segunda-feira, 3 de março de 2014

Noticiários de TV exaltam a violência

Por Vilson Vieira Jr., no Observatório do Direito à Comunicação

Em meio à indignação de segmentos da sociedade que atuam em prol dos direitos humanos gerada pela opinião da apresentadora do telejornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, que considerou legítima a atitude macabra de um grupo de pessoas que amarrou ao poste e torturou um adolescente negro e pobre acusado de furtar bicicletas no Rio de Janeiro, torna-se relevante direcionar nossa atenção a abusos semelhantes praticados por jornalistas e emissoras de TV em noticiários policialescos Brasil afora.

E no Espírito Santo, após anos longe do ar, eles voltaram com tudo. Esses programas tomaram de assalto as principais emissoras TV comerciais do Espírito Santo em anos recentes, especialmente após a aparição bem sucedida (pelo menos em termos de audiência) do Balanço Geral ES, veiculado na TV Vitória/Record. À exceção da TV Gazeta - afiliada à Rede Globo, três canais locais de televisão de grande abrangência no estado passaram a dar amplo destaque em suas programações a esse tipo de programa "jornalístico". São elas as TVs Capixaba (Band), Vitória (Record) e Tribuna (SBT).

O espaço ocupado por essas atrações na grade de programação é surpreendente, raro de se ver quando comparado a outros tipos de conteúdos regionais. Nenhum deles fica menos do que uma hora no ar. Mas todo esse espaço é destinado principalmente ao noticiário policial. Em outras palavras, à violência sem limites. Afinal, "a falta de segurança pública é o maior problema enfrentado pelos capixabas atualmente", já disse a apresentadora de um desses programas às vésperas de sua estreia, em 2013, como justificativa à linha editorial escolhida.

Linha esta, por sinal, adotada por todos os policialescos hoje no ar: Ronda Geral (TV Tribuna); Balanço Geral, ES No Ar e Cidade Alerta ES (TV Vitória); e Brasil Urgente Espírito Santo (TV Capixaba). E para não perderem telespectadores (e publicidade), outros telejornais veiculados há mais tempo, com o ESTV (TV Gazeta) e o Tribuna Notícias (TV Tribuna), também pegaram a mesma onda do "policialismo". Notícias sobre crimes de toda espécie - além de acidentes de trânsito - figuram entre as suas principais atrações, dominando a pauta.

Que a segurança pública e a violência estão entre os temas que mais ocupam a agenda dos poderes públicos - não apenas no Espírito Santo, mas em todo o país - nunca foi novidade para ninguém. Nem para a mídia. Mas os problemas aqui analisados são outros, embora não muito perceptíveis para boa parte dos cidadãos/telespectadores: a forma sensacionalista como a violência é abordada nesses telejornais, as principais vítimas dessa abordagem e a violação de leis e princípios constitucionais.

Num misto de humor, deboche e terror, os apresentadores não poupam os "bandidos" e "vagabundos" de seus comentários que, na maioria das vezes, são entoados aos berros, ofensivos e desproporcionais ao fato noticiado. Aliás, o termo "bandido" virou até bordão de apresentador e vinheta nos noticiários da TV Vitória. Um exemplo clássico de pré-julgamento e condenação antecipada oriundos daqueles profissionais que deveriam noticiar e debater os fatos, e não impor juízos de valor sobre as pessoas. Bem ao contrário do que reza o código de ética vigente do jornalismo.

Suspeitos são linchados e humilhados em público por repórteres e apresentadores desses programas, e têm sua imagem e reputação desmoronadas diante da população, que acompanha, aliviada, mais um "marginal" sendo algemado e preso; mesmo que esse alívio dure apenas alguns instantes e signifique se aprisionar dentro de casa. Na maioria das vezes, esses cidadãos marginalizados pelo Estado, pela sociedade e, claro, pela própria mídia, não têm direito à voz nas matérias; e mesmo quando lhes dão essa rara oportunidade, ela é utilizada de forma a reforçar sua condição "natural" de "bandido". Afinal, "é bandido quem quer"! Ou "bandido bom é bandido morto"! É esse o nível das "informações" passadas ao público capixaba.

