Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
O ataque à redação do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, desatou uma sucessão de análises sobre as chances de sociedades cosmopolitas seguirem abrigando comunidades religiosas que repudiam o estilo de vida ocidental. O núcleo da questão é, evidentemente, o islamismo, mas o problema se repete, em maior ou menor escala, com todas as religiões, concentrado principalmente nos grupos ortodoxos.
Consideradas as devidas proporções, trata-se do mesmo dilema que opõe líderes de seitas neopentecostais que se desenvolvem à margem de igrejas evangélicas, e integrantes de milícias católicas, a projetos liberalizantes de costumes no Brasil. Manifestações de padres, bispos, pastores e autodenominados profetas de várias crenças têm rebaixado o nível dos debates políticos nas três últimas eleições presidenciais, e houve casos esporádicos de violência contra seguidores de cultos de origem africana.
A questão remete sempre à liberdade de expressão, tida como um dogma absoluto quando contraposta a outro direito, o de crer em determinada doutrina religiosa e fazer dela a principal condicionante da vida social.
Nas sociedades ocidentais, laicas por definição e propósito, os preceitos religiosos não podem se sobrepor ao arcabouço de deveres e direitos acordados pelo interesse comum. Assim, a questão religiosa fica restrita à vida privada, embora, como grupo, os religiosos tenham acesso a meios de comunicação social, com liberdade para fazer sua propaganda.
No entanto, não existem sociedades puramente laicas e, em países como os Estados Unidos, o Brasil, a Inglaterra e a França, tanto a imprensa como as instituições do Estado aceitam a orientação discricionária da religião predominante. Basta observar a deferência especial com que são abordados os assuntos da igreja católica em comparação, por exemplo, com o tratamento dado a líderes do espiritismo, dos cultos afro e das igrejas protestantes. Por outro lado, a lembrança do Holocausto impõe uma barreira a toda crítica a Israel, em contraposição aos interesses dos povos árabes e muçulmanos.
Uma liberdade a discutir
Por isso, é necessário que um líder do islamismo no Brasil venha a público esclarecer que o ataque ao Charlie Hebdo não pode ser chamado de “atentado islâmico”, como tem feito a mídia. A entrevista de um dirigente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (ver aqui), publicada pelo Estado de S. Paulo na edição de sexta-feira (9/1) tenta contrapor a essa tendência a lembrança de que os textos sagrados do islamismo condenam a violência.
Mas é preciso também lembrar que os líderes mundiais do islamismo costumam fechar os olhos diante da expansão das minorias extremistas, que eles chamam de distorção da crença religiosa. Da mesma forma, extremistas judeus como os rabinos Isaac Shapira e Yosef Elitzur pregam livre e publicamente o assassinado de crianças de famílias muçulmanas, baseados no pressuposto de que, se vierem a crescer, poderão se tornar terroristas.
Por outro lado, permanece a questão da liberdade de expressão. Se aceitarmos que se trata de um direito absoluto, não sujeito a limitações, teremos que tolerar a pregação de Shapira e Elitzur contra os não judeus, tanto quando as prédicas dos imãs que fundamentam o projeto de poder do Estado Islâmico. Da mesma forma, aceitaríamos que seguidores de um culto neopentecostal quebrem imagens que os católicos consideram sagradas.
Estendendo o raciocínio no limite proposto pela própria imprensa, basta que um ato como esses seja declarado como performance artística para que se levante em sua defesa a tese da liberdade de manifestação. E se um artista reconhecido como tal resolver transformar em cacos uma cruz, um candelabro Chanuquiá dos judeus, um exemplar do Alcorão e uma Bíblia protestante em praça pública, quem haverá de condená-lo a não ser os devotos dessas religiões, se estiver declaradamente fazendo um manifesto artístico idiossincrático? A liberdade de pensar e manifestar o pensamento em ambiente privado é diferente de usar os meios de comunicação de massa para a expressão de uma idiossincrasia?
