sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O celular engole a tevê

Por André Barrocal, na revista CartaCapital:

Dizem que agosto é o mês do desgosto. Para a Rede Globo, foi. No dia 22, a principal emissora de tevê aberta do País amargou um vexame. O Jornal Nacional e suas novelas tiveram a pior audiência da história em São Paulo. Duas semanas antes, a RBS, sua maior afiliada e retransmissora para gaúchos e catarinenses, anunciara demissões em massa, sinal de que os negócios não vão bem. O presidente do grupo, Eduardo Sirotsky Melzer, alegou “transformações radicais e a velocidade impressionante pelas quais a indústria da comunicação tem passado”, em uma carta dirigida aos funcionários.

A degola está ligada ao fiasco de público de algumas atrações da programação global e às dificuldades de harmonizar as estratégias para a televisão e a internet. O problema não é exclusivo da emissora. Segundo uma pesquisa do Ibope, o tempo despendido pelos usuários da web nos sites supera o gasto pelos telespectadores diante da telinha. E a competição vai se acirrar. O governo prepara um plano bilionário com potencial para provocar uma guerra sem precedentes entre tevês e companhias telefônicas, voltado para a difusão do uso de uma internet veloz por meio de celulares.

Depois de dois anos e meio de estudos e negociações, a Agência Nacional de Telecomunicações vai leiloar, em 30 de setembro, uma faixa de frequência eletromagnética de 700 MHz. É uma das mais “nobres”, como se diz, sem maiores esclarecimentos, por permitir acesso a locais distantes como a Amazônia e driblar barreiras físicas em metrôs e outros ambientes fechados. Hoje é utilizada pelas emissoras de tevê. Com o leilão, passará às operadoras de telefonia por um período de 15 anos.

Será o maior leilão no setor de telecomunicações desde a privatização da Telebras, em 1998. Pelo edital recém-publicado, os compradores gastarão, no mínimo, 11,3 bilhões de reais, metade do obtido com a venda da estatal na gestão Fernando Henrique. Entrarão nos cofres públicos ao menos 7,7 bilhões de reais. A operação será financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Portanto, em um primeiro momento será verba pública a ingressar no Tesouro Nacional. Os 3,6 bilhões restantes irão para as emissoras como uma espécie de indenização por desapropriação.

A troca de controle tem uma exigência. As teles deverão utilizar a faixa para fornecer aos celulares uma conexão de quarta geração com a web. A comercialização da conexão do tipo 4G começou em 2013 no Brasil, mas ainda engatinha. Estima-se um total de 3,5 milhões de usuários, em cem municípios. A vantagem diante da geração anterior é a rapidez no fluxo de dados. O 4G roda de 4 a 100 vezes mais depressa e permite assistir a vídeos sem travar. Pode-se acompanhar a Globo ao vivo, ou acompanhar em tempo real uma transmissão de produtores independentes dirigida a usuários de celular. Concorrência pura para os canais tradicionais. “A produção de conteúdo vai aumentar. O papel da tevê aberta como definidora da agenda de assuntos para o País, em declínio, será cada vez menos importante. A riqueza está nas redes”, diz Sérgio Amadeu, sociólogo ex-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.

A evolução tecnológica na última década diminuiu a fronteira entre televisão e telefonia, mas até hoje os dois setores não haviam entrado em choque. Na guerra prestes a começar, as teles detêm maior poder econômico. Em 2013, elas faturaram 220 bilhões de reais, dez vezes acima dos grupos de radiodifusão. Estes sempre contaram com o poder político, graças à capacidade de influenciar a opinião pública. No final do processo, tal como foi anunciado, o poder econômico e o avanço da tecnologia provocarão um rombo no bunker televisivo.

Derrotadas, as emissoras estão apreensivas e ameaçaram melar o leilão. No dia da publicação do edital de licitação, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão reagiu com firmeza. A Abert considerou “insuficiente” a indenização de 3,6 bilhões de reais e quer 5 bilhões, segundo se comenta nos bastidores. A instituição promete tomar “as medidas cabíveis”, conforme o presidente da entidade, Daniel Slaviero, disse ao ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, em uma feira setorial na segunda-feira 25, em São Paulo.



