Por Osvaldo Coggiola, no site Outras Palavras:
A greve da USP (e da Unesp e Unicamp, excetuados os docentes da segunda), iniciada a 27 de maio, entrou no seu quarto mês, acrescida agora da decisão grevista dos estudantes de Medicina (FMUSP), que assim o decidiram em assembleia de 600 presentes, de todos os anos do curso. A greve, método de luta por excelência da classe trabalhadora, se sobrepôs à intensa propaganda contrária veiculada institucionalmente (pela Reitoria), ao corte de ponto dos funcionários técnico-administrativos, às ameaças de diretorias e chefias, à repressão da Polícia Militar e à hostilidade declarada da grande imprensa (que usou para o movimento em curso os qualificativos de “grevismo”, “baderna”, “grevistas folclóricos” e outros semelhantes), hostilidade que se estendeu ao próprio caráter público da instituição (a USP estaria “contra o muro” - o paredão? - segundo ponderado editorial da Folha de S. Paulo), a mesma imprensa que cobra das universidades públicas padrões de “primeiro mundo”, enquanto se satisfaz com padrões de “quarto mundo” para si.
No caso da USP, a greve agiu também como catalisador de uma crise bem menos financeira do que institucional. O zero (0%) “oferecido” como reajuste salarial na data-base (1º de maio) foi justificado como produto de um comprometimento excessivo (105%) dos repasses mensais do Estado com a folha de pagamentos, situação obviamente conjuntural e para nada nova (esse comprometimento já superou os 100% por diversas vezes no passado, e atingiu 167,4%, por exemplo, em dezembro de 1993; Unesp e Unicamp coexistiram por anos a fio com situação semelhante sem que fosse declarada situação de emergência). Desta vez, porém, essa situação foi anunciadora de uma falência iminente da USP, e também reveladora de uma “crise estrutural”, caracterizada por excessivo número de funcionários (e até de docentes), com salários elevados, e custeio de estruturas que não deveriam fazer parte da USP, como, por exemplo… os hospitais-escola; tudo no quadro de uma previsível queda da arrecadação do ICMS (devida ao “desaquecimento” econômico), um percentual do qual (9,57%) é destinado ao financiamento das universidades públicas paulistas.
Nesse quadro apocalíptico, e para combater essa “crise estrutural”, o Reitor Marco Antônio Zago (transformado em paladino do bom senso pela grande mídia) propôs uma política igualmente “estrutural” e apocalíptica: demissão “voluntária” (PDV) de aproximadamente (ou melhor, “chutadamente”) 3.000 funcionários, não realização de novas contratações (de funcionários e docentes), nem nos casos de aposentadoria ou morte, revisão do regime de trabalho dos funcionários remanescentes, revisão também do regime de trabalho (portanto, do salário) dos docentes (tendo sido formado um GT com esse objetivo), desligamento da USP do HU-Butantã e do “Centrinho” de Reabilitações Crâneo-faciais de Bauru (centro de referência internacional nessa área), venda do patrimônio imobiliário da USP; todas elas medidas aplaudidas de pé pela grande imprensa. Esta, aliás, começou a propor outras ações por conta própria, destacando-se a cobrança de mensalidades dos alunos (chamados carinhosamente de “elite estudantil bancada pelo ICMS”, na Folha de S. Paulo de 4/6)… Estariam isentos aqueles que conseguissem provar sua falta de meios para tanto, ou seja, os que demonstrassem sua “inocência” financeira, depois de declarados culpados do delito de passar pelo vestibular mais difícil do país (e também entre os mais difíceis do mundo, dado o enorme número de países em que inexiste tal exame, em primeiro lugar a vizinha e sempre vilipendiada Argentina).
Levando-se em conta que o pano de fundo da coisa toda é a queda “previsível” do ICMS e da quota-parte deste devida às universidades, queda não só discutível como devida, caso aconteça, sobretudo, à sonegação impositiva crescente e deslavada, e ao desconto indevido e ilegal de parcelas dessa base de cálculo por parte do governo estadual, que sonegou das universidades públicas R$ 2 bilhões entre 2008 e 2013, sendo R$ 540 milhões apenas no último ano (tal como denunciado minuciosamente pela Adusp, sem que a reitoria, a atual ou as precedentes, se pronunciasse a respeito, como seria seu dever), enfim, levando-se isso tudo em conta, a “corajosa” política do Magnífico Reitor se reduz, na melhor das hipóteses, a uma adaptação para nada corajosa, pelo contrário, muito covarde e subserviente, a uma situação de fato. Isto bastaria para desqualificá-la politicamente. Acontece que no pacote reitoral, e nos seus considerandos prévios, há otras cositas más, que revelam a verdadeira crise, política, institucional, moral e até intelectual, da USP. Vejamos.
Para justificar a existência uma “crise estrutural” a partir do mágico 105% mensal supracitado, a Reitoria e seus porta-vozes midiáticos se lançaram a uma série de manipulações estatísticas torpes e amadoras, comparando literalmente alhos com bugalhos, a respeito do inchaço do quadro funcional (e docente) da USP, quando comparado com os de universidades bem situadas nos rankings internacionais, todas do “primeiro mundo”, especialmente dos EUA e da Grã-Bretanha. Obviando o óbvio: comparar uma universidade pública com universidades que são (as principais) privadas, comparar universidades com orçamentos abissalmente desiguais (em favor das universidades euro-norte-americanas), comparar uma universidade gratuita (a USP) com universidades (por exemplo, as inglesas) que cobram anuidades proibitivas para a maioria da população do país, comparar efetivos de alunos abissalmente diferentes (em favor da USP), comparar a USP com universidades de países cujas rendas per capita sextuplicam (ou mais) a brasileira, para não falar na desigual distribuição (“concentração”) da renda total existente entre uns e outros, e isto sem que os EUA ou o Reino Unido sejam os paraísos da igualdade social (muito pelo contrário, em especial nas últimas décadas neoliberais), mas que, mesmo se esforçando muito, não conseguem igualar nesse quesito à sétima (ex sexta) economia do mundo, a nossa, que ocupa o 79º lugar no IDH (entre 187 países), mesmo depois de tirar 23 milhões de pessoas da pobreza absoluta nos últimos anos; e com a segunda pior concentração de renda do mundo dentre os países medidos pela OCDE (0,30 de índice Gini em 2010, enquanto o índice do México, o país mais socialmente desigual dentre os medidos, era de 0,34).
A Folha de S.Paulo, que se transformou numa espécie de torcida-vanguarda organizada do Reitor, apontou uma proporção de apenas cinco alunos por funcionário na USP (ela é de 5,5, para sermos mais precisos) supostamente escandalosa quando comparada à razão de 15:1 “que se pratica nas conceituadas universidades britânicas”, uma relação tirada vá deus (ou Deus) saber de onde. Essa proporção, na verdade, varia muito entre as universidades melhor “ranqueadas” do mundo, atendendo às suas especificidades e diferenças, às vezes enormes, que tornam bastante inútil tirar uma média mundial. Quanto ao fato dessa proporção provocar ou não uma “crise estrutural”, não precisava ir além-mar para buscar uma comparação chutada: na Unicamp, em 2012, o número de alunos era de 32,5 mil, e o dos funcionários técnico-administrativos de quase oito mil, do que resulta uma proporção de 4:1 (“pior” do que a da USP, se usados os simplórios critérios folhísticos) sem que, devido a isso, ninguém declarasse a Unicamp em situação de “crise financeira estrutural” ou de falência em potencial (ao contrário, nesta data-base seu Reitor decidiu conceder o índice de reajuste Fipe – 5,2% – sob a forma de abono não-salarial, aos seus docentes e funcionários, devido a dispor [tanto quanto a USP] de meios financeiros para tanto).
O Prof. Sean Purdy, da USP (canadense e anglófono, o que talvez o torne mais palatável, como veremos, para o staff reitoral) viu-se obrigado a precisar, na Carta Maior, o que segue: “Em todas as universidades britânicas, em 2013, houve 2.340.275 estudantes de graduação e pós-graduação, 196.845 funcionários técnico-administrativos e 185.535 professores. Isto é, 11,89 alunos por funcionário técnico-administrativo e 12,61 alunos por professor. De onde vem o número de Zago e da Folha de 15 alunos para 1 funcionário nas universidades britânicas, ninguém sabe, pois não citaram sua fonte. O mais confiável órgão de estáticas do Reino Unido diz que esse número é errado. Se olharmos nas quatro melhores universidades britânicas, segundo os rankings do Times Higher Education World Rankings para 2013, os números de Zago e da Folhapioram ainda mais. Na ordem do ranking são: University of Oxford, University of Cambridge, Imperial College e University College de Londres. Vamos supor que essas quatro universidades sejam as principais e conceituadas universidades no país citado por Zago e pela Folha. Em 2012/2013, na Oxford, houve 4,92 alunos por funcionário e 4,3 alunos por professor. Na Cambridge, 4,4 alunos por funcionário e 3,9 alunos por professor. No Imperial College, 3,4 alunos por funcionário e 3,8 alunos por professor. Finalmente, no University College de Londres havia 3,8 alunos por funcionário e 5,5 alunos por professor. Portanto, todas essas universidades tinham mais funcionários por aluno do que a USP, e bem menos alunos por professor. Não por acaso as melhores universidades do mundo têm mais funcionários e professores por aluno. No caso da USP, com sua importância central no estado e no Brasil, temos que também levar em conta os hospitais universitários, museus e outros institutos que contribuem com a missão geral da universidade pública”.
A proporção alunos/docente na USP é atualmente de 15,5:1, variando enormemente (assim como a relação alunos/funcionário) de faculdade para faculdade, de departamento para departamento, de curso para curso, até de disciplina para disciplina, como não poderia ser de outro modo numa universidade do porte, abrangência e variedade da USP. Se a proporção alunos/professor de Cambridge tivesse que ser seguida na USP, o número de docentes desta última deveria ser de 23.300 (é apenas um quarto disso); e, em qualquer um dos casos citados, o número de funcionários técnico-administrativos da USP também deveria crescer. Comparar orçamentos é simplesmente inútil: o de Harvard (universidade também citada com frequência pela “elite” oligárquica uspiana) é de US$ 30 bilhões (R$ 75 bilhões) para 21 mil alunos; o da USP de R$ 4,3 bilhões (US$ 1,7 bilhão) para 93 mil alunos. O custo total anual de um estudante de graduação em Harvard no ano letivo de 2008-2009 foi calculado em 800 mil euros (R$ 2,8 milhões), sendo 400 mil euros (R$ 1,4 milhão) somente de matrícula, 200 mil euros (R$ 700 mil) de estadia e alimentação, e 200 mil euros (R$ idem anterior) de “outras taxas”. Quanto às reservas financeiras e patrimoniais de uma e de outra, bem, melhor nem começar…
Como comentou Luís Nassif, “a relação aluno/professor em Harvard é de 7 por 1. A Universidade Católica do Chile teria ultrapassado a USP em certos rankings internacionais exatamente por ela ter uma relação alunos/professor menor. Com o congelamento da contratação de novos professores [na USP], a situação será ainda pior. O que se tira disto é que os professores e funcionários da universidade precisam responder por mais atividades com um salário que, comparado ao recebido em 1989 por um docente, teve o seu poder de compra reduzido em 9,5%. Estes números demonstram que a USP tornou-se uma universidade de massa em plena expansão sem ter recebido do Estado as condições para tanto. Ela é apenas um capítulo a mais da demissão do Estado em relação à educação pública”.
Os docentes do Instituto de Biociências da USP ensinaram aos bisonhos matemáticos na inepta Reitoria uspiana que “o número total de estudantes matriculados na Universidade de São Paulo (USP) cresceu 95,8% em 25 anos, de 44.811 em 1989 (quando por lei a universidade passou a ter autonomia financeira) para 87.751 em agosto de 2014… No mesmo período, o número de professores na universidade foi de 5.626 para 6.008, um aumento de 6,8%. Já a quantidade de funcionários, a única que chegou a cair 13,5% entre 1989 e 2009, voltou a subir nos últimos cinco anos e igualou o patamar de 25 anos atrás”. Contabilizados todos os alunos, o número destes na USP é atualmente de quase 93 mil (cinco mil a mais do que indicado pelos docentes do IB-USP), o que torna os cálculos dos docentes de biociências bastante modestos. Quanto aos funcionários, eles são em número de 17.451, menos que os 17.735 de 1989, quando a USP era, em número de alunos (que mais do que dobrou no período considerado), de departamentos, laboratórios, unidades, faculdades, campi, cursos, disciplinas, responsabilidades em geral, bem menor.
Ai está a explicação (refutação) da cifra citada pela Folha no editorial (19/8) em que o matutino paulistano pôs “a USP contra o muro”, devido a que “o quadro de funcionários não docentes cresceu 13% de 2010 a 2013, e o número de alunos aumentou 5%. Há algo de errado nessas contas”. Certamente, há algo de errado nas contas da Folha e, sobretudo, na própria Folha. O levantamento dos docentes do IB-USP (e outros semelhantes) demonstrou que o número de funcionários técnico-administrativos (e não de “não docentes”, como a Folha os chama, o que equivaleria a chamar a Folha de “não revista semanal”) cresceu, na USP, bem menos (em termos absolutos e proporcionais) do que o número de alunos, para não falar da expansão geográfico-institucional da USP (Lorena, EACH da Zona Leste), ou seja, novas faculdades e departamentos; do crescimento das atividades de pesquisa (que melhoraram espantosamente os índices internacionais da USP) e, last but not least, da espantosa expansão da extensão universitária, incluída a “Universidade para a Terceira Idade” e outros (muitos) serviços prestados à comunidade. Na USP houve um crescimento de 88% nos cursos oferecidos, pulando estes de 132 em 1995 para 249 em 2012, graças, principalmente, à construção de novos campi. O número de professores não cresceu no mesmo ritmo: somente 4% no mesmo período (uma defasagem de… 92%), aumentando a relação aluno/professor de 8:1 para 15,5:1.
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Saiamos da “guerra dos números” e vejamos a justificativa política. Segundo o Magnífico Zago, a crise financeira foi devida ao inchaço da folha funcional, isto devido à implementação da nova carreira dos funcionários, e também aos gastos faraônicos (incluídas a abertura de escritórios da USP em Londres, Boston e até Cingapura) de seu megalomaníaco antecessor, João Pequenino Rodas, vários de cujos itens ainda não completados e pagos foram suspensos pela atual administração. Tal situação teria sido desconhecida dele próprio (Zago) e de seu staff atual até sua recente posse, em que pese sua participação (de todos, ou quase) no mais alto nível do staff de Rodas, que teria conseguido ocultar seus gastos e a situação financeira da USP até de seus colaboradores mais íntimos: “O Conselho Universitário não tinha consciência dessa situação financeira” (entrevista de Zago à Veja); “A questão do orçamento foi uma surpresa não agradável para toda a Universidade”, declarou Zago ao Jornal do Campus.
Surpresa? A crise financeira da USP, a invasão inconsulta e deletéria por parte de Rodas das suas reservas financeiras, já tinha sido denunciada detalhadamente (e amplamente divulgada) no Informativo Adusp de junho de 2013 (há bem mais de um ano, portanto). Que um destacado Pró-Reitor da gestão Rodas declare agora tê-la ignorado naquele momento, e ainda depois, é bastante mais do que inacreditável e, se tomada ao pé da letra, teria desqualificado o ignorante (ex dirigente principal do CNPq, nada menos) para exercer qualquer função de responsabilidade administrativa.
Segundo declarou a Profa. Ana Lúcia Pastore, superintendente de segurança da USP da gestão Zago, em reunião da Congregação da FFLCH, este teria qualificado, em reuniões recentes da Reitoria, a gestão de Rodas como “inescrupulosa” (o que equivale a criminosa). Pois bem, até agora nenhuma comissão de sindicância foi montada ou mesmo proposta a respeito (apenas a promessa de uma auditoria), isto numa universidade onde esse tipo de comissões, suspensões e expulsões de alunos, demissões de funcionários, tem sido moeda corrente, em que pese estes terem sido (supostamente) responsáveis por danos ao patrimônio público de magnitude infinitesimal, quando comparados com prejuízos provocados pelos desmandos de Rodas, premiado este com uma nova função de conselheiro na Fapesp.
Não só isso. Pouco antes do início da greve, em 21 de maio, o próprio Rodas publicou um longo artigo na página 3 da Folha de S. Paulo (“O orçamento da USP”) em que atribuiu a expansão de gastos de sua gestão à “expansão do ensino superior” (da USP), quando “decidiu-se – com a aprovação dos órgãos colegiados em que tinham assento os atuais dirigentes da USP – que parcela dessa reserva fosse aplicada em investimentos diversos, concentrados em instalações e equipamentos, moradia, segurança, transporte… Com a aprovação unânime do Conselho Universitário, os recursos viabilizaram a implantação de um plano de carreira para funcionários, superando antiga distorção, pois é notório que uma universidade dessa importância não pode prescindir de funcionários qualificados e motivados”. Isto depois de desculpar pelo fato “a remuneração atual dos professores das universidades estaduais paulistas (que) é inferior à das suas congêneres federais” (correto). Este artigo não foi objeto de resposta por parte de nenhum membro da atual administração, nem sequer do Reitor Zago, apesar de serem explicitamente mencionados (para falar a verdade, acusados) como corresponsáveis (e, segundo a versão atual, cúmplices) dos “desmandos” que deram base à crise e a atual política de desmonte da USP.
