Por Antonio Luiz M. C. Costa, na revista CartaCapital:
Em 12 de abril, 400 migrantes africanos e árabes morreram entre a Líbia e a Itália em um naufrágio de um barco superlotado. Por si só, uma tragédia chocante, mas relegada a cantos de páginas e alguns segundos do noticiário da tevê, em contraste com a cobertura exaustiva da morte de 150 europeus em um desastre aéreo, para não falar dos 12 de um atentado.
Cinco dias depois, The Sun, o mais popular jornal britânico, destacou com o qualificativo de “brilhante” uma coluna de sua estrela Katie Hopkins – uma Sheherazade de luxo –, “tão odiosa que faria Hitler hesitar”, nas palavras de um colega do The Independent. “Barcos de resgate? Eu usaria canhoneiras para parar os imigrantes”, era o título, e a partir daí piora. “Não, eu não ligo. Mostrem-me fotos de caixões, mostrem-me corpos flutuando na água, toquem violinos e me mostrem pessoas magras e tristes. Eu ainda não ligo. Não precisamos de outro projeto de resgate. A agora defunta Mare Nostrum, de 7 milhões de libras por mês foi paga em parte por contribuintes britânicos. O que precisamos é de canhoneiras para enviar esses barcos de volta ao seu país. Algumas de nossas cidades são chagas purulentas, infestadas de enxames de imigrantes e refugiados que gastam dinheiro de benefícios sociais como se fossem notas de Banco Imobiliário. Não se enganem, esses migrantes são como baratas. Parecem fotos de fome da Etiópia em 1984, mas foram feitos para sobreviver a uma bomba nuclear. São sobreviventes. Uma vez que as canhoneiras os tenham forçado a voltar, os barcos precisam ser confiscados e queimados.”
A maioria dos britânicos poderia ter dado de ombros a mais um exercício de retórica xenófoba na reta final de uma campanha eleitoral na qual praticamente todos os partidos relevantes prometem combater a imigração. Da centro-esquerda trabalhista ou verde à ultradireita do UKIP e SNP, há apenas uma escalada no tom ou na ênfase. Aconteceu, porém, de o pior desastre da história do Mediterrâneo em tempo de paz ocorrer no domingo 19. De 850 imigrantes de um pesqueiro superlotado, apenas 24 foram resgatados. Desta vez, o pequeno movimento de protesto iniciado nas redes sociais tomou impulso e a Scotland Yard recebeu uma denúncia oficial da Sociedade de Advogados Negros contra Hopkins e seu editor por incitação ao ódio racial, assinalando que a expressão “baratas” foi usada para qualificar seres humanos pela última vez no contexto do genocídio dos tútsis de Ruanda.
Uma petição na internet pela demissão da colunista chegou a mais de 275 mil assinaturas e outra pela retomada do resgate de imigrantes no Mediterrâneo, iniciada em outubro por um refugiado da Eritreia e até então com poucos milhares de firmas, explodiu para mais de 300 mil em poucos dias. Mas isso não significa, ainda, um ponto de inflexão da opinião pública nas políticas europeias. Na verdade, o texto de Hopkins apenas acrescentou insultos racistas ao discurso menos estridente, mas igualmente assassino, dos líderes europeus, que há seis meses alegaram o “risco moral” de incentivar imigrantes a tentar atravessar o mar para cancelar o apoio à operação de salvamento italiana Mare Nostrum, que de outubro de 2013 a outubro de 2014 salvou 150 mil migrantes e prendeu 330 traficantes e substituí-la por uma simples patrulha das costas italianas. “A Europa nos dita como devemos pescar peixe-espada, mas não nos ajuda a salvar crianças no Mediterrâneo”, queixou-se o premier italiano, Matteo Renzi.
Os números impressionam. Os mortos no Mediterrâneo foram 123 em 2010, 1,5 mil em 2011, 500 em 2012, 600 em 2013, 3,4 mil em 2014 e 1,75 mil nos primeiros 111 dias de 2015 (até 21 de abril), ante 56 no mesmo período de 2014. A ONU receia que as mortes alcancem 30 mil neste ano, se não houver uma mudança de política. Mas, a julgar pela primeira reação da mídia e dos políticos europeus, não haverá mudança. Não para melhor, pelo menos.
Após a tragédia, o partido Forza Italia, de Silvio Berlusconi, atacou o governo Renzi espalhando cartazes com a foto de um barco lotado de refugiados e a mensagem: “Férias na Itália. 35 euros por dia para alojamento, alimentação, crédito para chamadas e cigarros”. A manchete de il Giornale, do mesmo patrão, foi “Atirar nos contrabandistas. Eis a solução”. Em entrevista à BBC, Nigel Farage, líder do partido eurocético britânico UKIP, propôs “colocar os imigrantes em barcos e enviá-los de volta para de onde vieram”, salvo por uma cota de “uns poucos milhares” para refugiados cristãos.
