domingo, 4 de maio de 2014

Sobre macacos, bichas e vadias

Por Marcelo Hailer, na revista Fórum:

No último domingo (27), durante uma partida entre o Barcelona e o Villareal, o lateral-direito brasileiro pelo time catalão, Daniel Alves, foi alvo de um ato racista, quando torcedores de seu adversário arremessaram uma banana contra o jogador. Em reposta, Alves pegou a fruta e a comeu. A rápida e irônica reação do jogador ganhou as redes sociais a partir de uma foto do Neymar Jr., na qual este aparecia com uma banana descascada e com a hastag #SomosTodosMacacos em alusão à atitude do colega de time.

Não demorou muito e a hashtag #SomosTodosMacacos ganhou a rede e milhares de apoiadores, entre eles, Luciano Huck, Angélica, Ana Maria Braga, Reinaldo Azevedo e outras celebridades, o que acabou por causar forte estranhamento e rejeição por muita gente e principalmente por ativistas ligados ao movimento negro. Primeiro questionou-se a utilização do termo “macaco” e de que este poderia, ao invés de se tornar um instrumento político, reforçar antigos preconceitos e estereótipos contra a população negra, que historicamente é difamada a partir da palavra em questão. Mas, o outro lado do debate argumentava que não, que se poderia ressignificar o termo e desconstruir o seu cunho preconceituoso.

O alcance da campanha foi tamanho que gerou manifestação de apoio da presidenta Dilma Rousseff, que utilizou o seu perfil no Twitter para declarar o seu apoio a Daniel Alves e dizer que o jogador “deu uma resposta ousada e forte diante do racismo no esporte (…). Diante de uma atitude que infelizmente tem se tornado comum nos estádios”. A presidenta também comentou a atitude de Neymar. “Em seu apoio, @neymarjr lançou a campanha #somostodosmacacos p/ mostrar que temos todos a mesma origem e q nada nos difere, a não ser nossa tolerância com o outro”, comentou a presidenta. Por fim, Rousseff afirmou que o Brasil vai erguer a bandeira da luta contra o racismo durante a Copa.

Mas, quando todos imaginavam se tratar de uma campanha de fato contra o racismo, eis que vem à tona a verdadeira origem da hashtag #SomosTodosMacacos: uma campanha idealizada pela agência Loducca em parceria com o jogador Neymar. E, como se não bastasse, um dia depois da polêmica, descobriu-se que a grife do apresentador Luciano Huck, USEHUCK, já tinha uma coleção pronta de camisetas que traziam a chamada #SomosTodosMacacos e, pasmem, com dois modelos brancos. A partir daí, toda a campanha perdeu a sua credibilidade e foi tachada de racista por seus críticos.

Dagoberto José Fonseca, professor da Faculdade de Ciência e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em entrevista à Fórum, classificou como uma “imbecilidade” a ação de Neymar, pois, de acordo com a análise de Fonseca, o jogador induziu, “através de uma operação de marketing, milhares de pessoas ao erro, encobrindo inclusive a ação do Daniel Alves. A partir daí, cabe a qualquer um, em qualquer lugar, informar que todos nós somos macacos, ele retirou tudo do contexto”, criticou o pesquisador.

A respeito de uma possível ressignificação da palavra “macaco”, o professor também se mostra crítico e diz que o termo “nunca deixará de ser ofensivo”. “O ‘macaco’ nunca deixará de ser ofensivo. Não podemos esquecer que você animaliza um sujeito. Na hora que você animaliza um sujeito, tira dele a condição de ser humano. Em hipótese alguma ele deixará de ser ofensivo. A construção do ideal do ‘macaco’ tem a ver com a ideologia de domínio, que não vem de hoje, retira-se um sujeito social da sua condição de sua cidadania plena toda vez que o chama de ‘macaco’”.

Ressignificação do termo macaco?
Logo que a campanha #SomosTodosMacacos ganhou as redes, um debate acabou por se polarizar: da possível ressignificação da palavra “macaco”, de que esta poderia ser esvaziada de seu conteúdo racista e difamatório e se tornar um objeto político. Tal discussão surgiu a partir das experiências do movimento Queer (bicha) e da SlutWalk (Marcha das Vadias).

