Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
O Brasil amanhece na segunda-feira (30/6) ouvindo vagas referências a convenções partidárias que oficializam candidaturas a presidente e a governadores de estados. Mas o som de fundo ainda é o dos locutores de futebol narrando a vitória dramática da seleção brasileira contra o time do Chile, na partida que valeu a classificação para as quartas-de-final da Copa do Mundo. A classificação do Brasil, obtida na disputa de pênaltis após persistir o empate nos 30 minutos de prorrogação, vai compor o rol das grandes histórias do esporte.
Os jornais de domingo (29/6) vieram recheados de análises, gráficos e opiniões abalizadas de veteranos jornalistas – e também de palpites dos neófitos da bola, que em época de grandes eventos brotam de outros ramos do conhecimento em busca de seu lugar na mídia.
Mas a descrição daquele episódio não cabe na linguagem comedida do jornalismo. Só mesmo a literatura poderia dar conta de produzir um relato convincente de como o pior time em campo acabou beneficiado por um movimento caprichoso que apenas um objeto esférico pode produzir.
Quando a bola chutada pelo chileno Jara partiu, girando no sentido anti-horário, seu destino era entrar no canto esquerdo do gol defendido pelo brasileiro Júlio César, que jamais a alcançaria. Mas o que se viu foi a mais perfeita representação do futebol. As imagens em câmera lenta mostram que a pelota bate na trave, reverte o giro que a encaminhava para dentro do gol e, fazendo um arco, cruza toda a linha mortal, saindo pela linha de fundo.
Pode-se dizer que, impulsionada pelo tiro forte e tecnicamente perfeito do atleta chileno, ela se encaminhava para onde a conduzia toda a matemática, toda a geometria, a física e a ciência dos ventos. Mas aquele sólido geométrico cuja superfície curva tem todos os pontos equidistantes de seu centro não é um objeto tridimensionalmente simétrico: quando em movimento, ele se deforma, reagindo aos impactos externos.
O capricho da bola se resume ao jogo das pressões entre sua atmosfera interior e o resto do planeta. Tudo remetia o objeto para o gol: menos o imponderável, e o imponderável é a essência do futebol.
A ilusão do controle
O imponderável já havia marcado sua presença em um lance anterior, no último minuto da prorrogação, quando a bola chutada pelo centroavante chileno Mauricio Pinilla se chocou contra o travessão de Júlio César. Ali já se manifestava aquilo que faz do futebol uma paixão capaz de mobilizar quase todo o planeta.
Mais da metade de toda a população da Terra acompanha os jogos pela televisão, e com todas as possibilidades técnicas, todo o planejamento que acompanha as equipes, o segredo do jogo segue sendo o acaso. Esse é o significado que se concentra no caprichoso movimento que produz a bola ao tocar na trave esquerda de Júlio César, fazer a elipse ao longo da linha do gol e sair pelo outro lado.
Se tivesse batido um milímetro mais para dentro, ela poderia seguir girando no sentido anti-horário e cruzar a linha fatal, acionando o sistema eletrônico de detecção inaugurado nesta Copa. Se tivesse batido de frente, não teria o mesmo efeito dramático do quase-gol.
O potencial para desmentir previsões de especialistas, para contrariar a própria história e desmoralizar as planilhas é que transforma o futebol numa metáfora da própria vida. Sua essência é demonstrar que o controle é pura ilusão.
Vistas pela televisão, as jogadas precisam ser repetidas, eventualmente com a ajuda dos comentaristas, para que o espectador se convença de que o improvável substituiu a lógica, a surpresa superou o planejamento. E no dia seguinte, depois de tudo visto e revisto muitas vezes nos programas da TV, as pessoas se aglomeram diante das bancas e quiosques para olhar as primeiras páginas.
Reproduzidas na imprensa, as jogadas são congeladas pelas palavras e pelas fotografias, e só então aquilo que parecia inacreditável se consolida no entendimento. Essa é provavelmente a função remanescente da mídia tradicional: ancorar a percepção fugaz criada pelos meios eletrônicos.
Aí está também seu principal desafio: aceitar que, na vida real como no futebol, o desejo do jornalista pode ser contrariado por um capricho da bola.
