quinta-feira, 12 de junho de 2014

Copa do Mundo desafia o Brasil

Por Breno Altman, no site Opera Mundi:

Quando foi anunciado, nos idos de 2007, que o maior país dos trópicos sediaria o campeonato mundial de futebol em 2014, as ruas brasileiras se encheram de alegria e festa. Era desejo antigo e profundo: ser anfitrião da competição mais proeminente do esporte que marca a identidade nacional, quase sete décadas depois de ter sucumbido ao Uruguai na tragédia de 1950, conhecida como Maracanazo.

O estado de ânimo entre os brasileiros, naquele momento, também colaborou para o clima de euforia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no primeiro ano de seu segundo governo, liderava um projeto capaz de retirar milhões de cidadãos da miséria, impulsionar um crescimento potente da economia, reduzir a desigualdade social e afirmar o país como nação protagonista no cenário mundial.

Apesar da avaliação de que o Brasil teria de enfrentar muitos obstáculos para viabilizar o evento e já se preparar para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, as recompensas pela ousadia pareciam generosas. A Copa do Mundo poderia se configurar em ferramenta para reforçar a imagem internacional, ampliar o fluxo turístico, acelerar investimentos em infraestrutura e modernizar tanto os equipamentos esportivos quanto os sistemas de transporte.

O país abre as portas para o espetáculo, porém, tomado pelo mau humor e a desconfiança. De nacionais e estrangeiros. Por que, afinal, a felicidade de 2007 cedeu ao pessimismo de 2014? O que levou ao envenenamento da Copa do Mundo, pensada como vitrine das mudanças comandadas pelo Partido dos Trabalhadores de Lula e Dilma Rousseff desde 2003?

A primeira razão dessa guinada negativa talvez possa ser encontrada na confluência entre a perda de ritmo nos avanços sócio-econômicos a partir de 2010 e as turbulências provocadas pelo ambicioso projeto para o Mundial de Futebol.

Mesmo que o Brasil atualmente apresente uma das mais baixas taxas de desemprego, inferior a 6%, com aumento real do salário mínimo na casa dos 72,35% desde a posse do presidente Lula, muitas pessoas reclamam que as melhorias ficaram mais lentas. Aproximadamente 35 milhões de brasileiros foram retirados da miséria desde 2003, ampliando o mercado interno e alavancando o crescimento da economia, mas o freio no desenvolvimento afetou o dinamismo dos anos iniciais.

O presidente Lula, além de contar com alguns anos bastante favoráveis no cenário mundial, pode dar importantes saltos a frente com a adoção de programas sociais de amplo alcance, redirecionando recursos do Estado para as camadas mais pobres e excluídas. Seus bons resultados não foram apenas sociais, mas também econômicos: o PIB subiu uma média anual de 4% durante os oito anos do líder histórico petista.

O cenário mudou a partir da posse de Dilma Rousseff. Sem contar com os efeitos multiplicadores de políticas já implementadas e que, portanto, em sua fase de consolidação, não propiciavam mais benefícios de amplo espectro, a presidente também teve o desprazer de ser atingida pelos piores ventos da crise capitalista aberta em 2008.

A economia brasileira passou a crescer modestos 1,8% por ano, com redução relativa do orçamento governamental e, portanto, da capacidade do Estado em ampliar a expansão de direitos e serviços. O governo paga também o preço de continuar refém da política de juros altos, pressionado pelos bancos e os meios de comunicação sob influência do rentismo, que inibe ainda mais os gastos estatais e força maior dispêndio com o financiamento da dívida interna.


Estes dados cinzentos cercearam as possibilidades da administração federal, que moderou ou abandonou políticas para elevação salarial de funcionários públicos, construção de universidades, repactuação das dívidas de estados e municípios, investimentos em infraestrutura, modernização dos serviços públicos. Criou-se a base material para a insatisfação que explodiu nas manifestações de junho do ano passado.

As pessoas não foram às ruas, então, para reclamar de salário e emprego. Da porta para dentro de casa, no que diz respeito à renda das famílias, a curva da economia brasileira é oposta à da maioria dos países, especialmente os Estados Unidos e as nações europeias. Mas da porta para fora a insatisfação gritava: as décadas anteriores, de privatização e recessão, de redução do Estado e submissão à lógica rentista, arruinaram os serviços públicos (especialmente transporte, saúde e educação), sem que os governos petistas pudessem ter feito um movimento significativo para resgatá-la.

