Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Diz a lenda que, ao mastigar animais aprisionados em suas mandíbulas, os crocodilos costumam verter lágrimas pelos olhos.
Não sei se é verdade.
Mas, ao registrar a falta de interesse do cidadão comum, em especial da juventude, pela política, grandes meios de comunicação e pregadores de ar sisudo e discurso moralista adoram exibir uma reação sentimental - e lacrimejar como esses répteis gigantescos, o mais próximo parente dos dinossauros sobre a face da Terra.
As lágrimas lendárias dos crocodilos pretendem sugerir que eles não tem a menor responsabilidade pelo sofrimento de suas presas - e até sofrem por seu destinos. O mesmo ocorre com o desinteresse pela política.
Os números são reais: 26% de nossos eleitores dizem não ter nenhum interesse pela política; 29% dizem que tem pouco interesse.
Outro dado relevante: só 25% dos jovens entre 16 e 17 anos, para quem o voto não é obrigatório, estão registrados para votar. Em 2006, o número era 39%.
O aspecto especialmente curioso desses números é outro. Diz respeito aos benefícios reais que a política, sob regime democrático, tem feito ao país nos últimos anos.
Do ponto de vista da maioria dos brasileiros, dificilmente será possível encontrar um período da história em que grandes parcelas da população puderam obter melhorias tão importantes em sua existência - através do voto e de seus representantes eleitos. Esqueçamos, por um momento, que estamos num ano de eleição presidencial, onde cada menção positiva é vista como suspeita. Vamos falar de fatos objetivos.
Alvo de crítica universal pelo perfil desigual de sua distribuição de renda, hoje o Brasil é objeto permanente de elogios – pelos esforços realizados para combater essa situação, seja através do Bolsa Família, da lei do salário mínimo, de programas que beneficiam a população pobre e negra. O governo mantem um programa de habitação popular cujos méritos são reconhecidos pelos adversários mais duros. Os pobres nunca tiveram acesso tão amplo ao ensino superior como agora. Os juros estão salgadíssimos mas o crédito popular nunca foi tão amplo, permitindo a expansão do consumo num padrão impensável há uma década. O paraíso de uma sociedade igualitária está longe, muito longe, e talvez nunca seja alcançado. A saúde pública segue um drama. A educação também. Mas é preciso ser desonesto para negar que ocorreram melhorias surpreendente, num prazo relativamente curto.
Num país que passou duas décadas ouvindo elogios nostálgicos ao crescimento econômico obtido durante o regime militar, os números dos últimos anos lavaram a alma de quem tem amor pela democracia. Não por acaso, um Ibope de 2010 mostrava que, pela primeira vez em muitos anos, a maioria dos brasileiros considerava que a eleição era uma forma eficiente de defender seus interesses.
Mesmo assim, em 2014 o desencanto com a atividade política está aí, nas conversas de muitas pessoas.
Por que?
Vamos combinar: deixando de lado nostalgias impressionistas, nunca se demonstrou que os políticos de hoje são moralmente piores que os “de antigamente”. Não há escandalômetro confiável a respeito de nossa vida pública. Em nenhum momento de sua história os gastos públicos receberam controles tão apertados. As investigações e punições atingiram um nível de rigor tão intenso que chegam a se tornar um obstáculo a investimentos produtivos.
Nesta situação, a explicação não se encontra na atividade política, em si, mas na forma como ela é vista e apresentada aos brasileiros, na ideologia que encobre cada narrativa, cada episódio, cada história. As pessoas estão convencidas de que a política nunca esteve tão contaminada por práticas condenáveis.
Isso não acontece por acaso. Esta não foi, apenas, uma década onde a população colheu benvindos benefícios e melhorias, inseparáveis do exercício do voto e da liberdade.
Também foi aquela em que, por motivos difíceis de aceitar mas fáceis de compreender, o país assistiu a uma campanha permanente de ataque e criminalização aos políticos e ao regime democrático. É possível encontrar panfletos da conservadora UDN que denunciavam a “crise moral” do país na campanha presidencial de 1950. É sempre bom lembrar que o golpe de 64 teve como lema declarado o combate a subversão e a corrupção. Mas a partir de 2006 o país entrou num curso único em sua história para desmoralizar a atividade política, enfraquecer os políticos e criminalizar a democracia. Não por acaso, o interesse dos jovens sofre uma queda importante neste período. Contra 39% registrados para votar em 2006, apenas 32% fazem o mesmo em 2010. Uma queda superior a 20%.
Numa imensa dificuldade para retornar ao poder através do voto, a oposição contou com auxílio assumido dos meios de comunicação para investir a fundo no atalho da judicialização. Pouco importava se, no meio do caminho, fosse necessário fazer uns poucos mortos e feridos entre aliados de segunda linha, que teriam de ser sacrificados, cuidando-se para que fosse da forma menos dolorida possível.
