Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
A Copa do Mundo dá à imprensa brasileira uma oportunidade histórica para se reconciliar com o bom jornalismo. Não apenas pelo fato de, até esta altura, tudo estar acontecendo com um alto nível de qualidade, mas também porque a grandeza do evento permite observar a diferença entre o que os estrangeiros pensam do Brasil e o que os brasileiros são levados a pensar de si mesmos. Trata-se, portanto, de um laboratório para a própria imprensa refletir sobre a imagem do país que ela projeta sobre a sociedade.
Correm nas redes sociais, por exemplo, manifestações de personalidades que se surpreendem com o bom funcionamento dos aeroportos, lembrando que o noticiário vinha prevendo, desde o início do ano, que os viajantes iriam enfrentar um verdadeiro caos em terra e no ar. Os grandes agrupamentos de torcedores não têm causado problemas, com exceção de desentendimentos pontuais sem maiores consequências, como a briga entre argelinos que deixou um ferido com uma garrafada.
Porém, enquanto o jornalismo esportivo se mantém na linha regulamentar entre o otimismo com a seleção nacional e a análise crítica, fiel à linguagem ao mesmo tempo engajada e distanciada da crônica futebolística, certos protagonistas do jornalismo político invadem o campo de jogo com seu discurso chulo. É o caso dos colunistas citados pelo comentarista esportivo José Trajano, da emissora ESPN, que, ao comentar os xingamentos dirigidos à presidente da República na arena do Corinthians durante a cerimônia de abertura da Copa, se referiu ao clima de ódio insuflado pela crônica política.
O entrevero teve repercussão nos jornais do fim de semana, alimentando um debate sobre quem deu origem e quem alimenta o discurso do ódio que parece contaminar a parte de cima do edifício social do Brasil. Sábado, domingo e na segunda-feira (23/6), representantes do estrato mais conservador da mídia têm se revezado em tirar da própria imprensa a responsabilidade por transformar o debate político em campo minado. Mas não há como fugir à evidência de que o jornalismo cedeu lugar ao panfletarismo sectário.
O ovo da serpente
O esforço é bem organizado, mas não há como dissimular o fato de que as expressões contundentes e os adjetivos desrespeitosos que têm marcado os argumentos de um lado e de outro na conflagrada cena ideológica são uma marca de meia dúzia de jornalistas instalados pelas empresas hegemônicas da mídia em posições de destaque. Aliás, pode-se afirmar que alguns jornalistas decadentes, cujas carreiras se encaminhavam melancolicamente para o mausoléu do ostracismo, ganharam uma sobrevida e uma maquiagem contemporânea exclusivamente para atuar nessa tropa de choque da incivilidade.
Não se pode negar que há um pantanal de ódio na sociedade brasileira, e essa predisposição para a irracionalidade no campo político se concentra nas camadas mais privilegiadas em termos de educação e renda. Onde se esperava que se houvesse desenvolvido um nível mais elevado de consciência social e capacidade de tolerância para a diversidade de opiniões é justamente onde vicejam sentimentos como a intolerância, o desprezo pela nacionalidade e o complexo de vira-latas. Os colunistas citados por Trajano são, claramente, autores do discurso que caracteriza essa espécie de lumpesinato de alta renda, onde viceja o ovo da serpente.
Afirmamos que a Copa oferece à mídia tradicional a oportunidade para se reconciliar com o jornalismo porque a complexidade do jogo de futebol, com suas surpreendentes reviravoltas e a imensa gama de possibilidades, deveria servir como metáfora para os outros temas da vida social.
Se, como sabemos, a imprensa atua no sentido de dar aos fatos uma certa organização, que de alguma maneira permite ao indivíduo formular um entendimento do mundo, a adoção do discurso raivoso e unilateral produziu uma ruptura entre o que chamamos de imprensa e o jornalismo.
A bola impõe uma linguagem vigorosa, mas sem asperezas, e as regras preveem que as caneladas sejam devidamente punidas. Na política, ao contrário, a imprensa prefere estimular a agressão, porque não consegue ganhar o jogo dentro das regras.
Se os jornais parecem mais equilibrados, nestes dias de intensas emoções futebolísticas, é porque as empresas de comunicação precisam justificar os altos investimentos dos anunciantes.
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