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Médicos, enfermeiras e funcionários do Hospital Universitário se encontram em greve, em defesa de uma unidade que presta quase 300 mil atendimentos de emergência anuais (quase mil por dia), principalmente para a população carente, e realiza quase um milhão de exames laboratoriais por ano, só por nomear algumas estatísticas (estas bem reais) destacadas. Os diretores do setor médico e os chefes técnicos do hospital já se manifestaram contrários à passagem do HU para o governo do Estado, que significaria em breve a privatização de sua gestão (e, obviamente, de seus lucros potenciais) sob a forma de “organização social” (OS, o chamado “público não estatal”) ou fundação, seguindo o modelo federal do Ebserh (ou algo ainda pior). Os motivos expostos são a destruição do ensino prático e da pesquisa in situ que tal transferência provocaria. A justificativa da medida de desligamento do HU apresentada pela Reitoria, em reunião com os diretores de unidade da universidade, é que uma enfermeira do HU começa sua carreira com vencimentos de R$ 13 mil (algo inacreditável, pois esse é o salário bruto de um professor titular da USP, cargo conquistado depois de 25-30 anos de carreira) enquanto uma enfermeira do setor público de saúde percebe inicialmente só R$ 3.500.
Além disso, a USP se comprometeria a manter o pagamento dos atuais funcionários (que não se “demitirem voluntariamente”) até sua aposentadoria (e morte) – sem importar-se muito em criar um monstrengo em que pessoas que executariam o mesmo trabalho receberiam R$ 13 mil (segundo a Reitoria) ou R$ 3.500, dependendo da fonte pagadora – tudo para gerar uma economia de… R$ 40 milhões anuais (custeio atual do HU), menos de 1% do orçamento (oficial) da USP, sendo que o HU não consome, na sua estrutura atual e incluídos os salários, mais de 6% desse orçamento. Rifa-se, portanto, hospital-escola (em que se realiza atualmente 40% do estágio hospitalar dos estudantes), pesquisa, atendimento ao público carente, patrimônio público, a troco de um troco. Viva a greve do HU!
Já nos ocupamos das estatísticas e da política da atual (transitória) administração uspiana, vamos agora à sua ideologia (pois de algum modo é preciso chamá-la). Em famigerada entrevista à Veja (24/6) o Magnífico Zago menosprezou a recente perda de posições da USP em alguns rankings internacionais, propondo no mesmo veículo, porém, uma política contrária à “estabilidade precoce” de docentes e funcionários, uma política que incluísse “a prerrogativa de contratar ou demitir de acordo com o desempenho”. Para atingir esse objetivo, claro, seria preciso “abandonar a dinâmica de sindicalismo na vida universitária”. Depois de encabeçar, durante quatro anos!, uma administração que se autoglorificou permanentemente da excelência da pesquisa uspiana e de sua progressão nos índices internacionais, detectou (outra “surpresa”, esta inadmissível para quem foi Pró-Reitor de Pesquisa) que os outrora (apenas ontem) louvados e performantes professores-pesquisadores da USP se encontram “em uma zona de conforto que os leva a projetos de sucesso garantido de antemão”, isto porque, depois de um tempo, “eles se casam, têm filhos, ficam mais prudentes, e o sistema aceita”. Poderia se deduzir que Zago possui uma concepção filosófica que considera que a ciência é incompatível, não só com sindicatos, mas inclusive com o preceito bíblico – “crescei e multiplicai-vos”. Mas duvidamos que tenha sequer pensado no assunto.
Depois de citar os recorrentes “exemplos” de Harvard e do MIT (ignorando a força dos sindicatos universitários nos EUA, e as greves recentes nessas instituições), nosso Zago se desdobrou, para a Veja, em antropólogo, e detectou uma desvantagem ou falha (também “estrutural”) dos estudantes brasileiros (uspianos incluídos): eles não falam inglês desde a infância, mas português. Como não é possível mudar o país outrora colonizador da Terra da Santa Cruz, nem o Tratado de Tordesilhas (não sabemos se foram financiadas pesquisas a respeito), a solução é óbvia: “A prioridade número 1 da USP hoje é garantir o conhecimento da língua inglesa para seus alunos” (grifo nosso), mais importante, parece, que garantir seu ingresso mais democrático, ou sua permanência e bom desempenho nos estudos. Digamos que propaganda ou incentivos nesse sentido (anglófilo) não é o que falta, basta ligar o rádio ou a TV a qualquer hora do dia. Para quem cacareja “globalização” cada vez que abre a boca, porém, trata-se de uma conclusão bem primária e provinciana.
Pois exatamente nos “centros globais” invejados por Zago and Co. existe hoje uma batalha cerrada (que Zago ignore isto seria detalhe menor, significaria apenas que ele não lê os jornais) contra o monoglotismo, especialmente anglófono, comprovadamente considerado como um fator empobrecedor da comunicação cultural e científica. Zago pretende, ao que parece, tornar inúteis e eliminar os tradutores dos congressos internacionais e das conferências de professores visitantes, eles seriam outra profissão (e área de pesquisa) inútil, instalada em outra “zona de conforto”. Há, porém, um problema. Pois uma língua não é só um meio de comunicação, mas a base de um sistema de pensamento. Para um dos primeiros grandes filósofos da língua, Wilhelm von Humboldt: “Sem unidade de forma não seria concebível nenhuma língua; falando, os homens recolhem necessariamente seu falar em uma unidade”. A forma da língua é o elemento diferenciador das comunidades nacionais, culturais e sociais. A forma perpassa toda a língua, e “a língua não é o instrumento para designar objetos já pensados, mas o órgão formativo do pensamento”. Sobre uma língua ergue-se uma personalidade nacional ou cultural, diversa da religiosa, que uma nação pode eventualmente compartilhar com outra. Certamente, pedir que Zago pare para pensar isto, seria pedir demais.
Pois, afinal, quem foi esse pobre Humboldt, um velhote ultrapassado do século XIX, que se limitou, institucionalmente, a criar a universidade humboldtiana (1810), e nem devia falar inglês; nosso Zago “global”, um homem do século XXI, sucateia e desmonta universidades públicas e hospitais-escola, algo muito mais “moderno”. Metodologicamente, porém, ele se situa atrás do filósofo (embora arquiteto de formação) cearense, Falcão, que deu conta praticamente do problema humboldtiano na sua maravilhosa interpretação (em inglês) de Eu não sou cachorro não, de Waldick Soriano, demonstrando-o, como um bom matemático, pela via do absurdo. Faltou à nossa classe artística paulista, menos “inovadora” (no bom sentido zaguiano) do que a nordestina, destacar um bom intérprete para uma versão de Trem das Onze na língua de Shakespeare, mas, quem sabe, numa ECA “renovada” e anglicizada…
Como toda grande ideologia, a do Zago tem suas fontes filosóficas; não, claro, as dos filósofos tradicionais costumeiramente usados pelos pesquisadores instalados na “zona de conforto”. Simon Schwartzman, que é despejado de modo inconsulto nos e-mails dos docentes da USP. E, sobretudo, o grande Hélio Schwartsman (parentes? em certo sentido, político, cabe pensar que sim) que veicula suas descobertas filosóficas na Folha de S. Paulo. A 4 de junho, sob o (originalíssimo) título de “Não há almoço grátis”, este sábio nos informa que “a constatação básica é a de que a palavra de ordem (?) de ‘universidade pública, gratuita e de qualidade’ é uma ilusão cognitiva (?). Uma universidade pode perfeitamente ser pública e de qualidade… mas alguém precisa pagar por isso”. Que descoberta notável, ninguém parou nunca para pensar nisso. Não vamos dizer quem é que deve pagar, segundo o filósofo folhiano, para não fundir os miolos do leitor.
Num outro artigo (20/6), curiosamente intitulado “Ideias para a USP” (o curioso é a menção às ideias, não à USP), depois de discorrer sobre “as universidades públicas paulistas (que) conservam uma estrutura de comando muito arcaica, excessivamente voltada para dentro de si mesma”, sua descoberta revolucionária vem sob a prudente forma de pergunta: “Por que o reitor sempre vem dos quadros acadêmicos da própria universidade? Se sua principal tarefa é administrar a instituição, não faria mais sentido buscar um bom executivo no mercado, como faz grande parte das universidades americanas?”. Realmente, nossos filósofos e estrategistas universitários andam à court d’examples (sempre os EUA). Ignoram, claro, que as universidades que “buscam um bom executivo no mercado”, mediante licitação pública, nos EUA, são as privadas, não as públicas.
Os candidatos que se apresentam, por outro lado (até aí chegou a luta nos EUA, por enquanto) são sabatinados por representantes dos diversos segmentos universitários (em entrevistas onde aqueles costumam suar gelado), não apenas (nem principalmente) sobre suas competências administrativas, mas sobre todos os temas relevantes para uma instituição que cumpre uma função social, mesmo quando sendo instituição privada (ou, em geral, público/privada). Quem subscreve presenciou, quando professor visitante na Universidade de Stanford, várias sabatinas de “reitoráveis”, em que os candidatos eram interrogados, inclusive, sobre sua opinião acerca da anexação da mexicana Califórnia (onde Stanford se situa) pelos EUA, em meados do século XIX. Não “gratuitamente”, mas para conhecer a base sobre a qual se assentaria uma política relativa aos estudantes (ou candidatos a estudantes) chicanos ou mexicanos em Stanford, e sobre as minorias oprimidas e segregadas em geral. O paraíso neoliberal-competitivo dos Zago-Schwartsman só existe na sua pobre imaginação ignorante e desprovida de ideias.
A lógica schwartsmaniana, se válida para uma parte da cosa (res) pública, poderia valer para todas, ou seja, para a república toda; ergo, porque não usar o mesmo procedimento para escolher o “reitor” do Brasil, que também conserva “uma estrutura de comando muito arcaica, excessivamente voltada para dentro de si mesmo”, com dispendiosas eleições onde os candidatos, todos anacrônica e antiglobalmente membros da “comunidade interna”, discorrem e debatem (em português, ainda por cima!) sobre temas internos, provincianos e irrelevantes, como saúde, educação, transporte, salário, emprego, pobreza, gastos sociais e outros temas secundários, em vez de fazê-lo sobre infraestrutura para exportações, aeroportos, taxas de juro internacionais, enfim, o que realmente conta, e em inglês, para serem entendidos pelos que realmente contam, e mediante licitação internacional com apresentação prévia de curriculum (em inglês, obviamente). A eleição seria realizada apenas com a participação dos que entendam, linguística e tecnicamente, as opiniões democraticamente expostas pelos candidatos.
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O que há de realmente arcaico, na USP, é sua estrutura de poder e de gestão. Ela se rege por um estatuto disciplinar ditado e baixado em 1971, em plena ditadura militar, redigido, além disso, pelo redator principal do AI-5. A composição dos órgãos colegiados não respeita nem sequer a LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O reitor é eleito pelo governador, sobre a base de uma lista tríplice para cuja nomeação vota um colegiado equivalente a pouco mais de 0,1% dos membros de sua comunidade, de aproximadamente 115-116 mil pessoas, todas adultas e habilitadas para o exercício de seus direitos políticos. O que urge, na USP, é democracia e autonomia.
Contra isso se erguem alguns argumentos. A) A USP (a universidade, em geral) não é um demos, não estabelece nem cobra impostos, não é material nem financeiramente autossuficiente, suas autoridades devem ser designadas (ou validadas), por isso, pelos representantes do poder público. Se essa lógica fosse válida e legítima, ela deveria valer para todas as áreas da atuação pública, nas quais não deveria existir nem o menor resquício de autonomia e democracia. E também para a estrutura de gestão (e até de ensino e pesquisa) interna, isso é, para regular a nomeação e relações entre reitor e diretores de unidade, chefes de departamento e responsáveis por comissões, professores das disciplinas e chefes de laboratório, e, finalmente alunos, todos financiados pelo poder público e ligados por uma estrutura vertical piramidal, na qual só seriam admitidos os dissensos previamente autorizados e delimitados pelos elos superiores da corrente, ou melhor, pelos tijolos superiores da pirâmide. E teríamos uma bela (e perfeitamente inútil) universidade de papagaios.
E: B) Democracia é incompatível com meritocracia, ela diluiria as prerrogativas oriundas do mérito comprovado (em concursos e exames públicos), alma da vida universitária. Esta idiotice é derivada da lamentável confusão entre poder (institucional) e autoridade (moral e intelectual). O primeiro vale, principalmente, para a gestão (exercício do poder); a segunda, sobretudo, para a progressão acadêmica e funcional (exercício do julgamento intelectual). O equacionamento entre as diversas componentes da vida universitária (que é parte da vida pública) não está dado por uma fórmula pré-fixada ou válida de uma vez para sempre. Ele atende a circunstâncias históricas, conjunturais e regionais ou nacionais. O peso institucional específico de cada segmento universitário (professores, alunos, funcionários, estudantes, pesquisadores pós-graduandos, com suas subdivisões internas), em cada área de gestão, e na gestão em geral, deve ser uma construção coletiva e democrática realizada por uma comunidade que é, supostamente, a mais qualificada do país para realizar tal tarefa.
Na USP urge numa estatuinte. Não se trata (só) de “diretas para reitor”, mas de toda a estrutura de poder e gestão. Gritos alarmados surgem contra a “politização da universidade” em tal caso, até contra o “perigo de populismo”, como se as decisões autoritárias de Rodas-Zago não fossem políticas. Afirmar que o corpo universitário, considerado na sua totalidade, carece das qualificações necessárias para tanto, significa repetir anacronicamente a filosofia em outras eras exposta pelo filósofo Pelé (“o povo brasileiro não sabe votar”) que, como disse o deputado Romário, “é um poeta quando cala a boca”. Deixar as coisas como estão significa condenar a universidade a políticas autoritárias, não autônomas, anacrônicas, reacionárias e, como comprovado por gestão recente, beirando a insanidade mental. O custo da USP, em seus oitenta anos de história, foi grande demais para deixá-la nas mãos dos representantes de sua desqualificação e destruição.
Sem democracia e autonomia não há universidade, e isto não é uma premissa metafísica, mas a comprovação emergente de mil anos de história. As “universidades britânicas” tão badaladas pelo tandem Zago-Folha, assim o comprovam. Elas foram protagonistas de uma revolução intelectual e científica na segunda metade do século XVIII, da qual emergiram a modernidade, as ciências humanas e as atuais ciências físico-naturais, e sua atual excelência universitária. Em Glasgow, essa revolução foi precedida de uma luta relativa à “eleição do reitor, o chefe titular de uma universidade tanto na Escócia quanto em diversos países europeus. O reitor Stirling [o Zago da época] excluiu os estudantes do corpo eleitor, o que se tornou um foco de descontentamento, embora em Glasgow os alunos fossem, na maioria, meninos no início da adolescência… Eles empregaram contra este [Stirling] um discurso que o pintava como um tirano e retratava sua própria causa como a defesa dos direitos”. Entre eles se encontrava um primeiranista muito lutador chamado Adam Smith: “A história estudantil em Glasgow deve ter ajudado a formar seu ponto de vista bem como sua instrução e suas leituras… Esse exercício do direito de eleger o reitor (foi) uma parte valiosa de sua experiência única de ser estudante em Glasgow. Adam Smith viu que sua universidade não era uma corporação fechada de mestres” (Ian Simpson Ross,Adam Smith: uma Biografia, Ed. Record, PP. 79-83). Por isso, acrescentamos, ele criou a moderna economia política (e seria muito bom que os docentes da FEA, que não estão em greve, tomassem nota, afinal sem Smith eles estariam desempregados) e não passou para a história como um interessante comentarista escocês da Bíblia, em uma obscura nota de rodapé. E David Hume, seu mestre, também conseguiu votar para reitor…
Em nossas bandas, na nossa América Latina hispano-luso-guarani-quechua-aymara (e tantas outras) falante, as universidades são (para o melhor e para o pior, mas são) graças ao movimento da Reforma, iniciado em Córdoba em 1918, contra o obscurantismo clerical-antidemocrático e em defesa da democracia (governo tripartite: “un solo grito, gobierno tripartito” foi sua palavra de ordem) e da autonomia universitárias, por uma universidade pública voltada para o povo e os trabalhadores, movimento que se estendeu para todo o continente (bem menos no Brasil) fazendo de nós o que hoje somos e, sobretudo, não sendo obrigados a estudar biologia em manuais em que Darwin seria apresentado como um perigoso louco que achava que seu avô era um macaco.
É isso o que está em jogo. É uma luta política e social geral, não um conflito corporativo. A dotação orçamentária das universidades públicas paulistas deve ser constitucionalmente incrementada, como reivindica e luta o Fórum das Seis (mas não o Reitor Zago e seus colegas do Conselho de Reitores das Universidades do Estado de S.Paulo — Cruesp –, que deveriam fazê-lo) em percentuais acordes com a expansão que o próprio poder público lhe exigiu e impôs. Por isso, a greve dos trabalhadores (docentes e técnico-administrativos) e dos estudantes da USP é uma luta de todos os trabalhadores em defesa do patrimônio público, de uma universidade pública, gratuita e de qualidade voltada para os interesses e necessidades das maiorias pobres e trabalhadoras, baseada no ensino, pesquisa e extensão indissociáveis e, sim, excelentes, porque voltados para a formação integral, científica e humana, dos cidadãos-estudantes e da comunidade em geral, e não para o adestramento canino de imbecis fluentes em língua inglesa.
A greve da USP (e da Unesp e Unicamp, excetuados os docentes da segunda), iniciada a 27 de maio, entrou no seu quarto mês, acrescida agora da decisão grevista dos estudantes de Medicina (FMUSP), que assim o decidiram em assembleia de 600 presentes, de todos os anos do curso. A greve, método de luta por excelência da classe trabalhadora, se sobrepôs à intensa propaganda contrária veiculada institucionalmente (pela Reitoria), ao corte de ponto dos funcionários técnico-administrativos, às ameaças de diretorias e chefias, à repressão da Polícia Militar e à hostilidade declarada da grande imprensa (que usou para o movimento em curso os qualificativos de “grevismo”, “baderna”, “grevistas folclóricos” e outros semelhantes), hostilidade que se estendeu ao próprio caráter público da instituição (a USP estaria “contra o muro” - o paredão? - segundo ponderado editorial da Folha de S. Paulo), a mesma imprensa que cobra das universidades públicas padrões de “primeiro mundo”, enquanto se satisfaz com padrões de “quarto mundo” para si.
No caso da USP, a greve agiu também como catalisador de uma crise bem menos financeira do que institucional. O zero (0%) “oferecido” como reajuste salarial na data-base (1º de maio) foi justificado como produto de um comprometimento excessivo (105%) dos repasses mensais do Estado com a folha de pagamentos, situação obviamente conjuntural e para nada nova (esse comprometimento já superou os 100% por diversas vezes no passado, e atingiu 167,4%, por exemplo, em dezembro de 1993; Unesp e Unicamp coexistiram por anos a fio com situação semelhante sem que fosse declarada situação de emergência). Desta vez, porém, essa situação foi anunciadora de uma falência iminente da USP, e também reveladora de uma “crise estrutural”, caracterizada por excessivo número de funcionários (e até de docentes), com salários elevados, e custeio de estruturas que não deveriam fazer parte da USP, como, por exemplo… os hospitais-escola; tudo no quadro de uma previsível queda da arrecadação do ICMS (devida ao “desaquecimento” econômico), um percentual do qual (9,57%) é destinado ao financiamento das universidades públicas paulistas.
Nesse quadro apocalíptico, e para combater essa “crise estrutural”, o Reitor Marco Antônio Zago (transformado em paladino do bom senso pela grande mídia) propôs uma política igualmente “estrutural” e apocalíptica: demissão “voluntária” (PDV) de aproximadamente (ou melhor, “chutadamente”) 3.000 funcionários, não realização de novas contratações (de funcionários e docentes), nem nos casos de aposentadoria ou morte, revisão do regime de trabalho dos funcionários remanescentes, revisão também do regime de trabalho (portanto, do salário) dos docentes (tendo sido formado um GT com esse objetivo), desligamento da USP do HU-Butantã e do “Centrinho” de Reabilitações Crâneo-faciais de Bauru (centro de referência internacional nessa área), venda do patrimônio imobiliário da USP; todas elas medidas aplaudidas de pé pela grande imprensa. Esta, aliás, começou a propor outras ações por conta própria, destacando-se a cobrança de mensalidades dos alunos (chamados carinhosamente de “elite estudantil bancada pelo ICMS”, na Folha de S. Paulo de 4/6)… Estariam isentos aqueles que conseguissem provar sua falta de meios para tanto, ou seja, os que demonstrassem sua “inocência” financeira, depois de declarados culpados do delito de passar pelo vestibular mais difícil do país (e também entre os mais difíceis do mundo, dado o enorme número de países em que inexiste tal exame, em primeiro lugar a vizinha e sempre vilipendiada Argentina).
Levando-se em conta que o pano de fundo da coisa toda é a queda “previsível” do ICMS e da quota-parte deste devida às universidades, queda não só discutível como devida, caso aconteça, sobretudo, à sonegação impositiva crescente e deslavada, e ao desconto indevido e ilegal de parcelas dessa base de cálculo por parte do governo estadual, que sonegou das universidades públicas R$ 2 bilhões entre 2008 e 2013, sendo R$ 540 milhões apenas no último ano (tal como denunciado minuciosamente pela Adusp, sem que a reitoria, a atual ou as precedentes, se pronunciasse a respeito, como seria seu dever), enfim, levando-se isso tudo em conta, a “corajosa” política do Magnífico Reitor se reduz, na melhor das hipóteses, a uma adaptação para nada corajosa, pelo contrário, muito covarde e subserviente, a uma situação de fato. Isto bastaria para desqualificá-la politicamente. Acontece que no pacote reitoral, e nos seus considerandos prévios, há otras cositas más, que revelam a verdadeira crise, política, institucional, moral e até intelectual, da USP. Vejamos.
Para justificar a existência uma “crise estrutural” a partir do mágico 105% mensal supracitado, a Reitoria e seus porta-vozes midiáticos se lançaram a uma série de manipulações estatísticas torpes e amadoras, comparando literalmente alhos com bugalhos, a respeito do inchaço do quadro funcional (e docente) da USP, quando comparado com os de universidades bem situadas nos rankings internacionais, todas do “primeiro mundo”, especialmente dos EUA e da Grã-Bretanha. Obviando o óbvio: comparar uma universidade pública com universidades que são (as principais) privadas, comparar universidades com orçamentos abissalmente desiguais (em favor das universidades euro-norte-americanas), comparar uma universidade gratuita (a USP) com universidades (por exemplo, as inglesas) que cobram anuidades proibitivas para a maioria da população do país, comparar efetivos de alunos abissalmente diferentes (em favor da USP), comparar a USP com universidades de países cujas rendas per capita sextuplicam (ou mais) a brasileira, para não falar na desigual distribuição (“concentração”) da renda total existente entre uns e outros, e isto sem que os EUA ou o Reino Unido sejam os paraísos da igualdade social (muito pelo contrário, em especial nas últimas décadas neoliberais), mas que, mesmo se esforçando muito, não conseguem igualar nesse quesito à sétima (ex sexta) economia do mundo, a nossa, que ocupa o 79º lugar no IDH (entre 187 países), mesmo depois de tirar 23 milhões de pessoas da pobreza absoluta nos últimos anos; e com a segunda pior concentração de renda do mundo dentre os países medidos pela OCDE (0,30 de índice Gini em 2010, enquanto o índice do México, o país mais socialmente desigual dentre os medidos, era de 0,34).
A Folha de S.Paulo, que se transformou numa espécie de torcida-vanguarda organizada do Reitor, apontou uma proporção de apenas cinco alunos por funcionário na USP (ela é de 5,5, para sermos mais precisos) supostamente escandalosa quando comparada à razão de 15:1 “que se pratica nas conceituadas universidades britânicas”, uma relação tirada vá deus (ou Deus) saber de onde. Essa proporção, na verdade, varia muito entre as universidades melhor “ranqueadas” do mundo, atendendo às suas especificidades e diferenças, às vezes enormes, que tornam bastante inútil tirar uma média mundial. Quanto ao fato dessa proporção provocar ou não uma “crise estrutural”, não precisava ir além-mar para buscar uma comparação chutada: na Unicamp, em 2012, o número de alunos era de 32,5 mil, e o dos funcionários técnico-administrativos de quase oito mil, do que resulta uma proporção de 4:1 (“pior” do que a da USP, se usados os simplórios critérios folhísticos) sem que, devido a isso, ninguém declarasse a Unicamp em situação de “crise financeira estrutural” ou de falência em potencial (ao contrário, nesta data-base seu Reitor decidiu conceder o índice de reajuste Fipe – 5,2% – sob a forma de abono não-salarial, aos seus docentes e funcionários, devido a dispor [tanto quanto a USP] de meios financeiros para tanto).
O Prof. Sean Purdy, da USP (canadense e anglófono, o que talvez o torne mais palatável, como veremos, para o staff reitoral) viu-se obrigado a precisar, na Carta Maior, o que segue: “Em todas as universidades britânicas, em 2013, houve 2.340.275 estudantes de graduação e pós-graduação, 196.845 funcionários técnico-administrativos e 185.535 professores. Isto é, 11,89 alunos por funcionário técnico-administrativo e 12,61 alunos por professor. De onde vem o número de Zago e da Folha de 15 alunos para 1 funcionário nas universidades britânicas, ninguém sabe, pois não citaram sua fonte. O mais confiável órgão de estáticas do Reino Unido diz que esse número é errado. Se olharmos nas quatro melhores universidades britânicas, segundo os rankings do Times Higher Education World Rankings para 2013, os números de Zago e da Folhapioram ainda mais. Na ordem do ranking são: University of Oxford, University of Cambridge, Imperial College e University College de Londres. Vamos supor que essas quatro universidades sejam as principais e conceituadas universidades no país citado por Zago e pela Folha. Em 2012/2013, na Oxford, houve 4,92 alunos por funcionário e 4,3 alunos por professor. Na Cambridge, 4,4 alunos por funcionário e 3,9 alunos por professor. No Imperial College, 3,4 alunos por funcionário e 3,8 alunos por professor. Finalmente, no University College de Londres havia 3,8 alunos por funcionário e 5,5 alunos por professor. Portanto, todas essas universidades tinham mais funcionários por aluno do que a USP, e bem menos alunos por professor. Não por acaso as melhores universidades do mundo têm mais funcionários e professores por aluno. No caso da USP, com sua importância central no estado e no Brasil, temos que também levar em conta os hospitais universitários, museus e outros institutos que contribuem com a missão geral da universidade pública”.
A proporção alunos/docente na USP é atualmente de 15,5:1, variando enormemente (assim como a relação alunos/funcionário) de faculdade para faculdade, de departamento para departamento, de curso para curso, até de disciplina para disciplina, como não poderia ser de outro modo numa universidade do porte, abrangência e variedade da USP. Se a proporção alunos/professor de Cambridge tivesse que ser seguida na USP, o número de docentes desta última deveria ser de 23.300 (é apenas um quarto disso); e, em qualquer um dos casos citados, o número de funcionários técnico-administrativos da USP também deveria crescer. Comparar orçamentos é simplesmente inútil: o de Harvard (universidade também citada com frequência pela “elite” oligárquica uspiana) é de US$ 30 bilhões (R$ 75 bilhões) para 21 mil alunos; o da USP de R$ 4,3 bilhões (US$ 1,7 bilhão) para 93 mil alunos. O custo total anual de um estudante de graduação em Harvard no ano letivo de 2008-2009 foi calculado em 800 mil euros (R$ 2,8 milhões), sendo 400 mil euros (R$ 1,4 milhão) somente de matrícula, 200 mil euros (R$ 700 mil) de estadia e alimentação, e 200 mil euros (R$ idem anterior) de “outras taxas”. Quanto às reservas financeiras e patrimoniais de uma e de outra, bem, melhor nem começar…
Como comentou Luís Nassif, “a relação aluno/professor em Harvard é de 7 por 1. A Universidade Católica do Chile teria ultrapassado a USP em certos rankings internacionais exatamente por ela ter uma relação alunos/professor menor. Com o congelamento da contratação de novos professores [na USP], a situação será ainda pior. O que se tira disto é que os professores e funcionários da universidade precisam responder por mais atividades com um salário que, comparado ao recebido em 1989 por um docente, teve o seu poder de compra reduzido em 9,5%. Estes números demonstram que a USP tornou-se uma universidade de massa em plena expansão sem ter recebido do Estado as condições para tanto. Ela é apenas um capítulo a mais da demissão do Estado em relação à educação pública”.
Os docentes do Instituto de Biociências da USP ensinaram aos bisonhos matemáticos na inepta Reitoria uspiana que “o número total de estudantes matriculados na Universidade de São Paulo (USP) cresceu 95,8% em 25 anos, de 44.811 em 1989 (quando por lei a universidade passou a ter autonomia financeira) para 87.751 em agosto de 2014… No mesmo período, o número de professores na universidade foi de 5.626 para 6.008, um aumento de 6,8%. Já a quantidade de funcionários, a única que chegou a cair 13,5% entre 1989 e 2009, voltou a subir nos últimos cinco anos e igualou o patamar de 25 anos atrás”. Contabilizados todos os alunos, o número destes na USP é atualmente de quase 93 mil (cinco mil a mais do que indicado pelos docentes do IB-USP), o que torna os cálculos dos docentes de biociências bastante modestos. Quanto aos funcionários, eles são em número de 17.451, menos que os 17.735 de 1989, quando a USP era, em número de alunos (que mais do que dobrou no período considerado), de departamentos, laboratórios, unidades, faculdades, campi, cursos, disciplinas, responsabilidades em geral, bem menor.
Ai está a explicação (refutação) da cifra citada pela Folha no editorial (19/8) em que o matutino paulistano pôs “a USP contra o muro”, devido a que “o quadro de funcionários não docentes cresceu 13% de 2010 a 2013, e o número de alunos aumentou 5%. Há algo de errado nessas contas”. Certamente, há algo de errado nas contas da Folha e, sobretudo, na própria Folha. O levantamento dos docentes do IB-USP (e outros semelhantes) demonstrou que o número de funcionários técnico-administrativos (e não de “não docentes”, como a Folha os chama, o que equivaleria a chamar a Folha de “não revista semanal”) cresceu, na USP, bem menos (em termos absolutos e proporcionais) do que o número de alunos, para não falar da expansão geográfico-institucional da USP (Lorena, EACH da Zona Leste), ou seja, novas faculdades e departamentos; do crescimento das atividades de pesquisa (que melhoraram espantosamente os índices internacionais da USP) e, last but not least, da espantosa expansão da extensão universitária, incluída a “Universidade para a Terceira Idade” e outros (muitos) serviços prestados à comunidade. Na USP houve um crescimento de 88% nos cursos oferecidos, pulando estes de 132 em 1995 para 249 em 2012, graças, principalmente, à construção de novos campi. O número de professores não cresceu no mesmo ritmo: somente 4% no mesmo período (uma defasagem de… 92%), aumentando a relação aluno/professor de 8:1 para 15,5:1.
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Saiamos da “guerra dos números” e vejamos a justificativa política. Segundo o Magnífico Zago, a crise financeira foi devida ao inchaço da folha funcional, isto devido à implementação da nova carreira dos funcionários, e também aos gastos faraônicos (incluídas a abertura de escritórios da USP em Londres, Boston e até Cingapura) de seu megalomaníaco antecessor, João Pequenino Rodas, vários de cujos itens ainda não completados e pagos foram suspensos pela atual administração. Tal situação teria sido desconhecida dele próprio (Zago) e de seu staff atual até sua recente posse, em que pese sua participação (de todos, ou quase) no mais alto nível do staff de Rodas, que teria conseguido ocultar seus gastos e a situação financeira da USP até de seus colaboradores mais íntimos: “O Conselho Universitário não tinha consciência dessa situação financeira” (entrevista de Zago à Veja); “A questão do orçamento foi uma surpresa não agradável para toda a Universidade”, declarou Zago ao Jornal do Campus.
Surpresa? A crise financeira da USP, a invasão inconsulta e deletéria por parte de Rodas das suas reservas financeiras, já tinha sido denunciada detalhadamente (e amplamente divulgada) no Informativo Adusp de junho de 2013 (há bem mais de um ano, portanto). Que um destacado Pró-Reitor da gestão Rodas declare agora tê-la ignorado naquele momento, e ainda depois, é bastante mais do que inacreditável e, se tomada ao pé da letra, teria desqualificado o ignorante (ex dirigente principal do CNPq, nada menos) para exercer qualquer função de responsabilidade administrativa.
Segundo declarou a Profa. Ana Lúcia Pastore, superintendente de segurança da USP da gestão Zago, em reunião da Congregação da FFLCH, este teria qualificado, em reuniões recentes da Reitoria, a gestão de Rodas como “inescrupulosa” (o que equivale a criminosa). Pois bem, até agora nenhuma comissão de sindicância foi montada ou mesmo proposta a respeito (apenas a promessa de uma auditoria), isto numa universidade onde esse tipo de comissões, suspensões e expulsões de alunos, demissões de funcionários, tem sido moeda corrente, em que pese estes terem sido (supostamente) responsáveis por danos ao patrimônio público de magnitude infinitesimal, quando comparados com prejuízos provocados pelos desmandos de Rodas, premiado este com uma nova função de conselheiro na Fapesp.
Não só isso. Pouco antes do início da greve, em 21 de maio, o próprio Rodas publicou um longo artigo na página 3 da Folha de S. Paulo (“O orçamento da USP”) em que atribuiu a expansão de gastos de sua gestão à “expansão do ensino superior” (da USP), quando “decidiu-se – com a aprovação dos órgãos colegiados em que tinham assento os atuais dirigentes da USP – que parcela dessa reserva fosse aplicada em investimentos diversos, concentrados em instalações e equipamentos, moradia, segurança, transporte… Com a aprovação unânime do Conselho Universitário, os recursos viabilizaram a implantação de um plano de carreira para funcionários, superando antiga distorção, pois é notório que uma universidade dessa importância não pode prescindir de funcionários qualificados e motivados”. Isto depois de desculpar pelo fato “a remuneração atual dos professores das universidades estaduais paulistas (que) é inferior à das suas congêneres federais” (correto). Este artigo não foi objeto de resposta por parte de nenhum membro da atual administração, nem sequer do Reitor Zago, apesar de serem explicitamente mencionados (para falar a verdade, acusados) como corresponsáveis (e, segundo a versão atual, cúmplices) dos “desmandos” que deram base à crise e a atual política de desmonte da USP.
