Por Emir Sader, na Revista do Brasil:
Desde que a via armada deixou de ser possível como forma de acesso ao poder pela esquerda na América Latina, assim como os golpes militares clássicos – restaram os “golpes brancos”, como os dados em Honduras e no Paraguai –, as eleições assumiram importância cada vez maior no continente. Foi por essa via que os governos progressistas atuais puderam colocar em prática programas pós-neoliberais.
O calendário eleitoral tornou-se então importante, porque é o momento em que os cidadãos renovam ou não mandatos na direção dos governos. A temporada define momentos importantes para os países, especialmente aqueles em que forças alternativas ao neoliberalismo governam.
Depois da década neoliberal de 1990, começaram a ser eleitos governos como produto da rejeição popular ao fracasso daqueles. Esses governos – que chamo de pós-neoliberais – têm em comum a prioridade das políticas sociais e não dos ajustes fiscais; a integração regional e os intercâmbios Sul-Sul e não os tratados de livre comércio com os Estados Unidos; e o papel do Estado como indutor do crescimento econômico e de garantia dos direitos sociais, e não o Estado mínimo.
São governos que, pela primeira vez na América Latina – e de maneira simultânea na Venezuela, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia e no Equador –, diminuíram significativamente as desigualdades sociais no continente mais desigual do mundo, propiciaram maior legitimidade dos Estados e estabilidade política. Se elegeram e reelegeram – ou elegeram seus sucessores – durante mais de uma década, introduziram formidáveis processos de democratização social, contando com o apoio das camadas mais pobres da população.
Atuaram nos espaços de menor resistência, de maior fragilidade do neoliberalismo: a exclusão social, a centralidade do mercado, a subordinação externa aos Estados Unidos. Os sucessos foram imediatos, com apoio popular generalizado, traduzido em força política. Mesmo a recessão internacional iniciada em 2008 não conseguiu quebrar o dinamismo das economias desses países, embora tenham diminuído seu ritmo de crescimento.
Estruturas de poder
Se poderia dizer que foi uma etapa de crescimento relativamente fácil ou que enfrentou menos obstáculos. Pôde avançar sem ter de encarar as profundas estruturas de poder enraizadas nas nossas sociedades, consolidadas pelo neoliberalismo. O ano de 2014 é de eleições significativas na América Latina. Rafael Correa já havia sido reeleito de forma cômoda no ano passado, com uma grande maioria parlamentar.
Este ano o resultado das eleições municipais não foi favorável ao governo, especialmente em Quito, onde o governo perdeu a prefeitura. Foi um chamado de atenção para os problemas da Aliança País, legenda governante, que mudou sua direção, buscando uma nova forma de organização e de relação com os movimentos populares.
Em El Salvador, depois do governo de Mauricio Funes, apoiado pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), finalmente esta consegue eleger diretamente um representante seu para a presidência. Salvador Sánchez Cerén havia sido o principal dirigente guerrilheiro da FMLN e que conduziu a reciclagem, com sucesso, da organização da luta armada para a luta institucional.
Prognósticos
Ainda na América Latina, duas eleições significativas, não tanto por quem foi eleito, mas por quem foi derrotado: Ricardo Martinelli, ex-presidente do Panamá, e Laura Chincilla, ex-presidenta da Costa Rica, eram os dois porta-vozes mais exuberantes do neoliberalismo na região e seus candidatos foram derrotados, mudando o cenário político na América Central.
A renhida eleição na Colômbia permitiu evitar um retrocesso, que teria consequências graves para o clima na América do Sul, com deterioração da situação interna no país e nas relações com os países vizinhos, especialmente com a Venezuela, contaminando as convivências com a Unasul e em outras instâncias regionais. A reeleição de Juan Manuel Santos permite concluir o processo de negociações de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e começar algo similar – e menos complexo – com o Exército de Libertação Nacional.
Ainda este ano haverá eleições importantes no Brasil, na Bolívia e no Uruguai. Aqui, Dilma deve ganhar, no primeiro ou no segundo turno. Não tivesse tido uma política de comunicações horrível – o pior lado do governo –, as eleições seriam ganhas de maneira muito mais clara. Porém, a campanha terrorista da mídia monopolista contra o governo consegue desgastar a imagem de Dilma, a ponto de que talvez ela tenha de enfrentar um segundo turno.
A vitória de Evo Morales é dada como segura, provavelmente sem necessidade do segundo turno, propiciando à Bolívia o governo de maior apoio popular de toda sua história e que levou ao período político de maior estabilidade institucional que o país já conheceu.
