Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
O debate público em torno do relatório da Comissão da Verdade é um exemplo didático de como a imprensa pode funcionar, contraditoriamente, a serviço da desinformação. Não apenas por abrigar e dar destaque a articulistas incapazes de sair do círculo vicioso de aleivosias e mentiras deslavadas, mas principalmente pelo fato de que muitos jornalistas só conseguem se manter em postos de grande visibilidade na mídia tradicional por atuarem como vocalizadores radicais dos piores pensamentos de seus patrões.
Existem coisas que um publisher não pode afirmar publicamente, mesmo que seja parte de suas crenças mais profundas, porque o dinamismo da sociedade pode tornar deselegante ou mesmo transformar em crime, no período de poucos anos, aquilo que um dia foi tema corriqueiro de anedotas de salão ou da linguagem corrente.
Preconceitos, pensamentos discriminatórios e intolerância ao contraditório não devem integrar o discurso explícito nos meios de comunicação, porque ficam registrados e podem se revelar motivo de desconforto quando os fatos vierem a demonstrar que tais manifestações contrariam a essência do que deveria ser o jornalismo. Por isso o leitor crítico percebe certas incongruências entre alguns editoriais e textos de colunistas – que os editores consideram tão relevantes que fazem questão de reproduzi-los nas primeiras páginas.
Os editoriais cumprem o papel de expor o discurso politicamente correto, com o qual os jornais querem que o leitor se convença de seu equilíbrio na análise dos fatos mais polêmicos. Mas a verdadeira opinião dos editores pode estar sendo veiculada pela boca, ou pelas mãos, de seus colunistas mais celebrizados. Esse “duplipensar” não é novidade e não representa diversidade de opiniões, mas a afirmação de uma opinião central.
Os jornalistas que trabalharam na chamada grande imprensa durante os anos de chumbo sabem que os controladores da mídia sempre chamaram os opositores do regime de “terroristas” ou “subversivos” e os arquivos da época estão disponíveis para quem quiser refrescar a memória. Somente após a morte do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, quando o general-presidente Ernesto Geisel venceu a queda de braço com os líderes da chamada “linha dura”, essa linguagem começou a mudar.
O duplo vínculo
A sociedade brasileira evoluiu muito no período da redemocratização, e um dos sinais mais claros dessa transformação é a possibilidade de levar ao conhecimento público atos e fatos que seus autores e agentes prefeririam manter acobertados. Os casos de corrupção fazem parte desse conjunto de eventos que agora podem vir à tona, justamente porque o empenho da sociedade, por seus líderes progressistas, conduziu ao colapso o regime de exceção e refundou a democracia.
A imprensa, como instituição, cuida de chamar a si os méritos do processo de redemocratização, mas não foi bem assim: quem empurrou para dentro dos jornais a pauta da liberdade foram os repórteres que faziam a cobertura da política, do movimento sindical, das atividades da igreja e até mesmo alguns que cobriam esportes, os setores de inteligência e a polícia política. Alguns editores aderiram a esse pacto subversivo – para usar os valores oficiais da época –, contra o desejo explícito ou dissimulado da maioria dos controladores da mídia tradicional. Uma exceção entre os patrões foi o fundador da Editora Abril, Victor Civita, que por isso mesmo era hostilizado pelos demais empresários.
Quando ficou claro que a ditadura era insustentável, os dirigentes das empresas de comunicação passaram a investir no controle dos trabalhos da Assembleia Constituinte, cuidando para evitar que antigos vassalos da ditadura caíssem no ostracismo. Além disso, como demonstra o pesquisador Francisco Fonseca, da FGV, em seu livro Liberalismo autoritário, a imprensa deu visibilidade ao grupo de parlamentares chamado de “Centrão”, que organizou e profissionalizou a prática do “toma lá, dá cá”, matriz da corrupção contemporânea.
Nesta segunda década do século 21, quando a democracia brasileira dá mostras de solidez após as mobilizações de 2013 e a dura disputa eleitoral de 2014, a imprensa convoca articulistas que trocaram o jornalismo pelo panfletarismo para assumir o papel de porta-vozes do impronunciável. O impronunciável, neste caso, é a tentativa de relativizar os crimes da ditadura. Isso se chama metacomunicação: os estímulos periféricos dos colunistas pitbulls condicionam a interpretação do conteúdo oficial da imprensa.