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Médicos, enfermeiras e funcionários do Hospital Universitário se encontram em greve, em defesa de uma unidade que presta quase 300 mil atendimentos de emergência anuais (quase mil por dia), principalmente para a população carente, e realiza quase um milhão de exames laboratoriais por ano, só por nomear algumas estatísticas (estas bem reais) destacadas. Os diretores do setor médico e os chefes técnicos do hospital já se manifestaram contrários à passagem do HU para o governo do Estado, que significaria em breve a privatização de sua gestão (e, obviamente, de seus lucros potenciais) sob a forma de “organização social” (OS, o chamado “público não estatal”) ou fundação, seguindo o modelo federal do Ebserh (ou algo ainda pior). Os motivos expostos são a destruição do ensino prático e da pesquisa in situ que tal transferência provocaria. A justificativa da medida de desligamento do HU apresentada pela Reitoria, em reunião com os diretores de unidade da universidade, é que uma enfermeira do HU começa sua carreira com vencimentos de R$ 13 mil (algo inacreditável, pois esse é o salário bruto de um professor titular da USP, cargo conquistado depois de 25-30 anos de carreira) enquanto uma enfermeira do setor público de saúde percebe inicialmente só R$ 3.500.
Além disso, a USP se comprometeria a manter o pagamento dos atuais funcionários (que não se “demitirem voluntariamente”) até sua aposentadoria (e morte) – sem importar-se muito em criar um monstrengo em que pessoas que executariam o mesmo trabalho receberiam R$ 13 mil (segundo a Reitoria) ou R$ 3.500, dependendo da fonte pagadora – tudo para gerar uma economia de… R$ 40 milhões anuais (custeio atual do HU), menos de 1% do orçamento (oficial) da USP, sendo que o HU não consome, na sua estrutura atual e incluídos os salários, mais de 6% desse orçamento. Rifa-se, portanto, hospital-escola (em que se realiza atualmente 40% do estágio hospitalar dos estudantes), pesquisa, atendimento ao público carente, patrimônio público, a troco de um troco. Viva a greve do HU!
Já nos ocupamos das estatísticas e da política da atual (transitória) administração uspiana, vamos agora à sua ideologia (pois de algum modo é preciso chamá-la). Em famigerada entrevista à Veja (24/6) o Magnífico Zago menosprezou a recente perda de posições da USP em alguns rankings internacionais, propondo no mesmo veículo, porém, uma política contrária à “estabilidade precoce” de docentes e funcionários, uma política que incluísse “a prerrogativa de contratar ou demitir de acordo com o desempenho”. Para atingir esse objetivo, claro, seria preciso “abandonar a dinâmica de sindicalismo na vida universitária”. Depois de encabeçar, durante quatro anos!, uma administração que se autoglorificou permanentemente da excelência da pesquisa uspiana e de sua progressão nos índices internacionais, detectou (outra “surpresa”, esta inadmissível para quem foi Pró-Reitor de Pesquisa) que os outrora (apenas ontem) louvados e performantes professores-pesquisadores da USP se encontram “em uma zona de conforto que os leva a projetos de sucesso garantido de antemão”, isto porque, depois de um tempo, “eles se casam, têm filhos, ficam mais prudentes, e o sistema aceita”. Poderia se deduzir que Zago possui uma concepção filosófica que considera que a ciência é incompatível, não só com sindicatos, mas inclusive com o preceito bíblico – “crescei e multiplicai-vos”. Mas duvidamos que tenha sequer pensado no assunto.
Depois de citar os recorrentes “exemplos” de Harvard e do MIT (ignorando a força dos sindicatos universitários nos EUA, e as greves recentes nessas instituições), nosso Zago se desdobrou, para a Veja, em antropólogo, e detectou uma desvantagem ou falha (também “estrutural”) dos estudantes brasileiros (uspianos incluídos): eles não falam inglês desde a infância, mas português. Como não é possível mudar o país outrora colonizador da Terra da Santa Cruz, nem o Tratado de Tordesilhas (não sabemos se foram financiadas pesquisas a respeito), a solução é óbvia: “A prioridade número 1 da USP hoje é garantir o conhecimento da língua inglesa para seus alunos” (grifo nosso), mais importante, parece, que garantir seu ingresso mais democrático, ou sua permanência e bom desempenho nos estudos. Digamos que propaganda ou incentivos nesse sentido (anglófilo) não é o que falta, basta ligar o rádio ou a TV a qualquer hora do dia. Para quem cacareja “globalização” cada vez que abre a boca, porém, trata-se de uma conclusão bem primária e provinciana.
Pois exatamente nos “centros globais” invejados por Zago and Co. existe hoje uma batalha cerrada (que Zago ignore isto seria detalhe menor, significaria apenas que ele não lê os jornais) contra o monoglotismo, especialmente anglófono, comprovadamente considerado como um fator empobrecedor da comunicação cultural e científica. Zago pretende, ao que parece, tornar inúteis e eliminar os tradutores dos congressos internacionais e das conferências de professores visitantes, eles seriam outra profissão (e área de pesquisa) inútil, instalada em outra “zona de conforto”. Há, porém, um problema. Pois uma língua não é só um meio de comunicação, mas a base de um sistema de pensamento. Para um dos primeiros grandes filósofos da língua, Wilhelm von Humboldt: “Sem unidade de forma não seria concebível nenhuma língua; falando, os homens recolhem necessariamente seu falar em uma unidade”. A forma da língua é o elemento diferenciador das comunidades nacionais, culturais e sociais. A forma perpassa toda a língua, e “a língua não é o instrumento para designar objetos já pensados, mas o órgão formativo do pensamento”. Sobre uma língua ergue-se uma personalidade nacional ou cultural, diversa da religiosa, que uma nação pode eventualmente compartilhar com outra. Certamente, pedir que Zago pare para pensar isto, seria pedir demais.
Pois, afinal, quem foi esse pobre Humboldt, um velhote ultrapassado do século XIX, que se limitou, institucionalmente, a criar a universidade humboldtiana (1810), e nem devia falar inglês; nosso Zago “global”, um homem do século XXI, sucateia e desmonta universidades públicas e hospitais-escola, algo muito mais “moderno”. Metodologicamente, porém, ele se situa atrás do filósofo (embora arquiteto de formação) cearense, Falcão, que deu conta praticamente do problema humboldtiano na sua maravilhosa interpretação (em inglês) de Eu não sou cachorro não, de Waldick Soriano, demonstrando-o, como um bom matemático, pela via do absurdo. Faltou à nossa classe artística paulista, menos “inovadora” (no bom sentido zaguiano) do que a nordestina, destacar um bom intérprete para uma versão de Trem das Onze na língua de Shakespeare, mas, quem sabe, numa ECA “renovada” e anglicizada…
Como toda grande ideologia, a do Zago tem suas fontes filosóficas; não, claro, as dos filósofos tradicionais costumeiramente usados pelos pesquisadores instalados na “zona de conforto”. Simon Schwartzman, que é despejado de modo inconsulto nos e-mails dos docentes da USP. E, sobretudo, o grande Hélio Schwartsman (parentes? em certo sentido, político, cabe pensar que sim) que veicula suas descobertas filosóficas na Folha de S. Paulo. A 4 de junho, sob o (originalíssimo) título de “Não há almoço grátis”, este sábio nos informa que “a constatação básica é a de que a palavra de ordem (?) de ‘universidade pública, gratuita e de qualidade’ é uma ilusão cognitiva (?). Uma universidade pode perfeitamente ser pública e de qualidade… mas alguém precisa pagar por isso”. Que descoberta notável, ninguém parou nunca para pensar nisso. Não vamos dizer quem é que deve pagar, segundo o filósofo folhiano, para não fundir os miolos do leitor.
Num outro artigo (20/6), curiosamente intitulado “Ideias para a USP” (o curioso é a menção às ideias, não à USP), depois de discorrer sobre “as universidades públicas paulistas (que) conservam uma estrutura de comando muito arcaica, excessivamente voltada para dentro de si mesma”, sua descoberta revolucionária vem sob a prudente forma de pergunta: “Por que o reitor sempre vem dos quadros acadêmicos da própria universidade? Se sua principal tarefa é administrar a instituição, não faria mais sentido buscar um bom executivo no mercado, como faz grande parte das universidades americanas?”. Realmente, nossos filósofos e estrategistas universitários andam à court d’examples (sempre os EUA). Ignoram, claro, que as universidades que “buscam um bom executivo no mercado”, mediante licitação pública, nos EUA, são as privadas, não as públicas.