Polícia Militar é única fonte

Outra questão curiosa nesse tipo de jornalismo em canais de TV do Espírito Santo são as fontes consultadas pelos jornalistas. Como se conhecedora fosse das causas de "tanta violência" na sociedade, em grande parte das reportagens cujo foco são situações de violência urbana (assaltos, homicídios, sequestros, roubos etc), prevalece a Polícia Militar como única fonte utilizada pelos repórteres para "explicar" os fatos. Nem mesmo quando os crimes envolvem crianças e adolescentes a PM deixa de ser a "fonte de toda a verdade" a fim de elucidar as infrações cometidas por menores.

Mas e os órgãos estatais que servem para promover políticas de assistência social, de cidadania e de direitos humanos? Estes não constam nas pautas dos jornalistas, que preferem o senso comum das falas dos policiais militares, além de praticamente exporem frente às câmeras a identidade de menores infratores em clara situação de risco social, numa evidente afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a outras leis do país. Talvez aquelas fontes, bem como a de outros especialistas, poderiam estragar o espetáculo armado.

O alvo desses programas, considerados por seus criadores como "populares", são as classes mais baixas da população. No entanto, o discurso conservador e policialesco denuncia a quais interesses eles estão a serviço. Também é comum assistirmos a pessoas humildes protagonizando momentos trágicos - além de íntimos - diante das câmeras. O que vale nesse tipo de notícia é o sofrimento, as lágrimas de desespero e dor daquele(a) que perde um ente querido num acidente ou crime. E o que dizer então das reportagens cujo cenário é o velório de uma vítima desses fatos? É prática mais do que banal nos noticiários da TV local, policialescos ou não.

Violência: maiores vítimas, negros e pobres não aparecem como tais

As classes mais abastadas - que detêm o controle dos meios de comunicação e cujos interesses são defendidos de forma implícita por esses programas policialescos - não são as que mais sofrem com a violência no ES e no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde divulgados em 2010 e publicados na edição especial "Dilemas da Juventude", da revista Caros Amigos, mais da metade (ou 53,3%) dos quase 50 mil mortos por homicídio registrados no país naquele ano era composta por jovens. Desse total, 76,6% eram negros e pobres, e 91,3% eram do sexo masculino. Estatísticas que desmentem o falso discurso disseminado pela mídia local, que insiste em colocar os mais jovens, negros e pobres na condição de principais agentes de crimes violentos, e não como seus maiores alvos.

Outro estudo revelador, intitulado "O Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil" e também citado na revista, aponta para a mesma triste realidade, a qual está longe das lentes da TV comercial. Conforme a pesquisa, divulgada pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir) e por instituições da sociedade civil, em 2010, foi de 72 para cada 100 mil habitantes o índice de mortes violentas entre os jovens negros e pobres, contra pouco mais de 28 para cada 100 mil habitantes entre os brancos.

Leis e constituição violadas
Sem dúvida, essa é uma realidade que não destoa da que vivemos em terras capixabas. Mas de forma proposital, a mídia capixaba insiste em não colocar esse tema na pauta de seus jornalistas, e tratam a violência e as pessoas nela envolvidas de forma agressiva e abusiva. Em decorrência disso, acaba por violar princípios constitucionais fundamentais. Um deles é o artigo 1º da Constituição Federal, que estabelece como fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre outros, a "cidadania" e a "dignidade da pessoa humana" (incisos II e III, respectivamente). Mais adiante, o artigo 221 determina que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão - que são concessões públicas - devem dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (inciso I); e respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família (inciso IV).

Já o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/62) e o Decreto 52.795/63, que regulamenta os serviços de rádio e televisão no Brasil, são bem claros ao determinar que esses meios de comunicação não devem "transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico" (art. 28 do decreto 52.795,de 1963). Neste caso, cabem sanções às emissoras, que vão desde multa até a cassação da outorga.

É desnecessário reafirmar que tais princípios são friamente desrespeitados pelos meios de comunicação do Espírito Santo e de todo o Brasil, e tudo em nome de um "jornalismo" que prega a máxima do "quanto pior, melhor", ao invés da informação com foco na cidadania, na dignidade humana e no interesse público. A sociedade precisa enxergar isso e lutar por uma comunicação mais digna; e o Estado brasileiro, na sua condição de regulador das comunicações, deve cumprir o seu papel e fazer com que leis e Constituição Federal sejam zelados por todos.

* Vilson Vieira Jr. é jornalista, mestrando em Ciências Sociais (UFES) e associado ao Coletivo Intervozes.

Um comentário:

  1. Isto não é novidade no nosso país.Lembra de Wagner Montes,Afanazio e outros?Viraram até deputados.Isto vem de longe.

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