São representantes de partidos de direita em campanha e o pensamento supostamente sóbrio da Comissão Europeia não é diferente. Na terça-feira 21, após uma reunião de emergência sobre a crise na imigração, informou estar em consideração uma missão militar “contra o tráfico de pessoas” na Líbia para destruir as embarcações, como querem Hopkins e Berlusconi, inspirada nas táticas de combate à pirataria no Índico.
Desta vez, vale assinalar, Berlim mostrou-se mais lúcida que Bruxelas. No dia seguinte, o Ministério das Relações Exteriores alemão criticou a proposta e lembrou que a situação no Mediterrâneo é completamente diferente, tanto porque os barcos usados para o transporte de migrantes são os mesmos usados na pesca e destruí-los significaria privar milhares de seus meios de vida (e transformá-los em migrantes em potencial, diga-se de passagem), tanto porque se lida com uma Líbia em vias de desintegração como país. Angela Merkel declarou que “as imagens de pessoas afogadas são incompatíveis com os valores da União Europeia” e a prioridade deve ser salvar vidas. Seus ministros apoiam dobrar ou triplicar os recursos para a operação naval na Itália, de modo a retornar ao nível da extinta Mare Nostrum.
Merkel tem como oposição mais preocupante os movimentos xenófobos e eurocéticos e na qualidade de principal líder europeia a ter recusado apoio à malfadada intervenção da Otan, está mais à vontade para lembrar ao Reino Unido, França e Itália como parte do problema foi causada por eles mesmos ao apoiarem os rebeldes contra Muammar Kaddafi (e assim obter concessões petrolíferas mais vantajosas) e depois abandonar o país às milícias que o esfacelaram e abriram caminho ao caos e ao terror do Estado Islâmico. Grande parte do arsenal do antigo regime foi parar nas mãos de fundamentalistas de toda a África, aumentou o número de desesperados em fuga das guerras civis no continente e deixou de haver autoridade estatal capaz de conter o tráfico nas costas ou fronteiras da Líbia.
Pode-se acrescentar que essa foi apenas a última de uma longa história de desastrosas intervenções ocidentais na África e no mundo árabe, das quais a situação atual é a consequência. Começa há mais de 500 anos com a criação do tráfico triangular de escravos com as Américas e a consequente divisão e desorganização das sociedades africanas, continua com a pilhagem colonial de países árabes e africanos nos séculos XIX e XX, a continuação do controle de boa parte de suas economias e política após as independências concedidas com relutância a partir dos anos 1960, a imposição pelo FMI e Banco Mundial de abertura comercial e privatizações em massa aos frágeis Estados africanos dos anos 1990 para baixar preços de matérias-primas e abrir oportunidades às transnacionais europeias (o que agravou o desemprego e o êxodo rural, enfraqueceu e dividiu governos e abriu caminho a guerras civis), à invasão anglo-americana no Iraque e o apoio aos rebeldes na Guerra Civil da Síria, que deram origem ao Estado Islâmico e forçaram milhões a buscar asilo no exterior. Os sírios constituem hoje a maior população mundial de refugiados, seguidos pelos afegãos.
Outra causa importante do movimento de refugiados é a mudança climática, causada principalmente pela emissão de gás carbônico por indústrias e transportes a serviço do consumo dos países ricos. As regiões mais afetadas pelo agravamento das secas e inundações incluem o noroeste da África em torno do Saara e Sahel (semiárido africano ao sul do deserto) e formam um “arco de tensão” que se estende do Marrocos à Nigéria e está por trás de movimentos como o dos fundamentalistas do Azawad e do Boko Haram.
Merecem uma nota de rodapé as décadas de apoio à política de ocupação e discriminação de Israel. Além da expulsão de palestinos transformados em refugiados e da redução dos restantes a virtuais prisioneiros sem perspectivas, Israel prende e expulsa sistematicamente quem pede asilo. Pelo menos três dos 30 cristãos decapitados pelo Estado Islâmico em vídeo divulgado em 20 de abril eram eritreus fugidos da escravidão e presos em Israel ao pedir asilo. Expulsos de lá por não serem judeus e rejeitados por outros países africanos, tentaram embarcar para a Europa na Líbia e acabaram mortos por não serem muçulmanos.