O movimento Queer teve a sua origem nos Estados Unidos, influenciados pelo movimento de contracultura dos GenderFuckers, um dos primeiros a dizer que o gênero não existe e que não passava de uma tecnologia de dominação. Assim, nos anos 1980, acadêmicos e ativistas políticos se apropriaram da palavra queer, que significa “estranho”, “esquisito”, “ridículo” e no Brasil se aproxima mais da palavra bicha, e a ressignificaram, transformando-a num objeto político e em defesa das bichas femininas que rompiam com as normas de gênero. As principais pensadoras desta corrente são, hoje, Judith Butler e Beatriz Preciado.

Já a Marcha das Vadias tem a sua origem em 2011, em Toronto, no Canadá. Em janeiro do mesmo ano, a Universidade de Toronto registrou diversos casos de abusos sexuais em mulheres. Em uma palestra a respeito de segurança, o policial Michael Sanguinetti declarou que as mulheres deveriam evitar se vestir “como vadias” para evitar os casos de estupros. Indignadas com tal colocação, estudantes organizaram a Marcha das Vadias (SlutWalk) no mês de abril e levaram mais de três mil pessoas às ruas de Toronto. A ressonância política do ato foi tão forte que ele acabou por se tornar um ato internacionalista e que, ainda em 2011, teve edições em vários Estados do Brasil, Estados Unidos, Argentina, Holanda e, desde então, acontece anualmente em vários cantos do mundo.

A partir desta contextualização histórica, vale perguntar novamente: é possível fazer uma aproximação da campanha #SomosTodosMacacos com a Marcha das Vadias (MdV) e com o Movimento Queer? “Como aproximar uma campanha publicitária de movimentos sociais e correntes teóricas? A MdV e o uso do termo vadia foi uma resposta elaborada e cunhada pelas próprias mulheres vítimas daquela violência, dialogando com o histórico das lutas do feminismo e que se desdobrou na articulação de mulheres ao redor do mundo, promovendo, entre outras coisas, a própria autonomia e empoderamento dessas mulheres”, analisam as ativistas da MdV.

“A aproximação pode, à primeira vista, parecer pertinente, contudo é preciso saber isolar os termos e considerá-los em suas particularidades. No caso do termo “vadia”, o que está em jogo é uma conduta, um modo particular de agenciar moda, sexualidade e política que transgride a normatividade definida por um regime de verdade sexista, misógino e patriarcal sobre como devem as mulheres se comportar. Com o termo “queer”, do movimento estadunidense, acho que a coisa vai também por aí”, observa Jota Mombaça, que se classifica como bruxo político e pop guerrilheiro.

A respeito da campanha #SomosTodosMacacos, Mombaça atenta para o fato de que ela sub-humaniza os corpos negros. “Reativa uma estratégia discursiva escravista, ao mesmo tempo em que articula um especismo que consiste, precisamente, na apropriação da categoria “macaco” como termo inferiorizante. Antropocentrismo e racismo, afinal, quase sempre estiveram associados. Quanto à campanha #SomosTodosMacacos, talvez caísse bem se estivéssemos politizando as práticas laboratoriais que envolvem testes em animais, por exemplo; mas se a intenção é se posicionar contra o racismo, ela me sai como um tiro no pé. Sobretudo se consideramos o contexto espetacularizado no qual ela se tem desdobrado”, critica o ativista guerrilheiro a respeito da mercantilização feita pelo apresentador Luciano Huck.

O coletivo da Marcha das Vadias segue em raciocínio semelhante ao de Mombaça. “No caso dessa campanha, ela foi encomendada para uma agência de publicidade. Coisas pensadas por publicitários emplacam por motivos que são muitos distantes daqueles que movem os movimentos sociais, não é a ressignificação do termo que está movendo essa campanha, são as estratégias publicitárias por trás. Qual o desdobramento dela? O lançamento de um produto à venda, exibido apenas por modelos brancas e brancos?”, comenta a MdV.

Sobre bichas e vadias
Os termos bicha e vadia têm sido utilizado enquanto estratégias linguísticas e de ação política para criticar e desconstruir a estrutura heteronormativa e do patriarcado, diferentemente do que notamos da campanha #SomosTodosMacacos que, aos olhos de Mombaça e da MdV, serviu para reforçar o velho senhor branco e colonizador.

