segunda-feira, 17 de março de 2014

A imprensa tem lado

Por Cátia Guimarães, no Observatório da Imprensa:

Os fatos não falam por si. Ao contrário do que ideologicamente prega o dito jornalismo profissional, o acontecido, ou dito, não se esgota nem se explica por ele mesmo. Mas tampouco pode ser ignorado ou subalternizado no trabalho jornalístico. Ainda que insuficientes como chave para a compreensão da realidade, os fatos precisam ser o ponto de partida da notícia. Mas parece que isso tem sido sistematicamente “esquecido”, ou oportunamente ignorado, por alguns grandes veículos de comunicação. Depois de uma cobertura escandalosa da morte de um cinegrafista em uma manifestação, o fenômeno volta a se repetir, com ingredientes muito semelhantes.

“Não privatizo a Comlurb de jeito nenhum” é a chamada do Globo online de sábado (8/3), referindo-se a uma fala do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Na capa da versão impressa, a mesma incógnita referência à privatização, elemento novo surgido do nada, aparece no subtítulo da manchete principal. O jornal O Dia repete a fórmula, com ainda mais destaque na chamada. Em todos os casos, a “matéria-prima” da notícia são entrevistas em que o prefeito interpreta a greve dos garis como uma armação de empresas privadas interessadas na privatização da Comlurb. De onde ele tirou essa conclusão? Em nenhum dos casos isso é perguntado ou apurado.

Na “cabeça” da entrevista publicada no Dia, mas sem nenhuma correspondência na fala direta do prefeito, os jornalistas explicam que “a desconfiança vem das informações colhidas nas ruas e na romaria, a seu gabinete, de executivos de olho na bolada de R$ 1,5 bilhão – orçamento anual da empresa de limpeza”. Rapidamente chegamos ao primeiro bloco de perguntas não feitas: Quem colheu que informações nas ruas? Como os “executivos” privados do lixo têm acesso ao gabinete do prefeito?

Sobre a novidade do dia, essas são principais as questões ausentes. Sobre o jornalismo, resta uma outra, mais geral e urgente: como a subjetividade interessada (e interesseira) de um governante pode substituir de forma tão descarada a objetividade do fato de trabalhadores quererem ganhar mais do que R$ 850 para varrer a rua e mexer no lixo alheio? Como um governante que se vê diante de tamanha crise na vida real consegue inverter tão rapidamente uma pauta e transformar as páginas dos jornais, que deveriam estar lhe cobrando explicações, em espaço de propaganda política, com um discurso progressista e de esquerda contra a privatização? Primeiro, temos que dar os parabéns à assessoria de imprensa do prefeito e a ele próprio, que tem um indiscutível talento comunicacional. Segundo, temos que lamentar a vala comum da incompetência e mediocridade dos jornalistas dessa grande imprensa que têm se prestado a isso. Por fim, temos que reconhecer o esforço de uma frente empresarial – a da comunicação de massa no Brasil – em proteger os seus.

Mais perguntas não feitas
Saindo um pouco da novidade inventada com a história da privatização, há ainda um outro bloco de (muitas) perguntas não feitas. A primeira é sobre o furor não-privatista do prefeito. Qualquer jornalista minimamente preparado e bem intencionado teria confrontado essa defesa com o resto da sua administração, já que, para ficarmos apenas num exemplo, ele passou toda a gestão da saúde do município a entidades privadas – legalmente não lucrativas – sob o argumento de que a gestão privada é mais econômica. A menos que o prefeito apresente planilhas muito detalhadas sobre a especificidade de cada uma dessas áreas – e eu lhes garanto que esses dados não existem –, há no mínimo uma curiosa incoerência na sua fala.

A segunda é sobre o tom cuidadoso com que o prefeito diz tratar o IPTU pago por todos nós tendo em vista os rios de desperdício de dinheiro que se vê diariamente nas ruas do Rio – e cujos dados precisos são facilmente apuráveis. Obras e eventos desnecessários ou mal planejados atormentam a vida e o bolso dos cariocas de forma muito concreta. Mas há muitas outras evidências que já se tornaram fatos, inclusive notícia.

