Por Luciana Ballestrin, na revista Fórum:
As manifestações do domingo (15/03) em diferentes capitais e cidades do Brasil, articuladas pelos discursos anticorrupção, antipetista e anticomunista de forma geral, colocam diante de nós velhas questões da teoria política democrática. Parte delas está relacionada com os limites da democracia, da liberdade de expressão e da tolerância, assim como com a possibilidade de atitudes e discursos autoritários serem reproduzidos no seio da sociedade civil.
As centenas de milhares de cidadãos e cidadãs que foram às ruas exercitarem seu direito de manifestação no dia 15/03 expuseram sem intenção um grande problema para a teoria democrática, a saber, o fato de que pessoas podem se organizar e se associar com objetivos não democráticos e antidemocráticos.
Esse paradoxo é velho conhecido dos estudiosos das associações e do associativismo em sua relação com a democracia: como, por exemplo, as ideias nazistas e racistas puderam prosperar nas associações civis da república de Weimar e da democracia nos Estados Unidos? Para além da análise dos contextos históricos específicos, essa resposta só é possível de ser articulada se abrirmos mão de uma certa essência virtuosa, pacífica e democrática da sociedade civil.
Um segundo aspecto que chama atenção por seu ineditismo no Brasil e no mundo é a manifestação do desejo e da vontade ao retorno da ditadura civil-militar sem ressalvas e, portanto, implicitamente com toda sua violência. O fato de que pessoas possam preferir viver sob um regime autoritário a um regime democrático é, no entanto, algo menos gritante do que a própria publicização dessa preferência. Parcelas significativas dos manifestantes que reuniram quase meio milhão de pessoas em todo o Brasil protagonizaram um dilema pouco considerado pelos estudiosos de até então: uma reivindicação pelo retorno do autoritarismo em um regime democrático.
Por dezenas de anos a ciência política mundial, latino-americana e brasileira debruçou-se sobre a ordem inversa desses fatores, procurando entender os fenômenos das transições, das redemocratizações e das consolidações da democracia. Quase nunca o contrário foi cogitado e o exercício democrático de sair à rua para demandar que no futuro não se possa mais sair às ruas soaria como mera reflexão filosófica contrária à lógica e à racionalidade.
É certo, por outro lado, que institutos de pesquisa como o Latinobarómetro já alertavam-nos desde os anos noventa para um certo estoque e reservatório de atitudes autoritárias dos latino-americanos e brasileiros – ainda que o funcionamento relativamente normalizado das instituições neutralizasse esse diagnóstico. Da mesma época, a existência de registros com altíssimos níveis de desconfiança nos partidos, instituições e classe política não permite atribuir o ar de novidade ao fenômeno maior que descredita e criminaliza a política tradicional.
Desde lá, forças armadas, televisão e igreja apareciam como atores que desfrutam de maior prestígio e confiança entre a população no continente. É sabido que a estrutura monopolizada dos meios de comunicação brasileira possui participação considerável nesta construção negativa da política em favor de seus próprios interesses políticos e econômicos.
Em meio a um emaranhado de indivíduos, movimentos e organizações, a heterogeneidade da sociedade civil que foi às ruas no 15/03, com discursos confusos, contraditórios e surreais em termos propositivos, indicou um alinhamento à direita do espectro político brasileiro. Pode-se afirmar com certa tranquilidade que tais protestos reabilitaram a importância da noção de ideologia e de hegemonia para o estudo da sociedade civil.
E, ainda que os mesmos não tenham sido homogêneos em seu descompromisso com a democracia – em um sentido amplo que pressuponha igualdade como base –, pesquisas realizadas in loco indicaram que o perfil dos manifestantes foi pouco representativo da diversidade da população brasileira em seus quase duzentos milhões de habitantes.
A ambígua e complexa relação com o autoritarismo e a violência de determinados grupos e indivíduos de manifestantes vestidos na maioria de verde e amarelo expôs a fragilidade e a juventude da nossa democracia, anulando ao mesmo tempo a potencialidade democrática da pauta acerca do problema da corrupção e do governo – dirigidas a um único partido político e a uma única administração.
A misoginia, intolerância, ofensa, raiva, truculência e violência presentes em muitos discursos, cartazes, gritos de guerra e ações afastaram e anularam a classificação de pacífico e democrático o conjunto das manifestações. Por mais que certa empresa de comunicação dissesse repetida e reiteradamente justamente o contrário, talvez somente as pessoas que não puderam sair às ruas em determinados horários ou foram hostilizadas no dia sentiram na pele o peso dessa afirmação.
Impressionou aos observadores não a manifestação “da direita que não tem medo de dizer seu nome”, como vibrou um manifestante na avenida Paulista, ou o grito de guerra “a nossa bandeira jamais será vermelha”, chamado por uma senhora habitante dos idos anos sessenta, ao que parece. Impressionou a defesa da exclusão, o saudosismo da desigualdade e o elogio à violência de forma pública e explícita.
De faixas que pediram intervenção militar a selfies tirados com tropas de repressão e choque, debochou-se da democracia e dos direitos humanos no Brasil. E, por também abrigar pautas inconstitucionais, ilegítimas, ilegais e extremistas, 15 de março foi um dia profundamente violento – verbal, visual e simbolicamente. Essa parte contaminou o todo, afastando seu significado maior de um senso voltado ao alargamento da cidadania. Multidões nas ruas nem sempre estão conectadas ou mobilizadas por ideias democráticas e justas.
* Luciana Ballestrin é cientista política e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas.
Referências:
- ARMONY, Ariel. The Dubious Link: civic engagement and democratization. Califórnia: Stanford, 2004.
- POWER, Timothy; JAMISON, Giselle. Desconfiança política na América Latina. Opinião Pública, Campinas, v.11, n. 1, 2005.
