Por Valia Kaimaki, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Os Estados Unidos, leilões lançados em novembro de 2014 e destinados a atribuir cerca de 1,5 mil frequências do espectro hertziano atingiram US$ 45 bilhões [1]. Nada comparável à Grécia. Ali as redes de televisão e de rádio privadas dispõem de licenças ditas “provisórias” desde 1989. E não pagaram um único centavo ao Estado.
Há alguns anos, o jornalista Paschos Mandravelis resumia assim a situação: o funcionamento dos meios de comunicação gregos não se inscreve no quadro de um mercado da informação, e sim no de um “mercado da política” [2]. A proximidade entre esses dois mundos surgiu, aliás, em plena luz do dia, em novembro de 2011, quando o diretor do jornal diárioTa Néa, Pantelis Kapsis, deixou o cargo para se juntar ao governo de Lucas Papademos, um ex-banqueiro. Como ressaltou na época o jornalista Nikos Smyrnaios, a família Kapsis nem por isso desaparecia da imprensa: Manolis, o irmão de Pantelis, “atua[va] todos os dias no jornal televisivo da Mega Channel, onde, como comentador político, apoia[va] esse mesmo governo” [3].
Hoje, uma população de cerca de 11 milhões de habitantes se vê diante de não menos de trinta diários e semanários nacionais, uma dezena de jornais esportivos diários, seis redes de televisão privadas (que se somam a duas redes nacionais) e 150 redes locais, sem contar cerca de mil estações de rádio. Obviamente, todos esses órgãos de imprensa não podem coexistir de maneira autônoma. E muito menos o mercado publicitário, que garante uma parte dos recursos e segue a curva da produção de riquezas do país, em queda livre.
A verdade é que a imprensa está agonizando. Um dos principais jornais diários – o Ta Néa, ligado ao Partido Socialista Grego (Pasok) – vende somente 18 mil exemplares por dia. Outro jornal histórico, o Eletherotypia, desapareceu no início da crise. A difusão dos semanários caiu de mais de 1,5 milhão de exemplares para cerca de 600 mil. A maior parte das empresas de imprensa escrita é deficitária, e a maioria das vendas dos diários depende da oferta promocional da semana, como cupons de desconto.
Nessas condições, esses proprietários – recrutados entre as grandes fortunas do país, sobretudo os empresários da indústria naval, que não pagam impostos – não esperam que seus investimentos lhes proporcionem lucros. Possuir um grupo de imprensa lhes oferece, em contrapartida, uma influência política suscetível de lhes permitir conquistar mercados públicos. O grupo Pegasus, por exemplo, que edita os diários Ethnos e Proto Thema, pertence à família Bobolas, especializada no setor de construção e em obras públicas, e principal beneficiária dos contratos públicos de construção nos últimos vinte anos.
Desde o início da crise, os meios de comunicação se aliaram às elites políticas para facilitar a maquiagem da realidade econômica do país – para a qual havia trabalhado o banco de investimento Goldman Sachs – e disfarçar a amplitude da corrupção. Eles também apoiaram o programa de austeridade imposto pela Troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão Europeia) pelo fato de que uma grande parte das medidas recomendadas correspondia a suas preferências. “O grupo DOL [Lambrakis Press Group] esteve entre os primeiros a colocar em prática uma das principais medidas impostas pela Troika: a supressão das convenções coletivas por ramo de trabalho em benefício das convenções por empresa”, esclarece Smyrnaios. “Ele conseguiu assim impor uma queda salarial de 22% a seus empregados.”
Tudo que poderia levar a desacreditar o programa do Syriza encontrava um forte eco. Em 2013, por exemplo, as grandes redes de televisão transmitiram um vídeo em que um líder da coalizão antiausteridade explicava: “Vamos sair do euro!”. Seu discurso tinha sido truncado porque a sequência esclarecia: “Se, e somente se [a chanceler alemã Angela], Merkel nos colocar para fora”. Foi preciso que o Syriza ameaçasse as redes de processos judiciais para que elas parassem com a transmissão. Todas as pesquisas mostram: a maior parte dos gregos não é favorável ao abandono da moeda única.
Além do relançamento econômico do país, o programa do Syriza prevê uma “retomada democrática” que passa pela regulamentação do setor de comunicações, o que distingue a coalizão das outras formações gregas. Ela se empenhou, assim, em fazer que as empresas de audiovisual paguem pelas licenças que lhes são concedidas. Sua atribuição permanente se traduziria por um controle aprofundado da composição do capital das empresas, de sua proveniência, de sua viabilidade e de suas incompatibilidades eventuais com outros investimentos. A medida poderia mudar o jogo: a maioria das redes sobrevive graças a empréstimos – a taxas favoráveis – concedidos pelos bancos, com a bênção dos governos precedentes. