quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Espanha, a próxima a se rebelar?

Ilustração: Josetxo Ezcurra/Rebelión
Por Vicenç Navarro, no site Outras Palavras:

Uma imenso mar humano povoou as ruas de Madri no último sábado. Centenas de milhares de pessoas manifestaram-se, atendendo a um chamado do partido-movimento Podemos, criado há menos de um ano. Esperançosas após a vitória eleitoral do Syriza, na Grécia, elas sinalizaram que a Europa vai continuar tremendo, nos próximos meses. Que já não será fácil manter “ajustes fiscais” [“austeridade”, na Europa] que cortam direitos e mantêm as rendas financeiras. Que a suposta “racionalidade econômica” não poderá mais ser usada como pretexto para afastar a sociedade das decisões e transferi-las a “especialistas”. Que pode estar com os dias contados o sistema em que dois partidos - rivais na disputa pelo Estado, mas cada vez mais semelhantes nas políticas que adotam - alternam-se eternamente no poder.

Que ventos produzem o furacão espanhol? Até há um ano, o sistema bipartidário instituído há quatro décadas parecia inabalável. PP (centro-direita) e PSOE (ex-social-democrata) estavam acomodados, com diferenças mínimas de tom, ao mesmo projeto que resultou - na Espanha e na maior parte do mundo - num aumento brutal das desigualdades sociais. Um partido ligado à esquerda história (“Izquierda Unida”) cumpria um previsível papel de coadjuvante.

Três fatores parecem ter sacudido este ambiente de pasmaceira. No texto abaixo, Vicenç Navarro, co-autor do programa econômico do Podemos, explica em detalhes, e em seu complexo contexto histórico, quais são. Os partidos tradicionais auto-sabotaram-se, por julgarem que, à falta de alternativas, a população se acomodaria mais uma vez a uma democracia reduzida a teatro. A difusão de novas formas, desierarquizadas, de relações sociais, tornou grotesco o controle das instituições por um punhado de “líderes” partidários — hoje conhecidos na Espanha como “a casta”. Por fim, o próprio Podemos teve sabedoria para converter a energia rebelde dos Indignados de 2011 num projeto de transformações que dialoga de igual para igual com as maiorias — ao invés de auto-distanciar-se delas por meio de jargões e métodos de “direção” anacrônicos.

Assim como o Syriza, o Podemos viverá oportunidades e desafios imensos, nos próximos meses. Ainda no primeiro semestre, disputará eleições municipais. A formação de um novo governo, por meio de um pleito antecipado, pode ocorrer ainda em 2015. Sobreviverá à necessidade de encontrar saídas para a crise — e aos riscos de ser cooptado pelo sistema que quer transformar? Navarro parece dizer que a resposta está em aberto. “É o fim de um período, sem que saibamos o que virá depois”, diz ele, referindo-se a Gramsci. Quando o futuro é incerto, cada ato e atitude são importantes. Vale conhecer o que está em jogo na Espanha e na Europa, neste exato momento (A.M.)

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Por Vicenç Navarro

Alguma coisa acontece na Espanha. Um partido fundado há apenas um ano, o Podemos, com um programa claramente de esquerda, poderia ganhar a maioria no Parlamento espanhol, se as eleições fossem hoje. Após a vitória do Syriza nas eleições gregas de 25 de janeiro, tem-se especulado sobre a possibilidade do Podemos alcançar feito semelhante nas eleições parlamentares da Espanha no final deste ano. Mas, o que está conduzindo o partido ao sucesso?

O apoio ao Podemos está intrinsecamente ligado às políticas impostas pelo governo conservador do Partido Popular, liderado por Mariano Rajoy. Essas políticas incluíram os maiores cortes em gastos sociais públicos (desmantelando o subfinanciado Estado de bem-estar social espanhol) desde que a democracia foi estabelecida na Espanha, em 1978, e as mais duras reformas trabalhistas fixadas no mesmo período, as quais deterioraram substancialmente as condições do mercado de trabalho. Os salários baixaram 10% desde a Grande Recessão iniciada em 2007, e o desemprego alcançou um recorde histórico de 26% (52% entre os jovens). O percentual de trabalho temporário e precário aumentou, tornando-se a maioria dos novos contratos no mercado de trabalho (mais de 52% da totalidade dos contratos); 66% dos desempregados não têm nenhuma forma de seguro desemprego ou assistência pública.