Não faz muito tempo o prefeito protagonizou um escândalo de ter gastado um monte de dinheiro público comprando um jogo de banco imobiliário que fazia propaganda da sua gestão para ser distribuído como material educativo nas escolas públicas. Diante da grita geral, teve que voltar atrás. Mas a imprensa esqueceu. Eduardo Paes engrossa – e nas cabeças – a lista de prefeitos e governadores que abrem mão de material didático distribuído gratuitamente pelo Ministério da Educação para comprar, com o nosso dinheiro, kits pré-fabricados de material didático usado em programas privados que invadem a escola pública, como o Autonomia Carioca, realizado através de uma parceria com o Instituto Ayrton Senna e a Fundação Roberto Marinho, das Organizações Globo.

Diante do anúncio de greve dos garis, esse mesmo prefeito austero e zeloso pelo dinheiro do contribuinte informou imediatamente que contrataria uma empresa privada para fazer a segurança dos garis que queriam trabalhar, mas estavam sendo ameaçados pelos grevistas. Em algum veículo, que já não me lembro qual, perguntou-se quanto isso custaria e a resposta da prefeitura foi que isso não havia ainda sido calculado. Como assim? O jornal aceitou. E os outros nem isso perguntaram.

Capitães do mato
E aqui chegamos à pergunta que, embora não seja a última, porque não haveria espaço para elencar todas as questões mal apuradas nesse assunto, é a mais chocante de todas, tanto pela perspectiva do leitor comum, preocupado com as condições sociais desse país, quanto pela perspectiva do jornalista, preocupado em sentir um pouco menos de vergonha da sua profissão.

Na entrevista do Globo, impresso e online, o prefeito repete a indignação com o fato de garis estarem sendo proibidos de trabalhar por outros que os ameaçam. Na véspera, diversos jornais, inclusive o Globo, registraram, no meio da matéria, sem muito destaque, o depoimento de garis que diziam estar trabalhando apenas por medo de serem demitidos, pressionados pela força de segurança que os acompanhava. Um deles chegou a dizer que iria embora assim que a guarda municipal saísse da sua cola. Essa informação, que apesar de ser um depoimento não tem nada de subjetiva porque não expressa uma opinião ou interpretação pessoal, mas sim uma informação que contradiz – ou pelo menos coloca em dúvida – a fala e a atitude do prefeito, não foi destacada. Não virou manchete de lugar nenhum, não deu título a matéria e, o que é pior, não serviu nem como elemento para se inquirir o prefeito numa entrevista pingue-pongue publicada no dia seguinte! A informação de que garis estavam trabalhando obrigados, vigiados por policiais do batalhão de choque e outras forças de segurança, numa versão moderna do capitão do mato, não chamou a atenção dos repórteres e, muito menos, dos editores.

O lado da imprensa
A combinação de jornalistas que desaprenderam a fazer perguntas – e, tal como gravadores robóticos, se acomodaram na condição de só reproduzir a fala dos mesmos, sendo pautados por assessorias de imprensa e movidos pela repetição do senso comum – com a cada vez mais explícita relação de interesse das empresas de comunicação com governantes que defendem, também explicitamente, os interesses privados desses grupos, tem tirado a máscara de interesse público que o jornalismo tenta sustentar.

Ainda bem. Não guardo ilusões sobre o papel e o potencial que um jornalismo – compreendido assim genericamente, sem adjetivos que lhe associem à classe e aos grupos específicos que ele representa –, pode desempenhar. Um jornal pode ser mais bem feito e equilibrado, como a Folha de S.Paulo, ou escancarado e de péssima qualidade técnica, como o Globo, o que faz muita diferença. Mas o frigir dos ovos que vemos nas ruas nos força a lembrar que, numa sociedade de classes, a imprensa tem lado.

Ontem foram os professores, hoje são os garis. De uma forma ou de outra, estamos sendo incluídos na concretude dos grupos que esses governos e essa imprensa não representam. A esperança é que esse processo ajude a reconhecer a identidade que unifica essas pessoas de carne e osso, oprimidas pelo cotidiano do trabalho e difamadas pelo extraordinário das manchetes, como trabalhadoras. E que, com isso – e para isso – possamos construir uma imprensa (e um modo de se fazer jornalismo) que esteja do nosso lado.

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