Apesar de políticas ocidentais serem responsáveis pela maior parte da miséria e marginalização que forçaram cerca de 50 milhões a deixar suas casas, mais de 80% deles, segundo a ONU, estão em suas próprias pátrias ou em outros países pobres, como Paquistão e Irã. A própria foto de arquivo usada para compor o infame pôster do partido de Berlusconi retrata, na realidade, refugiados da perseguição a muçulmanos em Mianmar (Birmânia) ao serem recebidos na Indonésia.
Pouco mais de 10% dos deslocados chegam à Europa, sonho ilusório de muitos graças à imagem de prosperidade e humanismo deixada por décadas de educação colonial. Para isso, muitos pagam a partir de 500 dólares a traficantes inescrupulosos por lugares em barcos quase tão superlotados e mortais quanto os navios negreiros do passado. Cerca de 6% dos migrantes vindos pelo Mediterrâneo são menores desacompanhados, abandonados por causa da miséria ou sobreviventes de perseguições étnicas e religiosas que mataram seus pais. Enfrentam roubo, tortura e risco de escravização na viagem para a Europa. As meninas frequentemente atendem a supostas ofertas de emprego como cabeleireira, balconista e babá para acabarem como prostitutas. Mesmo quando sabem ser esse o seu destino, não fazem ideia das condições de exploração às quais serão submetidas.
Entretanto, por mais que sejam identificados e punidos os aproveitadores das misérias da África e do mundo árabe, isso não suprime as tragédias na origem da migração. Deixar refugiados morrerem pela fome ou violência na outra margem do Mediterrâneo não é mais humano do que deixá-los se afogarem no mar. “Desincentivar” a migração desistindo de socorrê-los ou destruindo barcos é como abolir hospitais e ambulâncias para convencer os cidadãos a não ficarem doentes. O mundo está em meio a uma crise econômica, social e ambiental da qual o Ocidente tem a maior parte da responsabilidade histórica. Se não quer receber as vítimas, seu dever moral é socorrer os países devastados e recolocá-los no caminho do desenvolvimento, o que não sairá mais barato. Por difícil que seja reafirmar isso a uma Europa cada vez mais desigual e comprometida com os interesses de suas elites, incapaz de mostrar solidariedade sequer para com o berço helênico de sua civilização, é racionalmente insustentável a hipocrisia de defender a liberdade global de comércio e de capitais sem defender igualmente a liberdade global de movimento de pessoas e trabalhadores.
Em 12 de abril, 400 migrantes africanos e árabes morreram entre a Líbia e a Itália em um naufrágio de um barco superlotado. Por si só, uma tragédia chocante, mas relegada a cantos de páginas e alguns segundos do noticiário da tevê, em contraste com a cobertura exaustiva da morte de 150 europeus em um desastre aéreo, para não falar dos 12 de um atentado.
Cinco dias depois, The Sun, o mais popular jornal britânico, destacou com o qualificativo de “brilhante” uma coluna de sua estrela Katie Hopkins – uma Sheherazade de luxo –, “tão odiosa que faria Hitler hesitar”, nas palavras de um colega do The Independent. “Barcos de resgate? Eu usaria canhoneiras para parar os imigrantes”, era o título, e a partir daí piora. “Não, eu não ligo. Mostrem-me fotos de caixões, mostrem-me corpos flutuando na água, toquem violinos e me mostrem pessoas magras e tristes. Eu ainda não ligo. Não precisamos de outro projeto de resgate. A agora defunta Mare Nostrum, de 7 milhões de libras por mês foi paga em parte por contribuintes britânicos. O que precisamos é de canhoneiras para enviar esses barcos de volta ao seu país. Algumas de nossas cidades são chagas purulentas, infestadas de enxames de imigrantes e refugiados que gastam dinheiro de benefícios sociais como se fossem notas de Banco Imobiliário. Não se enganem, esses migrantes são como baratas. Parecem fotos de fome da Etiópia em 1984, mas foram feitos para sobreviver a uma bomba nuclear. São sobreviventes. Uma vez que as canhoneiras os tenham forçado a voltar, os barcos precisam ser confiscados e queimados.”
A maioria dos britânicos poderia ter dado de ombros a mais um exercício de retórica xenófoba na reta final de uma campanha eleitoral na qual praticamente todos os partidos relevantes prometem combater a imigração. Da centro-esquerda trabalhista ou verde à ultradireita do UKIP e SNP, há apenas uma escalada no tom ou na ênfase. Aconteceu, porém, de o pior desastre da história do Mediterrâneo em tempo de paz ocorrer no domingo 19. De 850 imigrantes de um pesqueiro superlotado, apenas 24 foram resgatados. Desta vez, o pequeno movimento de protesto iniciado nas redes sociais tomou impulso e a Scotland Yard recebeu uma denúncia oficial da Sociedade de Advogados Negros contra Hopkins e seu editor por incitação ao ódio racial, assinalando que a expressão “baratas” foi usada para qualificar seres humanos pela última vez no contexto do genocídio dos tútsis de Ruanda.