“O termo ‘bicha’ eu o aprendi como xingamento, e foi em tom pejorativo que fui, ao longo da minha vida, interpelado com ele. Me gritaram ‘bicha!’. E o fizeram para dizer-me que ‘bicha’ é errado, imundo, inadequado, anormal, e que por essas zonas eu não deveria passar se quisesse ser certo, limpo, adequado, normal. Meu cu canibal quer me fazer estranho, monstruoso, inadequado e é a partir desse descentramento (essa vontade de não ser o que querem fazer de mim) que a ressignificação desse termo que me foi lançado como xingamento pelo heteroterrorismo se faz potente”, explica Mombaça sobre o sentido político da ressignificação da palavra bicha.

As ativistas da Marcha das Vadias explicam que o termo “vadia”, ao senso comum, é utilizado para apontar as mulheres livres e estas, pela sua liberdade, são entendidas como um problema social, pois, à sociedade a mulher “tem de ser do pai, do marido ou da igreja, mas não livre”. “O ideário disseminado pelo patriarcado nos ensina que vadia é uma mulher vulgar, promíscua, que não esconde seus desejos sexuais e que isso é algo negativo. Que existem mulheres para se casar e mulheres para fazer sexo. A palavra vadia é usada para ofender e depreciar a imagem da mulher. Mas se você pensar um pouco, o termo vadia não prima por nos inferiorizar, vadia é a mulher que faz o que quer, ou seja, exerce sua autonomia sobre si mesma. Por isso, escolhemos nos apropriar do termo ‘vadia’ e imprimir nele outro significado. Para que não possam mais nos ofender com a palavra que passou a traduzir parte de nossa luta, por liberdade e autonomia. No dicionário, o significado de vadio é aquele que não trabalha. Mas o senso comum criou a ideia de que vadias são as mulheres que agem de acordo com seus mais diversos desejos, especialmente os de caráter sexual. Porém, nós defendemos que atender aos nossos desejos, independentemente do julgamento alheio, é uma demonstração de liberdade e autonomia. Daí vem a máxima: ‘se ser vadia é ser livre, somos todas vadias!’”.

A subversão e o desarmamento do opressor
Tanto o movimento queer quanto a Marcha das Vadias são hoje duas correntes presentes em praticamente todo o ocidente e até mesmo em coletivos da Índia e da África, pois o sistema heteronormativo está ao lado do modo capitalista de produção, que hoje não conhece fronteiras, então podemos pensar que as estratégias políticas utilizadas pelos dois grupos têm sido eficaz, ou , pelo menos, revelado um caminho fértil de desconstrução do discurso do opressor ao se apropriar de termos criados pelo sistema, o que não parece ser o caso da campanha #SomosTodosMacacos que, em um primeiro momento, acreditou-se ser uma ação espontânea, mas, depois descobriu-se que não e que, pior, nasceu dentro de uma agência publicitária, um dos principais dispositivos de dominação do heterocapitalismo.

“Em relação à palavra ‘vadia’, consideramos que a apropriação está funcionando na medida em que chama a atenção para o tema e leva meninas e mulheres, principalmente, a problematizarem o julgamento que se faz das sobreviventes de violência de gênero. Porém, isso não é suficiente. A nossa luta, como a de outras Marchas das Vadias do Brasil e do mundo, passa por fomentar discussões, promover debates, aulas, palestras, entrevistas, divulgar conteúdos feministas na internet, entre outros. A apropriação irônica do termo é apenas parte de nossa estratégia”, avaliam as ativistas da MdV.

Mombaça também avalia que apenas a subversão dos termos difamatórios não garante nada, pois “pode produzir efeitos políticos diversos”. “Se, por um lado, essa estratégia pode ser mobilizada no sentido de uma desprogramação das significações sexistas, como no caso da Marcha das Vadias, e heteroterroristas, como no caso desse ativismo bicha sobre o qual falava; pode também ter sua potência política neutralizada por iniciativas publicitárias oportunistas como a da campanha #SomosTodosMacacos. A realidade das lutas contra a opressão requer uma multiplicidade de olhares e uma multiplicidade de estratégias, que possam adaptar-se aos diversos contextos nos quais essas relações de poder se dão. Assim é que a estratégia da ressignificação dos termos difamatórios pode tanto ter eficácia no debate político, descaracterizando discursos conservadores e empoderando sujeitos historicamente subalternizados, quanto servir à reiteração da violência contra minorias. É preciso, portanto, considerá-la em sua complexidade, para não agirmos com ingenuidade frente aos sistemas de opressão nos quais somos enredados”, finaliza o ativista pop guerrilheiro.

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