terça-feira, 28 de abril de 2015

Ensaio sobre a exceção: PT fora da regra

Por Tarso Genro, no site Carta Maior:

“Conheço os homens, são todos culpados, só que
não está escrito no livro do destino que cada um
deles venha comer aqui o seu pão.”
ANDRITCH, Ivo. Conto no livro “O Pátio Maldito e Quatro Contos”.


1. Exceção e conjuntura

Está em andamento no Brasil um estado de exceção “não declarado” que, se é verdade que hoje é estimulado pelas contingências da luta política, pode se tornar permanente e fazer brotar uma nova leitura dos princípios constitucionais da presunção da inocência e do princípio da igualdade perante a lei. Mais tarde ele poderá se voltar inclusive contra os que hoje festejam o seu exercício, pois a exceção cria no Estado nichos de poder irregular que adquirem vida própria e se projetam muito além dos desejos oportunistas do presente.

O Estado de Exceção e mesmo a "exceção", sem declaração fundada em norma, é viabilizada pela flexibilidade da ordem constitucional democrática. Tanto a exceção declarada, como a não declarada, operam sobre as instituições do Estado, moldando-as para se moverem fora da normalidade na aplicação das regras legais. Embora a exceção seja um componente residual no funcionamento diário de qualquer Estado, ela pode se tornar um grave sintoma, quando “fura” as margens de arbítrio, que a interpretação concede aos Juízes e aos demais agentes da administração pública.

Na exceção, os campos do saber se confundem de tal forma que, se for tratada só juridicamente ou só por critérios políticos puros, ela não se apresentará por inteiro à compreensão comum. Talvez a "exceção" seja a categoria do "Direito" mais diretamente "política", e a categoria da "política" mais diretamente jurídica, pois nas democracias estabilizadas as margens da exceção “não declarada” são mais estreitas, enquanto as margens da exceção que “é declarada”, conforme a Constituição, são mais legítimas. Em ambos os casos é a instância da política que as acelera ou as retarda.

Nem toda a “flexão”, porém, é “exceção”. Quando há uma "flexão" na ordem jurídica, para estabelecer um novo vínculo entre a vontade do aplicador da norma e a força adquirida pela sua autoridade (e ela se torna aplicável de forma não discriminatória) o Estado de Direito pode avançar para a materialização das suas normas programáticas, permitindo que os princípios da constituição desçam à vida comum.

A aceitação das “políticas de cotas” pelo STF e a “demarcação contínua” das terras indígenas são exemplos desta possibilidade. Em ambos os casos ocorreram flexões da ordem jurídica. Embora não constituíssem “exceção”, releram o texto constitucional e deram vitalidade a princípios. Quando esta "flexão", porém - ainda que feita de maneira pontual - tende a permitir decisões onde setores do Judiciário, Polícia Judiciária e Ministério Público (monitorados externamente pela mídia) formam um conjunto repressivo-sancionatório informal - privilegiando uma “parte” no confronto político -, temos o início de uma "exceção não declarada".

A manutenção da prisão do grupo de empresários apontados como envolvidos nos casos de corrupção da Petrobrás, hoje já configura uma chantagem moral do Sistema de Justiça, destinada a forçá-los a delações premiadas. O inquisitório é baseado em confissões negociadas, com procedimentos que jamais foram aceitos em processos semelhantes, combinados com um ativismo judicial “sui generis”.

As manifestações públicas, como as que são feitas pelo Juiz Moro, que amplia ilegalmente a sua jurisdição para todo o país e, conscientemente, orienta depoimentos para que os processos não se desloquem para fora da sua competência; os reptos das autoridades da Polícia Judiciária, a respeito da conduta de indiciados, denunciados, interrogados ou simplesmente suspeitos, num verdadeiro adiantamento da jurisdição punitiva (pela execração pública), que não respeita a presunção da inocência e fulmina o princípio da igualdade perante o devido processo legal; a manifestação pública do Magistrado, adiantando a convicção de culpa dos investigados(as) (como no caso da cunhada de Vaccari), indicam um acelerado processo de desmontagem da legalidade penal, à beira da formação de um República do Galeão “pós-moderna”: um nicho de poder “excepcional”, que tenta comandar a política e o Direito, seleciona os seus alvos segundo a sua compreensão do justo e do injusto, fora das leis, e o faz com pretensão de legitimidade, já como corregedores da Democracia, auto-investidos sem licença do Parlamento.