O leitor atento percebe sinais de hipocrisia nesse jogo, e alguns deles têm conduzido debates respeitosos, ainda que de posições divergentes, em comentários neste Observatório. Mas a maioria é refém do duplo vínculo proposto no discurso esquizofrênico da mídia.
Existem coisas que um publisher não pode afirmar publicamente, mesmo que seja parte de suas crenças mais profundas, porque o dinamismo da sociedade pode tornar deselegante ou mesmo transformar em crime, no período de poucos anos, aquilo que um dia foi tema corriqueiro de anedotas de salão ou da linguagem corrente.
Preconceitos, pensamentos discriminatórios e intolerância ao contraditório não devem integrar o discurso explícito nos meios de comunicação, porque ficam registrados e podem se revelar motivo de desconforto quando os fatos vierem a demonstrar que tais manifestações contrariam a essência do que deveria ser o jornalismo. Por isso o leitor crítico percebe certas incongruências entre alguns editoriais e textos de colunistas – que os editores consideram tão relevantes que fazem questão de reproduzi-los nas primeiras páginas.
Os editoriais cumprem o papel de expor o discurso politicamente correto, com o qual os jornais querem que o leitor se convença de seu equilíbrio na análise dos fatos mais polêmicos. Mas a verdadeira opinião dos editores pode estar sendo veiculada pela boca, ou pelas mãos, de seus colunistas mais celebrizados. Esse “duplipensar” não é novidade e não representa diversidade de opiniões, mas a afirmação de uma opinião central.
Os jornalistas que trabalharam na chamada grande imprensa durante os anos de chumbo sabem que os controladores da mídia sempre chamaram os opositores do regime de “terroristas” ou “subversivos” e os arquivos da época estão disponíveis para quem quiser refrescar a memória. Somente após a morte do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, quando o general-presidente Ernesto Geisel venceu a queda de braço com os líderes da chamada “linha dura”, essa linguagem começou a mudar.
O duplo vínculo
A sociedade brasileira evoluiu muito no período da redemocratização, e um dos sinais mais claros dessa transformação é a possibilidade de levar ao conhecimento público atos e fatos que seus autores e agentes prefeririam manter acobertados. Os casos de corrupção fazem parte desse conjunto de eventos que agora podem vir à tona, justamente porque o empenho da sociedade, por seus líderes progressistas, conduziu ao colapso o regime de exceção e refundou a democracia.
A imprensa, como instituição, cuida de chamar a si os méritos do processo de redemocratização, mas não foi bem assim: quem empurrou para dentro dos jornais a pauta da liberdade foram os repórteres que faziam a cobertura da política, do movimento sindical, das atividades da igreja e até mesmo alguns que cobriam esportes, os setores de inteligência e a polícia política. Alguns editores aderiram a esse pacto subversivo – para usar os valores oficiais da época –, contra o desejo explícito ou dissimulado da maioria dos controladores da mídia tradicional. Uma exceção entre os patrões foi o fundador da Editora Abril, Victor Civita, que por isso mesmo era hostilizado pelos demais empresários.
Quando ficou claro que a ditadura era insustentável, os dirigentes das empresas de comunicação passaram a investir no controle dos trabalhos da Assembleia Constituinte, cuidando para evitar que antigos vassalos da ditadura caíssem no ostracismo. Além disso, como demonstra o pesquisador Francisco Fonseca, da FGV, em seu livro Liberalismo autoritário, a imprensa deu visibilidade ao grupo de parlamentares chamado de “Centrão”, que organizou e profissionalizou a prática do “toma lá, dá cá”, matriz da corrupção contemporânea.
Nesta segunda década do século 21, quando a democracia brasileira dá mostras de solidez após as mobilizações de 2013 e a dura disputa eleitoral de 2014, a imprensa convoca articulistas que trocaram o jornalismo pelo panfletarismo para assumir o papel de porta-vozes do impronunciável. O impronunciável, neste caso, é a tentativa de relativizar os crimes da ditadura. Isso se chama metacomunicação: os estímulos periféricos dos colunistas pitbulls condicionam a interpretação do conteúdo oficial da imprensa.
O leitor atento percebe sinais de hipocrisia nesse jogo, e alguns deles têm conduzido debates respeitosos, ainda que de posições divergentes, em comentários neste Observatório. Mas a maioria é refém do duplo vínculo proposto no discurso esquizofrênico da mídia.
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