Essas medidas criaram um enorme problema de falta de demanda interna, importante causa da recessão duradoura. Houve apenas um recente crescimento muito limitado, devido principalmente à queda dos preços do petróleo, a uma desvalorização do euro e ao compromisso, pelo Banco Central Europeu (BCE), de comprar títulos públicos. O governo espanhol não teve nada a ver com esses fatos, embora reivindique a limitada recuperação como resultado de suas políticas.

As políticas atuais foram promovidas pela União Europeia por meio do Conselho Europeu, da Comissão Europeia e do BCE, e pelo Fundo Monetário Internacional. Foram realizadas na Espanha com apoio e estímulo do capital financeiro, das principais corporações e seu instrumento político, o Partido Popular. A direita espanhola conseguiu, possivelmente, o que sempre quis: a redução dos salários e a asfixia da proteção social, com o esfacelamento do estado de bem-estar. Essas políticas são aquilo que os participantes da última reunião do G20 na Austrália apresentaram como estratégia a ser seguida por todos os países, elegendo a Espanha como país modelo.

Por que razão os cortes foram feitos?

A redução dos salários e do número de pessoas que recebem salários, assim como a redução dos gastos públicos, resultaram num enorme declínio da demanda interna e, consequentemente, do crescimento econômico. A queda dos salários significou aumento do endividamento das famílias e das pequenas e médias empresas. A dívida aumentou enormemente. Isso significa que também as transações bancárias aumentaram enormemente (a Espanha tem um dos maiores setores bancários na Europa, proporcionalmente três vezes maior que o dos Estados Unidos). Mas a baixa rentabilidade da economia produtiva significou um grande aumento dos Investimentos bancários especulativos, causando enormes bolhas, das quais a mais importante foi a bolha imobiliária.

Quando a bolha ainda estava inchando, um sentimento de euforia dominava oestablishment político. Até mesmo o governo do líder socialista, José Luis R. Zapatero, sentia que, em tempos de crescimento tão exuberante, os impostos deviam ser reduzidos – seu slogan então era que “reduzir os impostos devia ser um objetivo da esquerda”. Reduziu enormemente os tributos, em especial sobre ganhos de capital e rendas elevadas. E em 2007, quando a bolha explodiu, surgiu um grande buraco nas receitas do Estado: 27 bilhões de euros. De acordo com economistas do departamento de estatística do Ministério das Finanças, 70% desse buraco era devido aos cortes de impostos, e apenas 30% à queda da atividade econômica no início da Grande Recessão.

Foi assim que começaram os cortes – sob o falso argumento de que era preciso enfrentar as medidas de austeridade porque o país estava gastando muito. Na realidade, quando a crise começou, o Estado espanhol tinha superávit. Na verdade, o gasto público da Espanha é muito baixo: muito menor do que exigiria o seu nível de desenvolvimento econômico. Os cortes demonstram a natureza política dessas intervenções.

Zapatero congelou as aposentadorias públicas para economizar 1,5 bilhão de euros, quando poderia ter obtido 2,5 bilhões recuperando os impostos sobre a propriedade, que havia abolido; revertendo a redução dos impostos sobre herança (2,3 bilhões); ou revertendo a diminuição dos impostos de indivíduos com rendimento anual de 120 mil euros (2,2 bilhões). Esses cortes foram mais tarde ampliados por Rajoy, que cortou 6 bilhões do Serviço Nacional de Saúde, argumentando, como dissera antes Zapatero, que “não havia alternativa” — a frase mais frequentemente usada na narrativa oficial.

Contudo, havia alternativas. Ele poderia ter revertido a redução de impostos sobre o capital para grandes corporações, que havia aprovado, obtendo 5,5 bilhões. De fato, escrevi, junto com Juan Torres e Alberto Garzón, um livro a esse respeito intitulado Hay Alternativas: Propuestas para Crear Empleo y Bienestar Social em España. O livro demonstrou, com números claros e convincentes, que havia na verdade outras opções às políticas impostas. Tornou-se um best-seller na Espanha e foi largamente utilizado pelo movimento dos Indignados.