A Frente Ampla, no Uruguai, deve conquistar sua terceira vitória consecutiva, desta vez com o retorno do seu primeiro presidente – Tabaré Vásquez. As pesquisas apontam para nova vitória da FA, com Tabaré, que derrotou uma candidata da esquerda na consulta interna. Mostram também que não conseguiria ganhar no primeiro turno, o que significa que a FA não teria maioria no Congresso.
Essa situação parlamentar, somada ao anúncio de que Danilo Astori voltaria a estar no comando da economia, configura um governo mais moderado do que o do atual presidente, José Pepe Mujica. A esquerda conseguiu colocar Raul Sendic – filho de um legendário dirigente tupamaro – como vice-presidente, insuficiente para se contrapor a uma provável orientação mais conservadora do novo governo uruguaio.
No seu conjunto, as eleições favorecem as tendências progressistas – especialmente onde já governa: Brasil, Bolívia e Uruguai. Foi brecada a tentativa de retrocesso na Colômbia, enquanto na Costa Rica e no Panamá foram derrotados dois próceres do neoliberalismo no continente.
O que não impede que os governos progressistas vivam um período de dificuldades. Os opositores a essas forças políticas se apressaram em caracterizar esse processo como “fim de ciclo” (do kirchnerismo, do chavismo, do petismo etc. etc.) O ritmo baixou de patamar, e surgiram desequilíbrios econômicos em alguns países, como Venezuela e Argentina, com níveis de descontrole inflacionário, dificuldades de financiamentos externos, desabastecimento de certos produtos, problemas na balança comercial e de pagamentos.
Tudo se reflete no plano político, com perda de apoio popular por parte de processos que tinham gozado desse apoio ao longo da sua primeira década de existência. A difícil eleição de Nicolás Maduro na Venezuela foi um símbolo desse reflexo político dos problemas no modelo venezuelano. As dificuldades de Cristina Kirchner para eleger um sucessor associado ao projeto que ela representa são outro sinal dos obstáculos que se apresentam hoje para os governos pós-neoliberais.
O momento é de balanço dos avanços, dos obstáculos e das reformas necessárias para que os projetos pós-neoliberais possam ter um alcance estratégico para os países da América Latina.
Desde que a via armada deixou de ser possível como forma de acesso ao poder pela esquerda na América Latina, assim como os golpes militares clássicos – restaram os “golpes brancos”, como os dados em Honduras e no Paraguai –, as eleições assumiram importância cada vez maior no continente. Foi por essa via que os governos progressistas atuais puderam colocar em prática programas pós-neoliberais.
O calendário eleitoral tornou-se então importante, porque é o momento em que os cidadãos renovam ou não mandatos na direção dos governos. A temporada define momentos importantes para os países, especialmente aqueles em que forças alternativas ao neoliberalismo governam.
Depois da década neoliberal de 1990, começaram a ser eleitos governos como produto da rejeição popular ao fracasso daqueles. Esses governos – que chamo de pós-neoliberais – têm em comum a prioridade das políticas sociais e não dos ajustes fiscais; a integração regional e os intercâmbios Sul-Sul e não os tratados de livre comércio com os Estados Unidos; e o papel do Estado como indutor do crescimento econômico e de garantia dos direitos sociais, e não o Estado mínimo.
São governos que, pela primeira vez na América Latina – e de maneira simultânea na Venezuela, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia e no Equador –, diminuíram significativamente as desigualdades sociais no continente mais desigual do mundo, propiciaram maior legitimidade dos Estados e estabilidade política. Se elegeram e reelegeram – ou elegeram seus sucessores – durante mais de uma década, introduziram formidáveis processos de democratização social, contando com o apoio das camadas mais pobres da população.
Atuaram nos espaços de menor resistência, de maior fragilidade do neoliberalismo: a exclusão social, a centralidade do mercado, a subordinação externa aos Estados Unidos. Os sucessos foram imediatos, com apoio popular generalizado, traduzido em força política. Mesmo a recessão internacional iniciada em 2008 não conseguiu quebrar o dinamismo das economias desses países, embora tenham diminuído seu ritmo de crescimento.
Estruturas de poder
Se poderia dizer que foi uma etapa de crescimento relativamente fácil ou que enfrentou menos obstáculos. Pôde avançar sem ter de encarar as profundas estruturas de poder enraizadas nas nossas sociedades, consolidadas pelo neoliberalismo. O ano de 2014 é de eleições significativas na América Latina. Rafael Correa já havia sido reeleito de forma cômoda no ano passado, com uma grande maioria parlamentar.
Este ano o resultado das eleições municipais não foi favorável ao governo, especialmente em Quito, onde o governo perdeu a prefeitura. Foi um chamado de atenção para os problemas da Aliança País, legenda governante, que mudou sua direção, buscando uma nova forma de organização e de relação com os movimentos populares.
Em El Salvador, depois do governo de Mauricio Funes, apoiado pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), finalmente esta consegue eleger diretamente um representante seu para a presidência. Salvador Sánchez Cerén havia sido o principal dirigente guerrilheiro da FMLN e que conduziu a reciclagem, com sucesso, da organização da luta armada para a luta institucional.
Prognósticos
Ainda na América Latina, duas eleições significativas, não tanto por quem foi eleito, mas por quem foi derrotado: Ricardo Martinelli, ex-presidente do Panamá, e Laura Chincilla, ex-presidenta da Costa Rica, eram os dois porta-vozes mais exuberantes do neoliberalismo na região e seus candidatos foram derrotados, mudando o cenário político na América Central.
A renhida eleição na Colômbia permitiu evitar um retrocesso, que teria consequências graves para o clima na América do Sul, com deterioração da situação interna no país e nas relações com os países vizinhos, especialmente com a Venezuela, contaminando as convivências com a Unasul e em outras instâncias regionais. A reeleição de Juan Manuel Santos permite concluir o processo de negociações de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e começar algo similar – e menos complexo – com o Exército de Libertação Nacional.
Ainda este ano haverá eleições importantes no Brasil, na Bolívia e no Uruguai. Aqui, Dilma deve ganhar, no primeiro ou no segundo turno. Não tivesse tido uma política de comunicações horrível – o pior lado do governo –, as eleições seriam ganhas de maneira muito mais clara. Porém, a campanha terrorista da mídia monopolista contra o governo consegue desgastar a imagem de Dilma, a ponto de que talvez ela tenha de enfrentar um segundo turno.
A vitória de Evo Morales é dada como segura, provavelmente sem necessidade do segundo turno, propiciando à Bolívia o governo de maior apoio popular de toda sua história e que levou ao período político de maior estabilidade institucional que o país já conheceu.
A Frente Ampla, no Uruguai, deve conquistar sua terceira vitória consecutiva, desta vez com o retorno do seu primeiro presidente – Tabaré Vásquez. As pesquisas apontam para nova vitória da FA, com Tabaré, que derrotou uma candidata da esquerda na consulta interna. Mostram também que não conseguiria ganhar no primeiro turno, o que significa que a FA não teria maioria no Congresso.
Essa situação parlamentar, somada ao anúncio de que Danilo Astori voltaria a estar no comando da economia, configura um governo mais moderado do que o do atual presidente, José Pepe Mujica. A esquerda conseguiu colocar Raul Sendic – filho de um legendário dirigente tupamaro – como vice-presidente, insuficiente para se contrapor a uma provável orientação mais conservadora do novo governo uruguaio.
No seu conjunto, as eleições favorecem as tendências progressistas – especialmente onde já governa: Brasil, Bolívia e Uruguai. Foi brecada a tentativa de retrocesso na Colômbia, enquanto na Costa Rica e no Panamá foram derrotados dois próceres do neoliberalismo no continente.
O que não impede que os governos progressistas vivam um período de dificuldades. Os opositores a essas forças políticas se apressaram em caracterizar esse processo como “fim de ciclo” (do kirchnerismo, do chavismo, do petismo etc. etc.) O ritmo baixou de patamar, e surgiram desequilíbrios econômicos em alguns países, como Venezuela e Argentina, com níveis de descontrole inflacionário, dificuldades de financiamentos externos, desabastecimento de certos produtos, problemas na balança comercial e de pagamentos.
Tudo se reflete no plano político, com perda de apoio popular por parte de processos que tinham gozado desse apoio ao longo da sua primeira década de existência. A difícil eleição de Nicolás Maduro na Venezuela foi um símbolo desse reflexo político dos problemas no modelo venezuelano. As dificuldades de Cristina Kirchner para eleger um sucessor associado ao projeto que ela representa são outro sinal dos obstáculos que se apresentam hoje para os governos pós-neoliberais.
O momento é de balanço dos avanços, dos obstáculos e das reformas necessárias para que os projetos pós-neoliberais possam ter um alcance estratégico para os países da América Latina.
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