Os candidatos que se apresentam, por outro lado (até aí chegou a luta nos EUA, por enquanto) são sabatinados por representantes dos diversos segmentos universitários (em entrevistas onde aqueles costumam suar gelado), não apenas (nem principalmente) sobre suas competências administrativas, mas sobre todos os temas relevantes para uma instituição que cumpre uma função social, mesmo quando sendo instituição privada (ou, em geral, público/privada). Quem subscreve presenciou, quando professor visitante na Universidade de Stanford, várias sabatinas de “reitoráveis”, em que os candidatos eram interrogados, inclusive, sobre sua opinião acerca da anexação da mexicana Califórnia (onde Stanford se situa) pelos EUA, em meados do século XIX. Não “gratuitamente”, mas para conhecer a base sobre a qual se assentaria uma política relativa aos estudantes (ou candidatos a estudantes) chicanos ou mexicanos em Stanford, e sobre as minorias oprimidas e segregadas em geral. O paraíso neoliberal-competitivo dos Zago-Schwartsman só existe na sua pobre imaginação ignorante e desprovida de ideias.
A lógica schwartsmaniana, se válida para uma parte da cosa (res) pública, poderia valer para todas, ou seja, para a república toda; ergo, porque não usar o mesmo procedimento para escolher o “reitor” do Brasil, que também conserva “uma estrutura de comando muito arcaica, excessivamente voltada para dentro de si mesmo”, com dispendiosas eleições onde os candidatos, todos anacrônica e antiglobalmente membros da “comunidade interna”, discorrem e debatem (em português, ainda por cima!) sobre temas internos, provincianos e irrelevantes, como saúde, educação, transporte, salário, emprego, pobreza, gastos sociais e outros temas secundários, em vez de fazê-lo sobre infraestrutura para exportações, aeroportos, taxas de juro internacionais, enfim, o que realmente conta, e em inglês, para serem entendidos pelos que realmente contam, e mediante licitação internacional com apresentação prévia de curriculum (em inglês, obviamente). A eleição seria realizada apenas com a participação dos que entendam, linguística e tecnicamente, as opiniões democraticamente expostas pelos candidatos.
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O que há de realmente arcaico, na USP, é sua estrutura de poder e de gestão. Ela se rege por um estatuto disciplinar ditado e baixado em 1971, em plena ditadura militar, redigido, além disso, pelo redator principal do AI-5. A composição dos órgãos colegiados não respeita nem sequer a LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O reitor é eleito pelo governador, sobre a base de uma lista tríplice para cuja nomeação vota um colegiado equivalente a pouco mais de 0,1% dos membros de sua comunidade, de aproximadamente 115-116 mil pessoas, todas adultas e habilitadas para o exercício de seus direitos políticos. O que urge, na USP, é democracia e autonomia.
Contra isso se erguem alguns argumentos. A) A USP (a universidade, em geral) não é um demos, não estabelece nem cobra impostos, não é material nem financeiramente autossuficiente, suas autoridades devem ser designadas (ou validadas), por isso, pelos representantes do poder público. Se essa lógica fosse válida e legítima, ela deveria valer para todas as áreas da atuação pública, nas quais não deveria existir nem o menor resquício de autonomia e democracia. E também para a estrutura de gestão (e até de ensino e pesquisa) interna, isso é, para regular a nomeação e relações entre reitor e diretores de unidade, chefes de departamento e responsáveis por comissões, professores das disciplinas e chefes de laboratório, e, finalmente alunos, todos financiados pelo poder público e ligados por uma estrutura vertical piramidal, na qual só seriam admitidos os dissensos previamente autorizados e delimitados pelos elos superiores da corrente, ou melhor, pelos tijolos superiores da pirâmide. E teríamos uma bela (e perfeitamente inútil) universidade de papagaios.
E: B) Democracia é incompatível com meritocracia, ela diluiria as prerrogativas oriundas do mérito comprovado (em concursos e exames públicos), alma da vida universitária. Esta idiotice é derivada da lamentável confusão entre poder (institucional) e autoridade (moral e intelectual). O primeiro vale, principalmente, para a gestão (exercício do poder); a segunda, sobretudo, para a progressão acadêmica e funcional (exercício do julgamento intelectual). O equacionamento entre as diversas componentes da vida universitária (que é parte da vida pública) não está dado por uma fórmula pré-fixada ou válida de uma vez para sempre. Ele atende a circunstâncias históricas, conjunturais e regionais ou nacionais. O peso institucional específico de cada segmento universitário (professores, alunos, funcionários, estudantes, pesquisadores pós-graduandos, com suas subdivisões internas), em cada área de gestão, e na gestão em geral, deve ser uma construção coletiva e democrática realizada por uma comunidade que é, supostamente, a mais qualificada do país para realizar tal tarefa.
Na USP urge numa estatuinte. Não se trata (só) de “diretas para reitor”, mas de toda a estrutura de poder e gestão. Gritos alarmados surgem contra a “politização da universidade” em tal caso, até contra o “perigo de populismo”, como se as decisões autoritárias de Rodas-Zago não fossem políticas. Afirmar que o corpo universitário, considerado na sua totalidade, carece das qualificações necessárias para tanto, significa repetir anacronicamente a filosofia em outras eras exposta pelo filósofo Pelé (“o povo brasileiro não sabe votar”) que, como disse o deputado Romário, “é um poeta quando cala a boca”. Deixar as coisas como estão significa condenar a universidade a políticas autoritárias, não autônomas, anacrônicas, reacionárias e, como comprovado por gestão recente, beirando a insanidade mental. O custo da USP, em seus oitenta anos de história, foi grande demais para deixá-la nas mãos dos representantes de sua desqualificação e destruição.
Sem democracia e autonomia não há universidade, e isto não é uma premissa metafísica, mas a comprovação emergente de mil anos de história. As “universidades britânicas” tão badaladas pelo tandem Zago-Folha, assim o comprovam. Elas foram protagonistas de uma revolução intelectual e científica na segunda metade do século XVIII, da qual emergiram a modernidade, as ciências humanas e as atuais ciências físico-naturais, e sua atual excelência universitária. Em Glasgow, essa revolução foi precedida de uma luta relativa à “eleição do reitor, o chefe titular de uma universidade tanto na Escócia quanto em diversos países europeus. O reitor Stirling [o Zago da época] excluiu os estudantes do corpo eleitor, o que se tornou um foco de descontentamento, embora em Glasgow os alunos fossem, na maioria, meninos no início da adolescência… Eles empregaram contra este [Stirling] um discurso que o pintava como um tirano e retratava sua própria causa como a defesa dos direitos”. Entre eles se encontrava um primeiranista muito lutador chamado Adam Smith: “A história estudantil em Glasgow deve ter ajudado a formar seu ponto de vista bem como sua instrução e suas leituras… Esse exercício do direito de eleger o reitor (foi) uma parte valiosa de sua experiência única de ser estudante em Glasgow. Adam Smith viu que sua universidade não era uma corporação fechada de mestres” (Ian Simpson Ross,Adam Smith: uma Biografia, Ed. Record, PP. 79-83). Por isso, acrescentamos, ele criou a moderna economia política (e seria muito bom que os docentes da FEA, que não estão em greve, tomassem nota, afinal sem Smith eles estariam desempregados) e não passou para a história como um interessante comentarista escocês da Bíblia, em uma obscura nota de rodapé. E David Hume, seu mestre, também conseguiu votar para reitor…
Em nossas bandas, na nossa América Latina hispano-luso-guarani-quechua-aymara (e tantas outras) falante, as universidades são (para o melhor e para o pior, mas são) graças ao movimento da Reforma, iniciado em Córdoba em 1918, contra o obscurantismo clerical-antidemocrático e em defesa da democracia (governo tripartite: “un solo grito, gobierno tripartito” foi sua palavra de ordem) e da autonomia universitárias, por uma universidade pública voltada para o povo e os trabalhadores, movimento que se estendeu para todo o continente (bem menos no Brasil) fazendo de nós o que hoje somos e, sobretudo, não sendo obrigados a estudar biologia em manuais em que Darwin seria apresentado como um perigoso louco que achava que seu avô era um macaco.
É isso o que está em jogo. É uma luta política e social geral, não um conflito corporativo. A dotação orçamentária das universidades públicas paulistas deve ser constitucionalmente incrementada, como reivindica e luta o Fórum das Seis (mas não o Reitor Zago e seus colegas do Conselho de Reitores das Universidades do Estado de S.Paulo — Cruesp –, que deveriam fazê-lo) em percentuais acordes com a expansão que o próprio poder público lhe exigiu e impôs. Por isso, a greve dos trabalhadores (docentes e técnico-administrativos) e dos estudantes da USP é uma luta de todos os trabalhadores em defesa do patrimônio público, de uma universidade pública, gratuita e de qualidade voltada para os interesses e necessidades das maiorias pobres e trabalhadoras, baseada no ensino, pesquisa e extensão indissociáveis e, sim, excelentes, porque voltados para a formação integral, científica e humana, dos cidadãos-estudantes e da comunidade em geral, e não para o adestramento canino de imbecis fluentes em língua inglesa.
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