O movimento dos Indignados

O corte dos gastos públicos e as três reformas do mercado de trabalho realizadas primeiro pelo governo socialista (PSOE) e depois pelo governo conservador (PP), despertaram a ira de muitos cidadãos, já que nenhuma dessas medidas havia recebido um mandato popular genuíno. Nenhuma dessas políticas foi mencionada no programa eleitoral dos partidos governantes. Em resposta, o movimento Indignados surgiu e espalhou-se rapidamente por todo o país. Seus slogans, tais como “A classe política não nos representa”, tornaram-se largamente populares. Em consequência, as instituições começaram a perder legitimidade, enquanto o Estado respondia tentando reprimir o movimento. Contudo, isso não deteve os Indignados: muitos de seus líderes eram jovens e portanto profundamente afetados pela crise.

O movimento reclamava uma segunda transição, pedindo o fim do regime de 1978 (o sistema político estabelecido quando terminou a ditadura) e a elaboração de uma nova ordem democrática, explicando a necessidade de substituir as instituições representativas existentes por outras, complementadas por novas formas de participação democrática tais como referendos e/ou assembleias populares. O objetivo era estabelecer um sistema democrático autêntico, com formas de participação direta dos cidadãos tais como referendos, acrescidas de formas indiretas tais como a democracia representativa, de modo a garantir que os partidos políticos fossem muito mais democráticos do que são hoje.

Os Indignados tiveram um impacto enorme, sendo seu primeiro passo um protesto contra o slogan “Não há alternativas”. De fato, a liderança do movimento exibiu nosso livro, Há Alternativas, diante da polícia, que tentava controlar a manifestação. A fotografia de milhares de pessoas mostrando o livro foi amplamente distribuída dentro do movimento e publicada pela imprensa. Seu alvo principal era, essencialmente, destacar que havia, sim, alternativas, e questionar a legitimidade do Estado, que impunha políticas para as quais não tinha mandato popular.

O novo partido político: Podemos

Os Indignados tornaram-se conscientes de que, paralelamente aos protestos, tinham também de intervir na arena política – e foi assim, essencialmente, que o Podemos começou. Os líderes do Podemos surgiram do grupo de pessoas que desempenharam um papel de liderança no movimento. Alguns são membros do jovem corpo docente do Departamento de Ciências Políticas e Sociais na maior universidade pública da Espanha, Complutense. Muitos haviam sido ativistas nos movimentos de juventude do Partido Comunista Espanhol.

Independentemente de sua origem, todos sentiam que a raiz do problema era o controle do Estado por uma classe de políticos sustentados principalmente pelos maiores partidos – o partido conservador-liberal (PP) e o socialista (PSOE) – que se relacionavam intimamente e estavam vinculados às principais corporações financeiras e bancárias que corromperam as instituições do Estado. Eles clamavam pelo estabelecimento de um Estado democrático e uma Europa democrática – “uma Europa do povo, não a Europa dos banqueiros”.

Eles participaram das eleições para o Parlamento Europeu em 2014 e tiveram muito mais votos que esperavam. Em seguida, e mais importante, pesquisas revelaram crescimento substancial de seu apoio popular. A ponto de se tornar claro, ao final de 2014, que o Podemos poderia chegar ao governo – uma situação que seus criadores nunca haviam pensado possível em tão pouco tempo. A mensagem do partido, “Vote contra a casta. Jogue-os todos fora”, ressoou profundamente entre o eleitorado. Parece claro que a maioria da população está farta do establishment político e mediático e voltou-se para o Podemos como alternativa.

No entanto, a esta altura ainda faltava ao partido uma estrutura claramente definida. Isso impôs a necessidade urgente de desenvolver uma organização partidária, baseada num modelo de assembleia e a partir de uma base proposta pela liderança. Para preparar este programa, pediram a mim e a Juan Torres (co-autor de Hay Alternativas) que formulássemos um esboço do programa econômico que um governo do Podemos deveria implementar, se eleito. Este esboço seria a base para uma vasta discussão no interior do partido. O documento recebeu um título inicial autoexplicativo: “A necessidade de democratizar a Economia para acabar com a crise e ampliar Justiça Social, Bem-estar e Qualidade de Vida – Uma proposta para abrir um debate e resolver os problemas da economia espanhola”. Foi amplamente distribuído pelo Podemos, com novo nome: “Um projeto econômico para pessoas” (Un proyecto económico para la gente). Teve enorme impacto.