O Brasil amanhece na segunda-feira (30/6) ouvindo vagas referências a convenções partidárias que oficializam candidaturas a presidente e a governadores de estados. Mas o som de fundo ainda é o dos locutores de futebol narrando a vitória dramática da seleção brasileira contra o time do Chile, na partida que valeu a classificação para as quartas-de-final da Copa do Mundo. A classificação do Brasil, obtida na disputa de pênaltis após persistir o empate nos 30 minutos de prorrogação, vai compor o rol das grandes histórias do esporte.
Os jornais de domingo (29/6) vieram recheados de análises, gráficos e opiniões abalizadas de veteranos jornalistas – e também de palpites dos neófitos da bola, que em época de grandes eventos brotam de outros ramos do conhecimento em busca de seu lugar na mídia.
Mas a descrição daquele episódio não cabe na linguagem comedida do jornalismo. Só mesmo a literatura poderia dar conta de produzir um relato convincente de como o pior time em campo acabou beneficiado por um movimento caprichoso que apenas um objeto esférico pode produzir.
Quando a bola chutada pelo chileno Jara partiu, girando no sentido anti-horário, seu destino era entrar no canto esquerdo do gol defendido pelo brasileiro Júlio César, que jamais a alcançaria. Mas o que se viu foi a mais perfeita representação do futebol. As imagens em câmera lenta mostram que a pelota bate na trave, reverte o giro que a encaminhava para dentro do gol e, fazendo um arco, cruza toda a linha mortal, saindo pela linha de fundo.
Pode-se dizer que, impulsionada pelo tiro forte e tecnicamente perfeito do atleta chileno, ela se encaminhava para onde a conduzia toda a matemática, toda a geometria, a física e a ciência dos ventos. Mas aquele sólido geométrico cuja superfície curva tem todos os pontos equidistantes de seu centro não é um objeto tridimensionalmente simétrico: quando em movimento, ele se deforma, reagindo aos impactos externos.
O capricho da bola se resume ao jogo das pressões entre sua atmosfera interior e o resto do planeta. Tudo remetia o objeto para o gol: menos o imponderável, e o imponderável é a essência do futebol.
A ilusão do controle
O imponderável já havia marcado sua presença em um lance anterior, no último minuto da prorrogação, quando a bola chutada pelo centroavante chileno Mauricio Pinilla se chocou contra o travessão de Júlio César. Ali já se manifestava aquilo que faz do futebol uma paixão capaz de mobilizar quase todo o planeta.
Mais da metade de toda a população da Terra acompanha os jogos pela televisão, e com todas as possibilidades técnicas, todo o planejamento que acompanha as equipes, o segredo do jogo segue sendo o acaso. Esse é o significado que se concentra no caprichoso movimento que produz a bola ao tocar na trave esquerda de Júlio César, fazer a elipse ao longo da linha do gol e sair pelo outro lado.
Se tivesse batido um milímetro mais para dentro, ela poderia seguir girando no sentido anti-horário e cruzar a linha fatal, acionando o sistema eletrônico de detecção inaugurado nesta Copa. Se tivesse batido de frente, não teria o mesmo efeito dramático do quase-gol.
O potencial para desmentir previsões de especialistas, para contrariar a própria história e desmoralizar as planilhas é que transforma o futebol numa metáfora da própria vida. Sua essência é demonstrar que o controle é pura ilusão.
Vistas pela televisão, as jogadas precisam ser repetidas, eventualmente com a ajuda dos comentaristas, para que o espectador se convença de que o improvável substituiu a lógica, a surpresa superou o planejamento. E no dia seguinte, depois de tudo visto e revisto muitas vezes nos programas da TV, as pessoas se aglomeram diante das bancas e quiosques para olhar as primeiras páginas.
Reproduzidas na imprensa, as jogadas são congeladas pelas palavras e pelas fotografias, e só então aquilo que parecia inacreditável se consolida no entendimento. Essa é provavelmente a função remanescente da mídia tradicional: ancorar a percepção fugaz criada pelos meios eletrônicos.
Aí está também seu principal desafio: aceitar que, na vida real como no futebol, o desejo do jornalista pode ser contrariado por um capricho da bola.
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