quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O lobby contra a internet livre

Por Bruno Pavan, no jornal Brasil de Fato:

Tramitando desde 2009 na Câmara dos Deputados, a votação do projeto do Marco Civil da Internet foi adiada novamente na semana passada. Encarada como prioridade pelo governo federal, o projeto continuará trancando a pauta da Casa até depois do carnaval.

O Marco, uma espécie de “legislação da internet”, reúne pontos centrais como a garantia de liberdade de expressão, proteção de dados do usuário e a neutralidade da rede, e define algumas regras que terão que ser respeitadas por usuários e, principalmente, empresas de telefonia.

Muito elogiado por inúmeros especialistas nacionais e internacionais, o Marco é considerado um passo a frente que dará direitos aos mais de 100 milhões de usuários da rede mundial de computadores no Brasil.

“Ele garante que a internet siga livre e aberta para todos e impede que grandes corporações mudem o papel da internet no Brasil. Ele não é um projeto fechado, foi construído juntamente com setores da sociedade civil para que a web continue gerando novos conteúdos e se reinventando”, explicou o Conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) Sergio Amadeu.

O governo federal colocou urgência no projeto após as denúncias de Edward Snowden de que a Agência Americana de Segurança (NSA) espionava países pelo mundo. O problema foi levantado pela presidenta Dilma Rousseff na abertura de 68ª Conferência Mundial da ONU que defendeu o estabelecimento de um Marco multilateral para a governança e uso da internet entre os países.

Outros projetos de lei já buscavam colocar regras na internet. A “lei Carolina Dieckman” que transformou em crime a invasão de computadores e outros dispositivos eletrônicos é um dos mais famosos.

O mais antigo e polêmico é o projeto de lei nº 84 de 1999 do então senador Eduardo Azeredo (PSDB – MG). Ele obrigava os provedores a guardar dados de internautas e tornava crime o compartilhamento de arquivos pela internet. “O marco vai na contramão do que a Lei Azeredo pregava”, disse Amadeu.

A luta na Câmara

Há pelo menos 15 dias, a votação do projeto, que tranca a pauta da Câmara, está sendo adiada. Os maiores responsáveis pelo impasse são os parlamentares do PMDB, entre eles, o líder do partido na Casa, Eduardo Cunha (RN) e o lobby das empresas de telecomunicações.

“Essa indústria movimenta bilhões de reais e age diretamente no financiamento de várias campanhas. A Dilma pede urgência no pedido de votação, mas o principal articulador dela com o PMDB é o Eduardo Cunha, o maior crítico do projeto. Outro grande opositor é o próprio ministro Paulo Bernardo que recebeu prêmios das empresas como o maior ministro das Comunicações que o Brasil já teve”, analisou Amadeu.

Com um faturamento total de R$ 26 bilhões em 2013, as operadoras de telefonia e internet também figuram entre as campeãs em reclamações no estado de São Paulo de acordo com o Procon. Elas são contra a artigo 9º do projeto que reza que as operadoras de serviço “têm o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados sem distinção por conteúdo, origem, destino, serviço terminal ou aplicativo.”

Pedro Ekman, coordenador do Intervozes, explica melhor o que muda no acesso do usuário com a aprovação do Marco Civil. “São as operadoras, que detêm os cabos de fibra ótica, que nos ligam à internet, e elas não vão poder manipular esse sinal. O acesso gratuito ao Facebook é um caso típico: eles entram num acordo financeiro para que ele não seja tarifado. Mas podem pedagiar o acesso ao Netfl ix ou ao WhattsApp, por exemplo. Com o Marco eles não vão poder administrar a velocidade de acordo com o serviço, vai ser tudo igual”, esclareceu.

A estratégia das operadoras, de acordo com Sergio Amadeu, é vender um discurso que aproxime seus interesses dos mais pobres, o que não é verdade.

“O que estão querendo passar para a opinião pública é que eles usam essa manipulação nas informações para dar desconto em serviços. Eles conseguem um acesso grátis aqui e acolá com algumas empresas e sites. O que eles querem mesmo é transformar a internet em uma espécie de TV à cabo”, explicou.

Liberdade de expressão

A garantia de ampla liberdade de expressão na rede é também pauta da discussão do Marco Civil. Com a sua aprovação, sites que armazenam conteúdos não serão mais responsáveis por publicações de terceiros.

Com isso, sites como o Google, Facebook e Youtube só se tornarão responsáveis por um conteúdo postado neles após a Justiça declarar que eles devem ser retirados do ar.


Blogueiros independentes também são os maiores beneficiados com a medida, de acordo com Amadeu, pois suas postagens permanecerão armazenadas até que haja uma decisão judicial definitiva.