A apresentação da proposta, pelo porta-voz do Podemos, Pablo Iglesias, junto conosco, como autores, tornou-se um grande acontecimento na Espanha. A hostilidade da velha mídia e dos ornais econômicos, assim como dos intelectuais e porta-vozes dos grandes partidos governistas (PP e PSOE) produziu alguns ataques furiosos ao documento e a seus autores. Na Europa, o presidente do banco central alemão (Bundesbank) sustentou que as propostas expressas no texto causariam prejuízos às economias da Espanha e da Europa. Em paralelo a estas respostas negativas sem precedentes, no entanto, houve ampla aceitação das pessoas comuns, a ponto de alterar a agenda do debate econômico e desafiar a ideologia que o impregnava.

Nosso documento não é um orçamento para o futuro governo do Podemos, mas traça as linhas estratégicas a se4 seguidas. A análise das causas da crise está focada no enorme crescimento da desigualdade, responsável pelas crises financeira, econômica e política. Coloca no centro da análise o conflito do capital (sob a hegemonia do setor financeiro) contra o trabalho. Ele levou a um enorme declínio da demanda doméstica, causada pela redução real dos salários, aumento do desemprego e cortes nas despesas públicas. Voltadas a reverter este crescimento da desigualdade, as propostas, portanto, sugerem ampliar a demanda doméstica (elevando os salários e o emprego) e expandindo os gastos e investimentos públicos (em particular, os relacionados à infraestrutura social)

Sublinha-se também a necessidade de expandir os bancos públicos, como forma de oferecer crédito a famílias e a pequenas e médias empresas. Propõe-se a redução da jornada de trabalho para 35 horas e a idade de aposentadoria, dos 67 anos atuais para 65 – o que reverteria posições aprovadas pelo PP e PSOE. O impacto do programa fortaleceria o trabalho às custas do capital. Além disso, defende-se a clara necessidade de corrigir desigualdades de gênero, inclusive como forma de ampliar o emprego. E demonstrou que todas estas propostas poderiam ser sustentadas por meio de uma Reforma Tributária e da redução das fraudes fiscais.

Que explica o sucesso do Podemos?

É fácil responder a pergunta. Há enorme ira popular diante do que o Podemos chama dela casta. O termo inclui as elites governantes no establishment político, que desenvolveram cumplicidade aberta com as corporações financeiras e não-financeiras que dominam as instituições e a mídia. O apelo para “jogá-los todos fora” desperta apoio geral entre a maioria do povo espanhol.

Além disso, o Podemos foge dos jargões, usa linguagem comum, redefine luta de classes como o conflito entre os que estão no topo e todos os demais. É uma narrativa que mobiliza uma base de apoio ampla e diversa. Além disso, o partido tornou central, em sua estratégia, a luta pela democracia – e a redefiniu para incluir distintas formas de participação, como referendos (definidos como el derecho a decidir), além das formas tradicionais de representação. É por seu compromisso democrático que aceitou o direito a autodeterminação das diferentes nações que exitem na Espanha, rompendo com a visão que esta seria um Estado uninacional.

A compreensão da Espanha como um Estado “plurinacional” foi uma exigência de todos os partidos de esquerda (inclusive o PSOE), mas foi abandonada durante a transição para a democracia pelo Partido Socialista, por pressões do rei (apontado por Franco) e do exército. A ampla reivindicação popular dos catalães pelo direito à auto-determinação (não confundir com independência: 82% apoiam a primeira; apenas 33%, a segunda) criou enorme tensão entre o governo central e o tornou altamente impopular.

O sucesso do Podemos tornou-se uma grande ameça ao establishment espanhol (e europeu). Hoje, as elites financeira, econômica, política e midiática na Espanha estão na defensiva e em pânico. Aprovaram leis que tornam mais dura a repressão. Os dirigentes dos grandes bancos estão particularmente preocupados. O presidente do Santander, que morreu em setembro passado, anunciou pouco antes de falecer que estava extremamente preocupado, frisando que o Podemos e a Catalunha representavam, em sua opinião, grandes ameaças à Espanha – a sua Espanha, é claro. E ele tinha rezão. O futuro agora está aberto. Como disse Gramsci certa vez, é o fim de um período, sem que tenhamos visão clara sobre como sera o próximo. A Europa e a Espanha estão fechando uma era. Resta saber como será a próxima.

* Tradução de Inês Castilho.

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