com isso anteriormente. Afinal, que solução milagrosa pretende o prezado articulista, então, para impedir que a impunidade continue oportunizando depredações, agressões e, agora, assassinatos?
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