“O marco vai garantir que blogueiros e jornalistas independentes no Brasil sofram a censura privada, ou seja, a censura que os próprios servidores fazem para evitar problemas na justiça. O conteúdo só sai do ar se houver uma decisão judicial”, disse.

Porém, o relator do projeto, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) incorporou um artigo que permite que se retire conteúdo de nudez da rede sem que haja nenhuma decisão judicial. Isso, para Amadeu, abre um precedente perigoso.

“Sei que o artigo foi pensado nas melhores intenções, que é a de defender a privacidade de alguém que é exposto na rede sem que haja consenso. Por outro lado, fundamentalistas poderão denunciar fotos da Marcha das Vadias, por exemplo, que é um evento que luta contra o patriarcado, até elas saírem do ar. O evento pode ser alvo de ações orquestradas de setores da sociedade. O Facebook já retira todo e qualquer conteúdo de nudez sem o menor discernimento”, denuncia.

Segurança e Privacidade

O debate de segurança na internet vem ganhando importância, desde que Edward Snowden tornou público que a NSA viola a privacidade de milhões de pessoas e países pelo mundo.

Um ponto nebuloso no texto atual é sobre a questão dos datacenters. No projeto original, operadoras e sites seriam obrigados a armazenarem dados de internautas brasileiros em servidores no Brasil.

Isso, para Pedro Ekman, é ineficaz e não leva em conta o fato da internet ser uma rede global. “Isso não faz muito sentido e criticamos logo de cara. O que você escreve hoje noTwitter ou no Facebook pode ser compartilhado por usuários do mundo todo. É uma ilusão achar que essas informações ficarão só no Brasil”, criticou.

O marco também agirá na proteção dos logs de usuários da internet, que são registros das informações dos sites visitados. Existem dois tipos, os de conexão, que apenas registram a conexão do usuário; e os de aplicações, que registram os sites visitados, palavras pesquisadas entre outras informações.

São os logs de aplicações, por exemplo, que faz com que sites como o Google e oFacebook lhe enviem sugestões de compra ou de páginas de acordo com a sua preferência. O Marco Civil proíbe que as operadoras de acesso armazenem esse tipo de informação.

“Uma coisa que o Marco não conseguiu limitar foi o uso das informações do usuário porsites como o Facebook e o Google, por exemplo, que baseia as informações que te manda pelas suas pesquisas, pelas fotos e páginas que você curte. Mas o Marco proíbe os provedores de armazenar esses dados”, explicou Ekman.

Sobre o armazenamento dos logs de conexão, o artigo 16 aponta que as operadoras são obrigadas fazê-lo por seis meses podendo ser estendido para um ano somente por meio de uma ação judicial. Ekman acredita que essa medida vai contra o princípio do Marco, que era o de defender a privacidade e os dados dos usuários.

“É uma espécie de grampo obrigatório. O relator atendeu aos interesses da polícia para colocar esse artigo no Marco que usa como argumento o combate ao crime para transformar uma lógica que já existe em obrigatória. Trata todos como culpados até que se prove o contrário. Se a ideia do governo é que o marco responde ao episódio da espionagem estadunidense, esse artigo é um tiro no pé”, comentou.

Futuro

No dia 19 de fevereiro, mais uma tentativa de votação foi barrada pela bancada do PMDB. A acusação do líder Eduardo Cunha era a de que o governo se reuniu com as operadoras para alterar alguns pontos no texto sem discutir com os líderes na Câmara. Lideranças do PSDB e do DEM se uniram ao PMDB para impedir a votação.

O relator do texto, Alessandro Molon, refutou as acusações e declarou que o argumento de Cunha foi para atrapalhar novamente a votação do Marco. “O que houve no texto foi uma modificação apontando que as operadoras continuarão podendo negociar faixas de velocidade a preços diferentes. Isso não é nenhuma novidade”, declarou.

Ao contrário do que se veicula na mídia, Molon disse que a intenção do governo não é a de ceder na questão da neutralidade da rede. “Não há a menor possibilidade de recuo nessa questão. Dentro da velocidade contratada, o usuário terá liberdade total de fazer o que ele quiser e de acessar o serviço que for”, explicou.

O deputado acredita que a próxima tentativa acontecerá somente depois do carnaval, e que a matéria terá que ser votada custe o que custar. “Construímos um diálogo com vários setores da sociedade e com os partidos de oposição. Acredito que agora a matéria tem que ir pra votação de qualquer jeito. Quem for contra vai votar contra e quem for a favor vai votar a favor”, afirmou.

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