sexta-feira, 11 de abril de 2014

Putin e o choque de nacionalismos

Por Gustavo Bianezzi Cilia, no site Opera Mundi:

E é assim, com um híbrido entre Budapeste-1956 e Kosovo-1998, que termina o ciclo de alinhamento entre a Federação Russa e os Estados Unidos da América: não apenas com as habituais trocas de acusações entre Washington e Moscou, mas também com ocupação militar de território, reação dos estados europeus, intensa mobilização russa na fronteira, exercícios americanos na Noruega, escalada de tropas na Polônia.

A rusga instalada demonstra todo um abismo inexplorado entre Rússia e o Ocidente, mas também o alcance do cálculo estratégico de Vladimir Putin e a hábil maneira com que maneja o nacionalismo eurasiano. As recentes mobilizações em Donetsk a favor da secessão demonstram o tamanho do choque de nacionalismos na Ucrânia.

O país é palco de uma disputa entre dois nacionalismos: de um lado, o russófobo ultranacionalismo da EuroMaidan e seus sonhos de um capitalismo europeu; de outro, o nacionalismo calculista de Putin e o que ele mesmo chama de “política externa independente”.

A oeste, uma União Europeia colocada em cheque pelos russos se aparenta a uma Hidra com indigestão: enquanto a cabeça alemã quer o diálogo com o urso que é dono das maiores reservas de gás combustível do mundo, a frenética cabeça francesa repete bordões da Guerra Fria e o estômago rumina uma ruidosa crise econômica que só os jovens da praça em Kiev parecem não escutar.

No centro da ação, a Ucrânia como campo de batalha e butim, ausente de uma instituição legítima para organizar os processos populares insurgentes e formular alternativas reais ao sistema oligárquico que deixou a economia do país em frangalhos.

Após a queda do presidente Yanukovich, tudo indicava que a Ucrânia teria pela frente uma transição completa rumo à austeridade européia, preço a ser pago pelo rompimento com a histórica esfera de influência russa e pela potencial integração aos organismos ocidentais (União Europeia e provavelmente a OTAN).

No entanto, a ferramenta utilizada para possibilitar esse rompimento – o nacionalismo violento e insurgente – acabou tornando-se a linguagem política de todos os atores políticos, inclusive daqueles que não estavam alinhados à Kiev.

A decisão de retirar o idioma russo do status de língua oficial no país manchou de vez a legitimidade de Kiev perante os russófonos da Ucrânia. As coisas ficaram realmente interessantes quando uma província secessionista interrompeu o colóquio entre protofascistas ucranianos e executivos europeus para dar ao mundo uma aula de História. Mas por quem afinal marcharam os soldados sem identificação em Simferopol? Estamos no início de uma nova Guerra Fria, como parecem sinalizar os discursos dos dois lados do conflito?

De todos os atores envolvidos, aquele que mais demonstra estar à vontade com a situação é Putin. Incandescido pela mobilização dos russos étnicos da Crimeia, o presidente russo preencheu com uma canetada eficiente e decisiva o vácuo decisório deixado pela insurgência dos jovens de Kiev, mobilizou seu enorme aparato militar para exercer uma política de contenção perante os EUA e seus aliados e praticamente apagou da equação o corrupto ex-primeiro-ministro Viktor Yanukovitch, exilado em terras russas.

Vingou o fracasso russo na questão do Kosovo [1] trazendo o Kosovo para seu próprio quintal com lógica que coloca em cheque a unipolaridade norte-americana e discurso que mobiliza as paixões nacionalistas de um povo acostumado ao patriotismo. As razões econômicas existem: não se pode ignorar o peso que as novas pensões pagas em rublo e em valores superiores às ucranianas terão sobre os novos-antigos cidadãos russos de Simferopol (assim como sobre potenciais cidadãos russos do leste ucraniano), mas o discurso evocado por Putin aponta principalmente para uma mobilização de nacionalismos que encontra grande ressonância na problemática Europa deste início de século.

De olho na Europa
Embora as manobras geopolíticas sugiram uma revisitação em escala menor da Guerra Fria na Eurásia, o atual discurso dos russos certamente é outro. Não obstante, a forte presença de uma política internacional independente inspirada na doutrina soviética (o que explica parcialmente a presença inquietante de bandeiras soviéticas nos protestos pró-Rússia), Putin está longe de ser um Brejnev [2].