As manifestações do domingo (15/03) em diferentes capitais e cidades do Brasil, articuladas pelos discursos anticorrupção, antipetista e anticomunista de forma geral, colocam diante de nós velhas questões da teoria política democrática. Parte delas está relacionada com os limites da democracia, da liberdade de expressão e da tolerância, assim como com a possibilidade de atitudes e discursos autoritários serem reproduzidos no seio da sociedade civil.
As centenas de milhares de cidadãos e cidadãs que foram às ruas exercitarem seu direito de manifestação no dia 15/03 expuseram sem intenção um grande problema para a teoria democrática, a saber, o fato de que pessoas podem se organizar e se associar com objetivos não democráticos e antidemocráticos.
Esse paradoxo é velho conhecido dos estudiosos das associações e do associativismo em sua relação com a democracia: como, por exemplo, as ideias nazistas e racistas puderam prosperar nas associações civis da república de Weimar e da democracia nos Estados Unidos? Para além da análise dos contextos históricos específicos, essa resposta só é possível de ser articulada se abrirmos mão de uma certa essência virtuosa, pacífica e democrática da sociedade civil.
Um segundo aspecto que chama atenção por seu ineditismo no Brasil e no mundo é a manifestação do desejo e da vontade ao retorno da ditadura civil-militar sem ressalvas e, portanto, implicitamente com toda sua violência. O fato de que pessoas possam preferir viver sob um regime autoritário a um regime democrático é, no entanto, algo menos gritante do que a própria publicização dessa preferência. Parcelas significativas dos manifestantes que reuniram quase meio milhão de pessoas em todo o Brasil protagonizaram um dilema pouco considerado pelos estudiosos de até então: uma reivindicação pelo retorno do autoritarismo em um regime democrático.
Por dezenas de anos a ciência política mundial, latino-americana e brasileira debruçou-se sobre a ordem inversa desses fatores, procurando entender os fenômenos das transições, das redemocratizações e das consolidações da democracia. Quase nunca o contrário foi cogitado e o exercício democrático de sair à rua para demandar que no futuro não se possa mais sair às ruas soaria como mera reflexão filosófica contrária à lógica e à racionalidade.
É certo, por outro lado, que institutos de pesquisa como o Latinobarómetro já alertavam-nos desde os anos noventa para um certo estoque e reservatório de atitudes autoritárias dos latino-americanos e brasileiros – ainda que o funcionamento relativamente normalizado das instituições neutralizasse esse diagnóstico. Da mesma época, a existência de registros com altíssimos níveis de desconfiança nos partidos, instituições e classe política não permite atribuir o ar de novidade ao fenômeno maior que descredita e criminaliza a política tradicional.
Desde lá, forças armadas, televisão e igreja apareciam como atores que desfrutam de maior prestígio e confiança entre a população no continente. É sabido que a estrutura monopolizada dos meios de comunicação brasileira possui participação considerável nesta construção negativa da política em favor de seus próprios interesses políticos e econômicos.
Em meio a um emaranhado de indivíduos, movimentos e organizações, a heterogeneidade da sociedade civil que foi às ruas no 15/03, com discursos confusos, contraditórios e surreais em termos propositivos, indicou um alinhamento à direita do espectro político brasileiro. Pode-se afirmar com certa tranquilidade que tais protestos reabilitaram a importância da noção de ideologia e de hegemonia para o estudo da sociedade civil.
E, ainda que os mesmos não tenham sido homogêneos em seu descompromisso com a democracia – em um sentido amplo que pressuponha igualdade como base –, pesquisas realizadas in loco indicaram que o perfil dos manifestantes foi pouco representativo da diversidade da população brasileira em seus quase duzentos milhões de habitantes.
A ambígua e complexa relação com o autoritarismo e a violência de determinados grupos e indivíduos de manifestantes vestidos na maioria de verde e amarelo expôs a fragilidade e a juventude da nossa democracia, anulando ao mesmo tempo a potencialidade democrática da pauta acerca do problema da corrupção e do governo – dirigidas a um único partido político e a uma única administração.
A misoginia, intolerância, ofensa, raiva, truculência e violência presentes em muitos discursos, cartazes, gritos de guerra e ações afastaram e anularam a classificação de pacífico e democrático o conjunto das manifestações. Por mais que certa empresa de comunicação dissesse repetida e reiteradamente justamente o contrário, talvez somente as pessoas que não puderam sair às ruas em determinados horários ou foram hostilizadas no dia sentiram na pele o peso dessa afirmação.
Impressionou aos observadores não a manifestação “da direita que não tem medo de dizer seu nome”, como vibrou um manifestante na avenida Paulista, ou o grito de guerra “a nossa bandeira jamais será vermelha”, chamado por uma senhora habitante dos idos anos sessenta, ao que parece. Impressionou a defesa da exclusão, o saudosismo da desigualdade e o elogio à violência de forma pública e explícita.
De faixas que pediram intervenção militar a selfies tirados com tropas de repressão e choque, debochou-se da democracia e dos direitos humanos no Brasil. E, por também abrigar pautas inconstitucionais, ilegítimas, ilegais e extremistas, 15 de março foi um dia profundamente violento – verbal, visual e simbolicamente. Essa parte contaminou o todo, afastando seu significado maior de um senso voltado ao alargamento da cidadania. Multidões nas ruas nem sempre estão conectadas ou mobilizadas por ideias democráticas e justas.
* Luciana Ballestrin é cientista política e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas.
Referências:
- ARMONY, Ariel. The Dubious Link: civic engagement and democratization. Califórnia: Stanford, 2004.
- POWER, Timothy; JAMISON, Giselle. Desconfiança política na América Latina. Opinião Pública, Campinas, v.11, n. 1, 2005.
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