A Copa do Mundo, com seus formidáveis estádios, acabou por se transformar em mote para a indignação, contrapondo os gastos com este megaevento às restrições para a oferta de sistemas mais universais e eficazes de atendimento ao cidadão.

Além das despesas, a preparação da competição esportiva também afetava a vida de muita gente, com remoção de grupos populacionais de áreas destinadas à execução do projeto apresentado a FIFA, explosão de preços imobiliários nas cidades-sede e conturbação provocada pelas próprias obras em curso. A verdade é que, para muitos setores, o cisne acabou virando o patinho feio.

Eleições e gastos
Com a coincidência entre a Copa do Mundo e as eleições presidenciais, previstas para outubro, as correntes oposicionistas e os principais veículos de informação, francamente inimigos do petismo, aproveitaram para desatar verdadeira guerra psicológica sobre o tema. O esforço teve duplo sentido: radicalizar a percepção de que a Copa do Mundo desvia dinheiro dos serviços públicos e apostar no próprio fracasso do evento.

Denuncia-se que o Estado desembolsou 83,6% dos 25,6 bilhões de reais necessários para viabilizar a competição, como se todos esses recursos fossem para a construção de arenas desportivas. Esconde-se, geralmente, que 60,1% dos investimentos são para objetivos permanentes e de interesse geral, como obras viárias, aeroportos e telecomunicação. Tampouco se dá destaque que esses investimentos, durante sete anos, geraram 3,6 milhões de empregos diretos.

O governo gastou sete bilhões de reais para a construção e a reforma de 12 estádios, mais 1.5 bilhão para segurança pública durante a Copa. Isso equivale a 3% das despesas públicas anuais com educação, por exemplo. Atribuir a esses gastos as carências em infraestrutura, portanto, não tem qualquer lastro na realidade. Cálculos da Fundação Getúlio Vargas, por outro lado, indicam que o torneio deve gerar negócios adicionais ao redor de R$ 142 bilhões, além de poder quadruplicar a receita da indústria do futebol e modernizar sua estrutura

Nem mesmo o estouro de orçamento, calculado em 20%, é algo muito grave. Mudanças nos projetos justificam boa parte dessa situação. No mais, este percentual de despesas adicionais está apenas um pouco acima da Copa do Mundo na Alemanha (14%) e bem abaixo da África do Sul (32%).

Algumas dessas obras serão entregues com atraso, pois estava prevista sua inauguração para o Mundial. Mas serão ativos importantes e úteis, mesmo assim, para melhorar a vida nas grandes cidades brasileiras. Novos aeroportos, pontes, viadutos e avenidas que ajudarão a tornar mais confortável o dia-a-dia das metrópoles.

Ainda que os fatos não justifiquem a ofensiva contra a Copa, o governo brasileiro se vê acuado na batalha midiática, dentro e fora das fronteiras. Não tanto pelos problemas concretos que podem ocorrer durante o campeonato, por erros e insuficiências, mas provavelmente porque os petistas subestimaram como seus adversários atuariam.

A comemoração de 2007 criou falsa aparência de unanimidade, que pode ter induzido lideranças da esquerda brasileira a acreditar em um cenário de paz e harmonia. Quando despontaram as primeiras contradições e crises, irrompeu a onda de descontentamento estimulada a partir de setores da imprensa, nacional e internacionalmente, contra a qual o governo brasileiro se mostrou vulnerável.

Nunca antes na história do país, como tanto gosta de dizer o ex-presidente Lula, tantos dependeram tanto de tão poucos. Além de confiar que as obras garantam eficácia, segurança e conforto durante o Mundial, o humor nacional poderá depender dos 11 jogadores brasileiros e seus reservas.

Talvez a beleza e os resultados do futebol brasileiro sejam a melhor vacina disponível, a essa altura do campeonato, para desfazer a narrativa catastrófica que foi deliberadamente construída para desgastar o processo político dirigido pelo PT desde o início do século.

* Breno Altman é jornalista e diretor do site Opera Mundi

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