A guiar o discurso russo, está não mais a defesa do marxismo-leninismo em um contexto de insurgência mundial dos pobres e colonizados, mas um nacionalismo assentado sobre a noção de que a soberania dos povos deve ser o fio condutor do Estado – uma ligação vital que não pode ser subordinada a Estados estrangeiros ou organizações internacionais como a União Europeia. Não se trata apenas de ideologia, mas também de estratégia: a importância da cultura e língua russas na região joga a favor de Putin, e o discurso nacionalista atrai toda sorte de grupos políticos insatisfeitos com a austeridade promovida pela UE e com o militarismo da OTAN.

O irredentismo [3] na Crimeia representa também o euroceticismo que inspira grupos nacionalistas europeus de diferentes cores políticas (dos direitistas franceses da Frente Nacional à esquerda republicana da Catalunha, dos liberais escoceses aos conservadores flamengos), ideologia que levou parte da direita europeia a abandonar os militantes da EuroMaidan por sua obsessão com a UE da mesma forma como a esquerda já havia feito por seu flerte aberto com o fascismo.

Putin desarmou o caótico e raivoso discurso da EuroMaidan enquanto esta convocava o senador conservador norte-americano John McCain para discursar em praça pública, expondo as contradições de um movimento popular que, em si, já era bastante opaco. Denunciou a hipocrisia norte-americana como há muito não se via um país do norte fazer e expôs ainda mais as fragilidades do atual sistema europeu em um momento em que este se encontra assediado por milhões de jovens desiludidos com as promessas vazias da zona do euro.

Não são apenas os cidadãos de Kiev ou Donetsk que estão levantando a bandeira nacionalista. Os nacionalistas escoceses, catalães e flamengos estão a postos para criar mil Crimeias (ou mil Kosovos) dentro das entranhas europeias – algo impensável quando os EUA intervieram na Iugoslávia em 1998 sem respaldo da ONU.

Essa extrapolação da instabilidade planejada nos corredores de Washington é o impacto imediato que a manobra de Putin teve sobre a Europa. O que era uma tranquila marcha da OTAN para o leste está sendo questionada e derrotada pela mobilização popular em Donetsk, em Simferopol, na Carcóvia. Mais além, ao triunfar onde seu antecessor Boris Yéltsin fracassou, Putin cria o primeiro obstáculo à unipolaridade norte-americana desde o fim da Guerra Fria – e o que é mais surpreendente, convoca os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) a participarem.

Uma nova multipolaridade
Os recentes acontecimentos não deveriam significar que as bases para um novo conflito global de baixa intensidade entre EUA e Rússia estejam sendo lançadas agora, em pleno ano de 2014. A frágil economia global em crise dificilmente suportaria uma nova corrida armamentista, um fato incontestável que todos os atores racionais do cenário não deixam de considerar.


Assim como na Síria ou no Irã, a escalada dos conflitos não interessa a ninguém. Impor sanções a um país tão vasto e com a história que possui a Rússia é jogar a favor do nacionalismo de Putin, e a Europa não pode cortar sua ligação energética com sua atual conjuntura econômica. Mesmo pressionado pelo poderoso lobby bélico norte-americano, a postura do presidente Barack Obama tem sido pragmática em relação a estes fatos.

Mas, independente do que pensam os nostálgicos velhinhos de Simferopol, é evidente que o estado russo não possui a pujança que um dia teve a União Soviética; ou, o que é mais evidente, o fato de que a Rússia não aspira a ser uma nova União Soviética. Em seus discursos oficiais, Putin ressalta a instabilidade trazida pelo sistema unipolar inaugurado com a dissolução da URSS em 1991 (segundo ele, a “maior catástrofe geopolítica do século”) e denuncia o excepcionalismo norte-americano nas diversas intervenções praticadas pelos EUA desde então.

O eterno agente da KGB não guarda em boa estima a mesma União Europeia que na Iugoslávia se demonstrou totalmente voltada para os interesses norte-americanos e é grande defensor do papel dos BRICS no novo sistema internacional. Em seu “discurso de posse” sobre a Crimeia no parlamento russo Putin aplaudiu e arrancou aplausos das autoridades para a política de neutralidade adotada pela China e agradeceu o apoio da Índia, buscando derrubar a narrativa dos aliados da OTAN de que estaria isolado.

Autoritário e hostil aos movimentos rebeldes de juventude do século XXI, Putin enxerga em processos internacionalistas, como a Primavera Árabe, um convite à intervenção norte-americana na soberania dos Estados, pilar central de sua doutrina multipolar. Nela, um mundo de Estados soberanos estaria organizado por uma instituição supranacional (um Conselho de Segurança expandido) que representasse os interesses dos atores mais importantes de cada região. Daí a importância do papel dos BRICS.

A nova Rússia não sonha mais com o velho idealismo soviético (que a levou para lugares tão distantes como Angola e Afeganistão) mas está plenamente mobilizada para defender seu “heartland” contra qualquer tipo de imperialismo 4. Tanto o escudo antimísseis na Europa Central quanto a expansão da OTAN para perto das fronteiras russas simplesmente não cabem na visão de Putin: seu discurso afirma com todas as palavras que “o Ocidente atravessou uma linha vermelha”. Claramente não se trata de uma revisitação da crise deflagrada pela trágica guerra contra a Geórgia em 2008, mas um novo foco na fronteira ocidental e um “basta” ao cercamento promovido pela OTAN.

Os alarmistas e republicanos que falam de uma nova Guerra Fria devem ser confrontados com as visíveis continuidades da velha: Rússia e EUA disputam de forma indireta, mas sangrenta, o futuro de Síria e Egito, golpes de estado na América Latina continuam a ser incentivados pela chancelaria norte-americana (e denunciados pela russa, como ocorreu na Venezuela) e a Rússia continua a ter um papel decisivo como mercado de armas dos governos não-alinhados com os EUA, literalmente exportando dissuasão bélica por todos os cantos do globo – muitas vezes de forma espetacular, como durante os exercícios da marinha de guerra russa em águas venezuelanas em 2008.

A habilidade ora demonstrada pela Rússia em virar o componente nacionalista a seu favor não deve supor um novo líder ideológico irracional que subitamente marcha para o Oeste, mas exatamente o contrário: um ator racional que responde calculadamente a provocações. A Rússia de Putin é um agente estratégico consciente de seu peso e cada vez mais disposto a se levantar como um urso contra a unipolaridade e o excepcionalismo das intervenções norte-americanas, especialmente perto de suas fronteiras.

Notadamente, as recentes mobilizações no leste da Ucrânia talvez signifiquem que Putin tenha criado sua própria Primavera Russa – uma alternativa nacionalista ao internacionalismo dos rebeldes norte-africanos. Pela primeira vez desde a dissolução da União Soviética, o projeto russo encontra simpatizantes fora de suas fronteiras, e a apropriação do moderno repertório político de mobilizações e referendos é a grande novidade neste momento. No entanto, o tamanho e a história daquele país insiste em nos dizer que não há nada de extraordinário em uma Rússia que defende sua esfera de influência em sua região. Ou talvez nós do Ocidente é que tenhamos ficado mal-acostumados com o etílico Boris Yeltsin.

Notas:

1- Em 1998 a OTAN decidiu intervir unilateralmente a favor da província de Kosovo no processo de fragmentação da Iugoslávia, aliada da Rússia. Na ocasião o presidente da Rússia Bóris Iéltsin protestou e ensaiou retaliações, mas voltou atrás.

2- Dirigente da União Soviética de 1964 a 1982, responsável por um aumento no perfil intervencionista daquele país durante seu mandato.

3- Ideologia nacionalista que aspira devolver ao país certos territórios historicamente perdidos , usando o conceito de “Pátria Grande”.

4- Segundo o geógrafo britânico Halford Mackinder, o “heartland” corresponderia à uma região estratégica e extremamente rica em recursos naturais à leste do rio Volga, historicamente ligada ao Império Russo.

* Gustavo Bianezzi Cilia é mestre em Ciência Política pela Unicamp.

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