O essencial era recuperar o poder de mando. Atingir o núcleo político responsável pelas mudanças, concentrado no Partido dos Trabalhadores, mesmo que elas estivessem longe de promover qualquer alteração grandiosa. Era preciso quebrar essa força organizada, construída de forma lenta e desigual desde a luta pelo fim da ditadura militar. Em vários países, essa intervenção se fez pela cooptação de lideranças que abandonaram seus compromissos de origem. No Brasil, isso não aconteceu, apesar de recuos importantes em relação a diversas bandeiras históricas, além de alianças e parcerias especialmente problemáticas no ofício de governar.
Mas, já que não foi possível cooptar a maioria dos quadros mais importantes para atuar a favor dos antigos inimigos, tornou-se necessário colocar uma parcela dos líderes e dirigentes fora de combate, desmoralizada, atrás das grades, na cadeia, sendo tratados sem o menor respeito por direitos elementares, retratados em tom odioso como bandoleiros, inescrupulosos, mercenários - no ato final de um circo com coro, orquestra, horário nobre na TV - entre as novelas - e animais muito selvagens, caninos sempre à mostra e apetite insaciável, sem comparação com os próprios crocodilos lacrimejantes.
Ao voltar-se contra dirigentes do Partido dos Trabalhadores, a criminalização desgastou a legenda que desde seu nascimento acumulou uma posição diferenciada junto a maioria da população, especialmente as camadas subalternas. Distantes da vida partidária tradicional, era no PT que uma parcela sempre significativa - em torno de 30% dos eleitores - sempre viu um compromisso mais firme na luta contra as injustiças e privilégios. Esse desgaste ajudou a formar, também, uma camada maior de indiferentes ao voto e às disputas políticas.
Nesse universo, evitando debates e contradições desfavoráveis, os meios de comunicação suprimiram a cobertura política da política. Num país que deve ter orgulho de seus cientistas sociais, o debate de ideias foi monopolizado pela economia de mercado, sem permitir abertura para visões opostas e contraditórias – que podem refletir interesses opostos e contraditórios, também. Os protagonistas desse tempo não querem mudanças. Quem acusar, condenar, prender - primeiro passo para a glorificação e o exercício do poder de Estado sem necessidade de atrair, conquistar e convencer o povo, em nome de quem emanam todos os poderes da República.
Este é o país onde a vontade de votar diminui, eleição após eleição. Poderia ser diferente?
Diz a lenda que, ao mastigar animais aprisionados em suas mandíbulas, os crocodilos costumam verter lágrimas pelos olhos.
Não sei se é verdade.
Mas, ao registrar a falta de interesse do cidadão comum, em especial da juventude, pela política, grandes meios de comunicação e pregadores de ar sisudo e discurso moralista adoram exibir uma reação sentimental - e lacrimejar como esses répteis gigantescos, o mais próximo parente dos dinossauros sobre a face da Terra.
As lágrimas lendárias dos crocodilos pretendem sugerir que eles não tem a menor responsabilidade pelo sofrimento de suas presas - e até sofrem por seu destinos. O mesmo ocorre com o desinteresse pela política.
Os números são reais: 26% de nossos eleitores dizem não ter nenhum interesse pela política; 29% dizem que tem pouco interesse.
Outro dado relevante: só 25% dos jovens entre 16 e 17 anos, para quem o voto não é obrigatório, estão registrados para votar. Em 2006, o número era 39%.
O aspecto especialmente curioso desses números é outro. Diz respeito aos benefícios reais que a política, sob regime democrático, tem feito ao país nos últimos anos.
Do ponto de vista da maioria dos brasileiros, dificilmente será possível encontrar um período da história em que grandes parcelas da população puderam obter melhorias tão importantes em sua existência - através do voto e de seus representantes eleitos. Esqueçamos, por um momento, que estamos num ano de eleição presidencial, onde cada menção positiva é vista como suspeita. Vamos falar de fatos objetivos.
Alvo de crítica universal pelo perfil desigual de sua distribuição de renda, hoje o Brasil é objeto permanente de elogios – pelos esforços realizados para combater essa situação, seja através do Bolsa Família, da lei do salário mínimo, de programas que beneficiam a população pobre e negra. O governo mantem um programa de habitação popular cujos méritos são reconhecidos pelos adversários mais duros. Os pobres nunca tiveram acesso tão amplo ao ensino superior como agora. Os juros estão salgadíssimos mas o crédito popular nunca foi tão amplo, permitindo a expansão do consumo num padrão impensável há uma década. O paraíso de uma sociedade igualitária está longe, muito longe, e talvez nunca seja alcançado. A saúde pública segue um drama. A educação também. Mas é preciso ser desonesto para negar que ocorreram melhorias surpreendente, num prazo relativamente curto.