A transferência da faixa de frequência para as telefônicas deixará ao relento 400 radiodifusores com operações em 1.096 municípios. Em número de canais, a lista chega a mil. Fazem transmissões em UHF e podem ser sintonizados entre os canais 52 e 69 nos televisores com antena comum. Embora os 700 MHz não sejam a principal frequência na transmissão das grandes emissoras, estas também sentirão o baque. A Globo terá problemas em Jundiaí, no interior paulista, e em Lagoa Santa, no interior mineiro, por exemplo. A Record sofrerá em duas capitais (Recife e Belém). A Bandeirantes, no interior de São Paulo. O SBT, na cidade histórica de Petrópolis, no Rio. As maiores vítimas, contudo, serão os canais públicos, como TV Brasil, TV Senado e TV da Câmara dos Deputados.

A preocupação das grandes emissoras com o leilão ultrapassa o impacto sobre os canais atingidos. Elas temem pelo futuro do negócio. As empresas de tevê aberta no Brasil vivem à base de audiências elevadas, argumento para cobrarem caro dos anunciantes. A receita gorda permite investir grandes somas na produção de novelas, Faustões e jornalismo. A competição da internet quebra a engrenagem, ao reduzir a audiência. Cedo ou tarde, haverá piora ulterior de qualidade, já muito baixa, compressão de salários mais baixos e queda dos lucros. E redução do poder político.

Na luta para sobreviver, mas sem expor claramente o motivo do medo, as empresas de radiodifusão sacaram um argumento passível de ser definido como bonitinho para pressionar contra o leilão. Estaria em risco a liberdade de expressão, diziam nos bastidores e, discretamente, em público. Certo é que a tevê aberta é gratuita, enquanto celular e internet móvel custam caro no Brasil.

Se não foi capaz de preservar a faixa de frequência de 700 MHz sob o comando do setor, o lobby serviu ao menos para arrancar uma bela concessão oficial em outro assunto igualmente preocupante, o da tevê digital, instituída no País em 2006. Trata-se de um sinal de melhor qualidade, impossível de captar com antenas comuns e televisores antigos. É preciso ter tevê a cabo, um aparelho moderno ou um conversor de sinal. Na época, fixou-se um prazo de dez anos para a digitalização total no País. Na reta final, o cenário é desolador, devido a essa situação específica e a inumeráveis outros motivos. Dos 11 mil canais existentes, só 4 mil estão preparados para esse tipo de transmissão, segundo dados do Ministério das Comunicações. Em São Paulo, somente um em cada três domicílios está apto a receber o sinal, segundo um levantamento do Ibope. Se o prazo fosse seguido, possivelmente ocorreria um caos. Muita gente ficaria sem a sua novelinha.



Paulo Bernardo foi compreensivo. Em fevereiro de 2013, determinou à Anatel a vinculação do leilão da faixa de 700 MHz à digitalização das tevês. Cinco meses depois, convenceu Dilma Rousseff a assinar um decreto para prorrogar a obrigatoriedade da digitalização para dezembro de 2018. Ao atrelar tal processo ao leilão, o ministro abriu o caminho para a indenização de 3,6 bilhões de reais não se limitar à desapropriação dos canais afetados. Será usada também para comprar conversores e doá-los aos 14 milhões de inscritos no Bolsa Família. Base da audiência das tevês abertas, a população mais pobre é proprietária da maior parte dos televisores e antenas antigos.

Outra parte da indenização será endereçada à busca de soluções tecnológicas para um problema potencial. Há risco de a faixa de 700 MHz, quando usada no futuro pelas telefônicas, interferir no sinal dos canais abertos de tevê. E vice-versa. Os dois setores contrataram seus testes. O coordenado pela Anatel, na virada de 2013 para 2014, foi realizado na cidade goiana de Pirenópolis, a 140 quilômetros de Brasília, com equipamentos fornecidos pela Globo, a telefônica Oi, a fabricante chinesa de celulares Huawei e a produtora americana de chips Qualcomm, entre outros. Houve cenas de puro mambembe. O material chinês não suportou a carga inicialmente, importações da Qualcomm ficaram retidas na alfândega, cabos da Oi se romperam. O trabalho só terminou em abril, bem além do previsto. Os resultados apontam para a possibilidade de problemas de pequenas proporções, acredita a Anatel.