2. Teoria jurídica da exceção.

A incriminação em grupo - com indeterminação coletiva de culpados - que é separado da sociedade civil, tem precedentes na história jurídica e políticado país somente contra os comunistas na época da Guerra Fria, em momentos de exceção, ali também configurados como atos de poder sem apoio de normas constitucionais legítimas.

Carl Schmitt argumenta que, para o Direito poder existir, o soberano deve poder "suspender" o Direito, independentemente de norma que lhe autorize, porque ele - Soberano - é a fonte de toda legitimidade, seja em tempos de funcionalidade normal da ordem, seja em tempos excepcionais. Para Schmitt, a regra existe porque se sustenta no poder de fazer a exceção e só a existência e o uso da exceção, garantem a subsistência da normalidade. Schmitt, à época falava do Soberano como o Chefe de Estado Executivo - Hitler -, no seu famoso "O Führer comanda o Direito". É inaceitável que o Poder Judiciário brasileiro tenha dado curso a um processo semelhante, já altamente politizado.

Nestes casos ocorre o que Schmitt argui como a “essência” da relação do Direito com o Estado, pois para ele a “essência” do direito, apresenta-se por inteiro como capacidade de “promover a exceção”. Torna-se, a exceção, segundo ele, alheia à Constituição formal, mas fiadora da sua existência. Isso ocorre, segundo Schmitt, porque a autoridade do Soberano não precisa do Direito para criar o Direito: ou seja, para criar a própria "exceção". Basta poder fazer o direito: ter a capacidade prática de decidir. Mandar.

Instituída a "exceção" - declarada abertamente ou infiltrada de fato na ordem democrática - ela estabiliza novas formas de interpretação das leis, modifica o comportamento técnico das instituições existentes e se torna, portanto, direito eficaz. Assim, ou ela - a exceção “não declarada” - faz o Estado avançar para a ditadura plena, livre de qualquer trava jurídica democrática, ou é revogada pela força normativa da constituição democrática. Ou, ainda, é desconstituída pelo povo - o Soberano na democracia moderna - pela reforma ou pela revolução.

Diferentemente de situações precedentes, a operacionalização da exceção conta hoje com todo um aparato midiático, oligopolizado e altamente centralizado em termos políticos, externo formalmente ao Estado. Este aparato divulga, sanciona, e, ao mesmo tempo, acompanha e integra a “luta” contra a corrupção: "adianta" sentenças e forma juízos na subjetividade popular. Cria um maior ou menor “clamor público” , segundo quem são os investigados ou os preservados. Promovem Magistrados, Procuradores e Policiais, a heróis ou vilões, a partir da sua consciência específica do que é justo. Combinam o ataque judicial-midiático, cada vez mais voltado para grupos indeterminados de pessoas, com pretensões punitivas cada vez menores, no processo, e cada vez maiores no plano da política.

Neste contexto, os Magistrados adiantam opiniões sobre a conduta de indiciados que já são verdadeiras sentenças; Procuradores tornam públicas provas "conclusivas", que são apelos públicos à condenação; Policiais emitem opiniões sobre a veracidade ou não de depoimentos. E já aparecem "quedas de braço", públicas, entre Policiais Federais e Procuradoria, que começam a minar o andamento dos processos. Neles, o inquisitório se torna cada vez menos individualizado e mais direcionado a partidos, grupos empresariais e sindicais, empresas públicas ou privadas, diluindo a pretensão de punição penal no Estado de Direito, que deve incidir sobre indivíduos com responsabilidade penal, mas aumentando a performance política dos inquisidores.

