sábado, 21 de junho de 2014

Os "doutores" que ofenderam Dilma

Por Osvaldo Bertolino, no site da Fundação Mauricio Grabois:

Em um de seus romances, Machado de Assis descreve um elucidativo diálogo entre o mendigo e o céu:

— Afinal, não me hás de cair em cima, dizia o primeiro.

— Nem tu me hás de escalar, respondeu o segundo.

O chiste do genial romancista revela um comportamento social muito comum no Brasil. Um pequeno setor da sociedade se imagina mais capaz, mais limpo, gente melhor do que os seres considerados primevos por serem descendentes de negros e índios. As ofensas à presidenta Dilma Rousseff na abertura da Copa do Mundo são a expressão acabada desse comportamento. Para essa gente, a repartição da renda nacional - uma espécie de síntese de toda a atividade econômica do país - dever ser imutável. Ao mexer nessa estrutura social, portanto, está se aguçando a luta de classes, o que, do ponto de vista social, é um enorme progresso.

O Brasil passa por esse fenômeno; a vida política do país, ao ganhar dinâmica, começa a libertar uma vasta área de consumo que padece com a falta de renda. Isso explica por que para a ideologia da elite brasileira essa possibilidade precisa ser aniquilada no nascedouro. Não por acaso, os apologistas do "livre mercado" têm sido basicamente aqueles que podem exercer seu perdulário poder de compra sem tomar conhecimento das fronteiras sociais. Mais do que isso: a histórica concentração de poder político no Brasil fez com que a imensa maioria da sociedade vivesse pelo cabresto do poder econômico de poucos. Ao longo dos anos, esse juízo de que para consumir é preciso ser humilhado foi se consolidando no país.

Barbas do século XX
Imaginando-se o céu de Machado de Assis, os integrantes desse pequeno setor da sociedade são aqueles que fazem questão de serem chamados de “doutor”, mesmo sem cumprir as etapas constantes no curso de doutorado, exatamente para delimitar os campos sociais. Muitos desses "doutores" agem como se o simples fato de ostentar símbolos de poder desobrigasse alguém de prestar contas, a si mesmo ou à sociedade, dos seus passos. Eles veem a grande massa de brasileiros como seres despossuídos a ponto de não ter direito sobre seu próprio corpo e cuja vida deve ser definida pelo trabalho cruciante e pelos suplícios impostos pelos patrões. A submissão funciona como sucedâneo da lei.

Para um país que manteve a escravidão até as barbas do século XX - caso único no mundo - é, de certa forma, natural que esta ideologia esteja impregnada na carne da elite brasileira. Em dois ou três séculos, pouco mudou na essência do modo como a elite e o povo se veem e se relacionam. Uns continuam abusando de seu poder imenso, sabotando a trama social existente no país e nutrindo ódios de classe; outros continuam lutando com todas as forças pela sobrevivência. Brasileiro rico não teme a lei: ou ele salta a barreira ou passa por baixo, mas poucos se detêm na fronteira do direito.

Lentes róseas
É fácil compreender essa imutabilidade se percebermos que há apenas pouco mais de sete décadas - aí pelos anos 1930 - o Brasil começou a projetar de fato o rompimento com a herança escravocrata que impregna a alma do país, debatendo e aperfeiçoando um projeto contemporâneo e factível de sociedade. Sofremos muitos reveses e, por isso, o projeto desenvolvimentista e democrático de sociedade ainda é algo que está para florescer no Brasil. E, na mesma medida, a construção de uma sociedade coesa, fundada na ética, disposta a erigir sistemas que sustentem no longo prazo o desenvolvimento econômico com justiça social.

Esse recrudescimento do tom ameaçador da direita, não resta dúvida, se deve às pesquisas que mostram a tendência de perda de força do furacão assoprado pela desonesta campanha midiática contra a "corrupção". Os ideólogos do projeto direitista estão declinando das lentes róseas com que olhavam o cenário político porque perceberam que suas apostas estavam baseadas em fundamentos que se revelaram frágeis como a convicção de um cínico. Mesmo a mídia, com sua descabida pretensão de ser "os olhos da nação" — segundo palavras do célebre pensador, jurista e estadista brasileiro Rui Barbosa —, em muitas ocasiões vem sendo obrigada a dobrar a língua.

Conhecimento de causa
Seria apaixonante enveredar aqui por uma discussão sobre a moralidade dos povos. Mas os tempos são curtos e basta lembrar, a bem da convicção evolucionista, que Charles Darwin leu Adam Smith e não o contrário - como querem fazer crer os direitistas de hoje. Ou seja: o capitalismo desenfreado não é o fim da história. A rigor, por estar historicamente superado, ele se transformou em um terreno fértil para a corrupção. A moralidade se submete aos processos seletivos de variação, adaptação e competição em busca da sobrevivência dos grupos sociais. Daí a contramarcha histórica da direita, que existe unicamente para preservar seus privilégios, por meio de conchavos entre os agentes que sustentam o status quo.

Se não basta a violência como elemento político, modalidade em que a direita brasileira se destaca historicamente - é só observar a lista de golpes e tentativas de golpes de Estado -, há a constatação ao alcance de todos de que, em matéria de corrupção, os udenistas-tucanos têm muito conhecimento de causa. O rigor moral certamente levaria o país para um severo acerto de contas entre classes sociais. Ou seja: o Brasil não entrou na crise política por acaso, como se Deus houvesse deixado de ser brasileiro.

Rendimentos decrescentes
Vista na perspectiva dos últimos oito ou dez meses, parece evidente que hoje a produção de denúncias e escândalos está se enquadrando naquilo que os economistas chamam de "lei dos rendimentos decrescentes". (Essa "lei" diz que, a partir de um certo valor, o aumento da quantidade de uma variável, mantendo-se as outras fixas, é contraproducente.) Uma hipótese é que esse rendimento decrescente pode ser compreendido pelas condições da oferta e da procura no mercado de escândalos. Pelo lado da oferta, é preciso considerar que a qualidade das denúncias chega a ser vergonhosa. Está longe do sucesso da campanha que resultou no impeachment do ex-presidente Fernando Collor, movida por toda a oposição de esquerda - a campanha contra o governo Dilma está recheada de falsificações grosseiras, demagogia e más-intenções.

Pelo lado da procura, a redução do atrativo se deve à consolidação de uma linha do governo que puxa o país para o desenvolvimento. No item combate à corrupção, o ciclo de governos Lula-Dilma inaugurou uma nova fase da vida pública brasileira, atacando de frente a corrupção e o desperdício. À exceção dos corruptos, todos os demais brasileiros só podem aplaudir a iniciativa. Ninguém mais do que o governo hoje tem condições de dizer que ajusta suas ações pela régua da justiça. De resto, o que existe é a proverbial ladainha da direita contra o progresso social, que fica politicamente bem demonstrada com a patética demonstração dos bocas sujas que ofenderam a presidenta.

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