Uma petição na internet pela demissão da colunista chegou a mais de 275 mil assinaturas e outra pela retomada do resgate de imigrantes no Mediterrâneo, iniciada em outubro por um refugiado da Eritreia e até então com poucos milhares de firmas, explodiu para mais de 300 mil em poucos dias. Mas isso não significa, ainda, um ponto de inflexão da opinião pública nas políticas europeias. Na verdade, o texto de Hopkins apenas acrescentou insultos racistas ao discurso menos estridente, mas igualmente assassino, dos líderes europeus, que há seis meses alegaram o “risco moral” de incentivar imigrantes a tentar atravessar o mar para cancelar o apoio à operação de salvamento italiana Mare Nostrum, que de outubro de 2013 a outubro de 2014 salvou 150 mil migrantes e prendeu 330 traficantes e substituí-la por uma simples patrulha das costas italianas. “A Europa nos dita como devemos pescar peixe-espada, mas não nos ajuda a salvar crianças no Mediterrâneo”, queixou-se o premier italiano, Matteo Renzi.
Os números impressionam. Os mortos no Mediterrâneo foram 123 em 2010, 1,5 mil em 2011, 500 em 2012, 600 em 2013, 3,4 mil em 2014 e 1,75 mil nos primeiros 111 dias de 2015 (até 21 de abril), ante 56 no mesmo período de 2014. A ONU receia que as mortes alcancem 30 mil neste ano, se não houver uma mudança de política. Mas, a julgar pela primeira reação da mídia e dos políticos europeus, não haverá mudança. Não para melhor, pelo menos.
Após a tragédia, o partido Forza Italia, de Silvio Berlusconi, atacou o governo Renzi espalhando cartazes com a foto de um barco lotado de refugiados e a mensagem: “Férias na Itália. 35 euros por dia para alojamento, alimentação, crédito para chamadas e cigarros”. A manchete de il Giornale, do mesmo patrão, foi “Atirar nos contrabandistas. Eis a solução”. Em entrevista à BBC, Nigel Farage, líder do partido eurocético britânico UKIP, propôs “colocar os imigrantes em barcos e enviá-los de volta para de onde vieram”, salvo por uma cota de “uns poucos milhares” para refugiados cristãos.
São representantes de partidos de direita em campanha e o pensamento supostamente sóbrio da Comissão Europeia não é diferente. Na terça-feira 21, após uma reunião de emergência sobre a crise na imigração, informou estar em consideração uma missão militar “contra o tráfico de pessoas” na Líbia para destruir as embarcações, como querem Hopkins e Berlusconi, inspirada nas táticas de combate à pirataria no Índico.
Desta vez, vale assinalar, Berlim mostrou-se mais lúcida que Bruxelas. No dia seguinte, o Ministério das Relações Exteriores alemão criticou a proposta e lembrou que a situação no Mediterrâneo é completamente diferente, tanto porque os barcos usados para o transporte de migrantes são os mesmos usados na pesca e destruí-los significaria privar milhares de seus meios de vida (e transformá-los em migrantes em potencial, diga-se de passagem), tanto porque se lida com uma Líbia em vias de desintegração como país. Angela Merkel declarou que “as imagens de pessoas afogadas são incompatíveis com os valores da União Europeia” e a prioridade deve ser salvar vidas. Seus ministros apoiam dobrar ou triplicar os recursos para a operação naval na Itália, de modo a retornar ao nível da extinta Mare Nostrum.
Merkel tem como oposição mais preocupante os movimentos xenófobos e eurocéticos e na qualidade de principal líder europeia a ter recusado apoio à malfadada intervenção da Otan, está mais à vontade para lembrar ao Reino Unido, França e Itália como parte do problema foi causada por eles mesmos ao apoiarem os rebeldes contra Muammar Kaddafi (e assim obter concessões petrolíferas mais vantajosas) e depois abandonar o país às milícias que o esfacelaram e abriram caminho ao caos e ao terror do Estado Islâmico. Grande parte do arsenal do antigo regime foi parar nas mãos de fundamentalistas de toda a África, aumentou o número de desesperados em fuga das guerras civis no continente e deixou de haver autoridade estatal capaz de conter o tráfico nas costas ou fronteiras da Líbia.