Grandes favorecidas, as teles não demonstram muito entusiasmo pelo leilão. Nos bastidores, afirmam que o momento não é o melhor para o governo forçar um desembolso de 11,3 bilhões de reais. Elas não teriam fôlego financeiro suficiente, uma situação que a entrada do BNDES no circuito ajuda a mudar. A Telefônica/Vivo, por exemplo, remete parte dos lucros à matriz na Espanha desde a crise global de 2008. Gerida por brasileiros, a Oi vive eternos dramas internos. Por tudo isso, as teles torceram para o Tribunal de Contas da União barrar o leilão. Chegaram a festejar discretamente, quando houve uma suspensão provisória no início de agosto. Duas semanas depois, o TCU deu sinal verde à Anatel.

A TIM foi única fora de sintonia. Em abril, antes da indicação da data definitiva do leilão, o presidente da empresa, Rodrigo Abreu, cobrou da agência a antecipação do uso da faixa de 700 MHz. A frequência será comprada agora, mas só estará disponível para as teles entre 2017 e 2018, no fim do processo de digitalização das emissoras de tevê. Após a definição do leilão, a TIM, isoladamente, declarou seu interesse. Mas parece existir espaço para todos. A Anatel preparou a venda de quatro lotes de alcance nacional. Em tese, um para cada operadora de telefonia móvel já atuante no País (TIM, Vivo, Claro e Oi). Não se pode descartar o surgimento de uma surpresa estrangeira.

Apesar do charminho das teles, o governo não arredou pé do patrocínio do leilão este ano. Sem os quase 8 bilhões de reais de arrecadação adicional, o Tesouro Nacional teria muita dificuldade para fechar as contas públicas este ano, como o secretário do Tesouro, Arno Augustin, reconheceu publicamente no fim de julho. Além disso, a disseminação da internet de alta velocidade, do tipo banda larga, é uma promessa da campanha reeleitoral de Dilma Rousseff verbalizada desde o primeiro dia da eleição. Em um vídeo divulgado em 6 de julho em seu site de campanha, a petista prometeu lançar um programa para universalizar uma internet potente e barata.

Queixas à parte, apoderar-se da nova frequência é uma necessidade para as teles. As previsões de demanda dos brasileiros por internet são incríveis. Calcula-se que o tráfego de dados aumentará dez vezes até 2017, devido ao consumo de vídeo em celulares. A Copa deu uma amostra do apetite. Na primeira rodada, houve 7,6 milhões de comunicações de dados dentro dos estádios. É como se cada torcedor tivesse enviado 10 fotos. Na partida final, o fluxo correspondeu a 35 fotos per capita. Até 2012, quando a Anatel leiloou a primeira frequência para uso da internet móvel 4G por 2,9 bilhões de reais, não havia nada parecido.

O mercado de aparelhos de celular também virou do avesso com o crescimento da procura por internet móvel, puxado pela menos veloz terceira geração. Os chamados smartphones tomaram conta das vendas desde o primeiro semestre de 2013. Três em cada quatro celulares comercializados são desse tipo. O imposto cobrado pelo governo sobre o produto foi zerado no ano passado, benesse que acaba de ser renovada até dezembro de 2018.

Mas há também uma má notícia para os cidadãos. Ex-presidente da Telebrás e um dos idealizadores do Plano Nacional de Banda Larga no fim do governo Lula, Rogério Santanna diz que a banda larga brasileira não merece esse nome, por ser muito lenta na comparação internacional. Além disso, diz ele, os preços cobrados pelo serviço em aparelhos celulares são “estapafúrdios”. Mais: ao reforçar o estímulo à internet móvel do tipo 4G, com efeitos que só serão sentidos em 2017 ou 2018, sem que as operadoras tenham cumprido as metas na de 3G, a Anatel deixará os usuários numa enrascada. “Estamos no pior dos mundos. Não temos 3G para todos e estamos chegando atrasados ao 4G.”

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