Num país que passou duas décadas ouvindo elogios nostálgicos ao crescimento econômico obtido durante o regime militar, os números dos últimos anos lavaram a alma de quem tem amor pela democracia. Não por acaso, um Ibope de 2010 mostrava que, pela primeira vez em muitos anos, a maioria dos brasileiros considerava que a eleição era uma forma eficiente de defender seus interesses.
Mesmo assim, em 2014 o desencanto com a atividade política está aí, nas conversas de muitas pessoas.
Por que?
Vamos combinar: deixando de lado nostalgias impressionistas, nunca se demonstrou que os políticos de hoje são moralmente piores que os “de antigamente”. Não há escandalômetro confiável a respeito de nossa vida pública. Em nenhum momento de sua história os gastos públicos receberam controles tão apertados. As investigações e punições atingiram um nível de rigor tão intenso que chegam a se tornar um obstáculo a investimentos produtivos.
Nesta situação, a explicação não se encontra na atividade política, em si, mas na forma como ela é vista e apresentada aos brasileiros, na ideologia que encobre cada narrativa, cada episódio, cada história. As pessoas estão convencidas de que a política nunca esteve tão contaminada por práticas condenáveis.
Isso não acontece por acaso. Esta não foi, apenas, uma década onde a população colheu benvindos benefícios e melhorias, inseparáveis do exercício do voto e da liberdade.
Também foi aquela em que, por motivos difíceis de aceitar mas fáceis de compreender, o país assistiu a uma campanha permanente de ataque e criminalização aos políticos e ao regime democrático. É possível encontrar panfletos da conservadora UDN que denunciavam a “crise moral” do país na campanha presidencial de 1950. É sempre bom lembrar que o golpe de 64 teve como lema declarado o combate a subversão e a corrupção. Mas a partir de 2006 o país entrou num curso único em sua história para desmoralizar a atividade política, enfraquecer os políticos e criminalizar a democracia. Não por acaso, o interesse dos jovens sofre uma queda importante neste período. Contra 39% registrados para votar em 2006, apenas 32% fazem o mesmo em 2010. Uma queda superior a 20%.
Numa imensa dificuldade para retornar ao poder através do voto, a oposição contou com auxílio assumido dos meios de comunicação para investir a fundo no atalho da judicialização. Pouco importava se, no meio do caminho, fosse necessário fazer uns poucos mortos e feridos entre aliados de segunda linha, que teriam de ser sacrificados, cuidando-se para que fosse da forma menos dolorida possível.
O essencial era recuperar o poder de mando. Atingir o núcleo político responsável pelas mudanças, concentrado no Partido dos Trabalhadores, mesmo que elas estivessem longe de promover qualquer alteração grandiosa. Era preciso quebrar essa força organizada, construída de forma lenta e desigual desde a luta pelo fim da ditadura militar. Em vários países, essa intervenção se fez pela cooptação de lideranças que abandonaram seus compromissos de origem. No Brasil, isso não aconteceu, apesar de recuos importantes em relação a diversas bandeiras históricas, além de alianças e parcerias especialmente problemáticas no ofício de governar.
Mas, já que não foi possível cooptar a maioria dos quadros mais importantes para atuar a favor dos antigos inimigos, tornou-se necessário colocar uma parcela dos líderes e dirigentes fora de combate, desmoralizada, atrás das grades, na cadeia, sendo tratados sem o menor respeito por direitos elementares, retratados em tom odioso como bandoleiros, inescrupulosos, mercenários - no ato final de um circo com coro, orquestra, horário nobre na TV - entre as novelas - e animais muito selvagens, caninos sempre à mostra e apetite insaciável, sem comparação com os próprios crocodilos lacrimejantes.
Ao voltar-se contra dirigentes do Partido dos Trabalhadores, a criminalização desgastou a legenda que desde seu nascimento acumulou uma posição diferenciada junto a maioria da população, especialmente as camadas subalternas. Distantes da vida partidária tradicional, era no PT que uma parcela sempre significativa - em torno de 30% dos eleitores - sempre viu um compromisso mais firme na luta contra as injustiças e privilégios. Esse desgaste ajudou a formar, também, uma camada maior de indiferentes ao voto e às disputas políticas.
Nesse universo, evitando debates e contradições desfavoráveis, os meios de comunicação suprimiram a cobertura política da política. Num país que deve ter orgulho de seus cientistas sociais, o debate de ideias foi monopolizado pela economia de mercado, sem permitir abertura para visões opostas e contraditórias – que podem refletir interesses opostos e contraditórios, também. Os protagonistas desse tempo não querem mudanças. Quem acusar, condenar, prender - primeiro passo para a glorificação e o exercício do poder de Estado sem necessidade de atrair, conquistar e convencer o povo, em nome de quem emanam todos os poderes da República.
Este é o país onde a vontade de votar diminui, eleição após eleição. Poderia ser diferente?
Não é lenda. A glândula lacrimal do crocodilo é estimulada pela musculatura de sua mandíbula quando mastiga. Mas com certeza, não chora por piedade.
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