Pode-se acrescentar que essa foi apenas a última de uma longa história de desastrosas intervenções ocidentais na África e no mundo árabe, das quais a situação atual é a consequência. Começa há mais de 500 anos com a criação do tráfico triangular de escravos com as Américas e a consequente divisão e desorganização das sociedades africanas, continua com a pilhagem colonial de países árabes e africanos nos séculos XIX e XX, a continuação do controle de boa parte de suas economias e política após as independências concedidas com relutância a partir dos anos 1960, a imposição pelo FMI e Banco Mundial de abertura comercial e privatizações em massa aos frágeis Estados africanos dos anos 1990 para baixar preços de matérias-primas e abrir oportunidades às transnacionais europeias (o que agravou o desemprego e o êxodo rural, enfraqueceu e dividiu governos e abriu caminho a guerras civis), à invasão anglo-americana no Iraque e o apoio aos rebeldes na Guerra Civil da Síria, que deram origem ao Estado Islâmico e forçaram milhões a buscar asilo no exterior. Os sírios constituem hoje a maior população mundial de refugiados, seguidos pelos afegãos.
Outra causa importante do movimento de refugiados é a mudança climática, causada principalmente pela emissão de gás carbônico por indústrias e transportes a serviço do consumo dos países ricos. As regiões mais afetadas pelo agravamento das secas e inundações incluem o noroeste da África em torno do Saara e Sahel (semiárido africano ao sul do deserto) e formam um “arco de tensão” que se estende do Marrocos à Nigéria e está por trás de movimentos como o dos fundamentalistas do Azawad e do Boko Haram.
Merecem uma nota de rodapé as décadas de apoio à política de ocupação e discriminação de Israel. Além da expulsão de palestinos transformados em refugiados e da redução dos restantes a virtuais prisioneiros sem perspectivas, Israel prende e expulsa sistematicamente quem pede asilo. Pelo menos três dos 30 cristãos decapitados pelo Estado Islâmico em vídeo divulgado em 20 de abril eram eritreus fugidos da escravidão e presos em Israel ao pedir asilo. Expulsos de lá por não serem judeus e rejeitados por outros países africanos, tentaram embarcar para a Europa na Líbia e acabaram mortos por não serem muçulmanos.
Apesar de políticas ocidentais serem responsáveis pela maior parte da miséria e marginalização que forçaram cerca de 50 milhões a deixar suas casas, mais de 80% deles, segundo a ONU, estão em suas próprias pátrias ou em outros países pobres, como Paquistão e Irã. A própria foto de arquivo usada para compor o infame pôster do partido de Berlusconi retrata, na realidade, refugiados da perseguição a muçulmanos em Mianmar (Birmânia) ao serem recebidos na Indonésia.
Pouco mais de 10% dos deslocados chegam à Europa, sonho ilusório de muitos graças à imagem de prosperidade e humanismo deixada por décadas de educação colonial. Para isso, muitos pagam a partir de 500 dólares a traficantes inescrupulosos por lugares em barcos quase tão superlotados e mortais quanto os navios negreiros do passado. Cerca de 6% dos migrantes vindos pelo Mediterrâneo são menores desacompanhados, abandonados por causa da miséria ou sobreviventes de perseguições étnicas e religiosas que mataram seus pais. Enfrentam roubo, tortura e risco de escravização na viagem para a Europa. As meninas frequentemente atendem a supostas ofertas de emprego como cabeleireira, balconista e babá para acabarem como prostitutas. Mesmo quando sabem ser esse o seu destino, não fazem ideia das condições de exploração às quais serão submetidas.
Entretanto, por mais que sejam identificados e punidos os aproveitadores das misérias da África e do mundo árabe, isso não suprime as tragédias na origem da migração. Deixar refugiados morrerem pela fome ou violência na outra margem do Mediterrâneo não é mais humano do que deixá-los se afogarem no mar. “Desincentivar” a migração desistindo de socorrê-los ou destruindo barcos é como abolir hospitais e ambulâncias para convencer os cidadãos a não ficarem doentes. O mundo está em meio a uma crise econômica, social e ambiental da qual o Ocidente tem a maior parte da responsabilidade histórica. Se não quer receber as vítimas, seu dever moral é socorrer os países devastados e recolocá-los no caminho do desenvolvimento, o que não sairá mais barato. Por difícil que seja reafirmar isso a uma Europa cada vez mais desigual e comprometida com os interesses de suas elites, incapaz de mostrar solidariedade sequer para com o berço helênico de sua civilização, é racionalmente insustentável a hipocrisia de defender a liberdade global de comércio e de capitais sem defender igualmente a liberdade global de movimento de pessoas e trabalhadores.
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