Como se pode observar, não basta levantar a bandeira da liberdade de gozação para concluir o debate sobre o atentado contra o Charlie Hebdo. Infelizmente, para a ansiedade dos apressados, o prazo de fechamento dos jornais e o tempo precioso dos leitores, o buraco é mais embaixo, como dizia o Pasquim.
Consideradas as devidas proporções, trata-se do mesmo dilema que opõe líderes de seitas neopentecostais que se desenvolvem à margem de igrejas evangélicas, e integrantes de milícias católicas, a projetos liberalizantes de costumes no Brasil. Manifestações de padres, bispos, pastores e autodenominados profetas de várias crenças têm rebaixado o nível dos debates políticos nas três últimas eleições presidenciais, e houve casos esporádicos de violência contra seguidores de cultos de origem africana.
A questão remete sempre à liberdade de expressão, tida como um dogma absoluto quando contraposta a outro direito, o de crer em determinada doutrina religiosa e fazer dela a principal condicionante da vida social.
Nas sociedades ocidentais, laicas por definição e propósito, os preceitos religiosos não podem se sobrepor ao arcabouço de deveres e direitos acordados pelo interesse comum. Assim, a questão religiosa fica restrita à vida privada, embora, como grupo, os religiosos tenham acesso a meios de comunicação social, com liberdade para fazer sua propaganda.
No entanto, não existem sociedades puramente laicas e, em países como os Estados Unidos, o Brasil, a Inglaterra e a França, tanto a imprensa como as instituições do Estado aceitam a orientação discricionária da religião predominante. Basta observar a deferência especial com que são abordados os assuntos da igreja católica em comparação, por exemplo, com o tratamento dado a líderes do espiritismo, dos cultos afro e das igrejas protestantes. Por outro lado, a lembrança do Holocausto impõe uma barreira a toda crítica a Israel, em contraposição aos interesses dos povos árabes e muçulmanos.
Uma liberdade a discutir
Por isso, é necessário que um líder do islamismo no Brasil venha a público esclarecer que o ataque ao Charlie Hebdo não pode ser chamado de “atentado islâmico”, como tem feito a mídia. A entrevista de um dirigente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (ver aqui), publicada pelo Estado de S. Paulo na edição de sexta-feira (9/1) tenta contrapor a essa tendência a lembrança de que os textos sagrados do islamismo condenam a violência.
Mas é preciso também lembrar que os líderes mundiais do islamismo costumam fechar os olhos diante da expansão das minorias extremistas, que eles chamam de distorção da crença religiosa. Da mesma forma, extremistas judeus como os rabinos Isaac Shapira e Yosef Elitzur pregam livre e publicamente o assassinado de crianças de famílias muçulmanas, baseados no pressuposto de que, se vierem a crescer, poderão se tornar terroristas.
Por outro lado, permanece a questão da liberdade de expressão. Se aceitarmos que se trata de um direito absoluto, não sujeito a limitações, teremos que tolerar a pregação de Shapira e Elitzur contra os não judeus, tanto quando as prédicas dos imãs que fundamentam o projeto de poder do Estado Islâmico. Da mesma forma, aceitaríamos que seguidores de um culto neopentecostal quebrem imagens que os católicos consideram sagradas.
Estendendo o raciocínio no limite proposto pela própria imprensa, basta que um ato como esses seja declarado como performance artística para que se levante em sua defesa a tese da liberdade de manifestação. E se um artista reconhecido como tal resolver transformar em cacos uma cruz, um candelabro Chanuquiá dos judeus, um exemplar do Alcorão e uma Bíblia protestante em praça pública, quem haverá de condená-lo a não ser os devotos dessas religiões, se estiver declaradamente fazendo um manifesto artístico idiossincrático? A liberdade de pensar e manifestar o pensamento em ambiente privado é diferente de usar os meios de comunicação de massa para a expressão de uma idiossincrasia?
Como se pode observar, não basta levantar a bandeira da liberdade de gozação para concluir o debate sobre o atentado contra o Charlie Hebdo. Infelizmente, para a ansiedade dos apressados, o prazo de fechamento dos jornais e o tempo precioso dos leitores, o buraco é mais embaixo, como dizia o Pasquim.
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