3. Midiatização penal e democracia.

A "midiatização penal" (Zaffaroni) cria Juízes e Procuradores de "primeira" e de "segunda categoria", na opinião pública. Os de “primeira categoria” são aqueles que cumprem o "script" ideologizado dos comentaristas políticos, que entendem muito de política (pela direita) e nada de Direito (pela Constituição). Como consequência, ao invés do processo penal ser, também, um processo educativo, transforma-se em instrumento de luta política vulgar: "Sonegação não é crime, é legítima defesa!", já defendem manifestantes da extrema direita nas ruas.

Robert Alexy salientou que “o juiz ao decidir, não pode se escorar só no direito posto”. Deve selecionar elementos de convicção na moral, para cada processo exemplar tornar-se momento de validação do Direito. É fundamental - para a análise da “exceção não declarada” - verificar como esta convicção moral cria força para dar materialidade jurídica e política à exceção, vinculando-a ou não aos princípios da soberania democrática.

Este vínculo é um vínculo de vontade - deformada ou não pelo arbítrio - que se impõe como autoridade. Esta vontade escora-se, ou não, no direito existente. Mas, como “exceção”, deve ter o poder de incluir - seja na ordem democrática, seja numa ordem não democrática - comandos, através de decisões que alteram o sentido das normas. É o que ocorre hoje com a revogação concreta do princípio da presunção da inocência e com o uso da delação premiada, que gera profundas desigualdades dos futuros reus perante a lei.

4. O PT na exceção.

Não se tire a conclusão que pessoas ligadas ou não ao PT, por estarem sendo alvo de persecução criminal, é que atestam a existência da exceção “não declarada”. O que mostra a sua existência é a seletividade e quase exclusividade da demonização da política e dos partidos, em maior ou menor grau.

Embora a exceção tenha como alvo central um partido de esquerda, cujos erros criaram a condições políticas que incentivaram estes movimentos, na verdade este processo visa fins políticos mais amplos, que apenas incidentalmente se vinculam à corrupção, como ocorreu contra Vargas, Juscelino, Jango. O que se disputa é futuro democrático do país, mais aberto, social e plebeu, ou mais elitizado, fechado e elitista. Não é surpreendente o desgosto dos velhos privilégios, através dos seus agentes políticos, na mídia e fora dela, como correntes avessas a que a democracia se torne mais “social” e menos elitista.

Vários quadros do PT tem o que responder perante a Justiça e devem responder, para a própria sanidade política do Partido e para a sua futura reconstrução. As discriminações ora feitas, porém, têm outro efeito. Considerando que a corrupção – esta “velha Senhora” - está em todas as classes e em todas as instituições - em partes maiores ou menores - o que está se promovendo em função do processo discriminante contra o PT, é a manutenção da corrupção sistêmica, que está integrada no âmago da acumulação do capital e por ele é estimulada cotidianamente.

Isso pode ser comprovado pelas informações que circulam com discrição na própria mídia, que mostram como alguns setores hegemônicos do empresariado aparelham o Estado, não só acordando com partes de vários partidos políticos e partes da alta burocracia estatal, para proteger os seus negócios, mas também para se fortalecerem nos momentos de crise.

O que preocupa, portanto, não é principalmente a "extinção", ou não, do PT, que está na mira da direita fascista do país e dos seus aliados liberal-democráticos, todos eles muito impolutos, certamente, e demasiadamente honestos. Independentemente do tamanho menor, ou maior, que o PT saia deste ciclo, a esquerda voltará a se fortalecer. Ela corresponde a um anseio de igualdade e emancipação humana, que nem o nazismo, ou o stalinismo, com a sua burocracia policial gigantesca, ou ainda as ditaduras latino-americanas conseguiram eliminar.

O que preocupa é que a "exceção não declarada" se projeta como uma metástase fantástica nos processos judiciais altamente politizados, bloqueando o direito de defesa e também fortalecendo a corrupção sistêmica. A oportunidade que se abre é de combate à corrupção, não só presente na política e nos partidos –como sempre ocorreu- mas de um combate frontal à corrupção do sistema político como um todo, que transforma a política num alongamento da força do dinheiro.

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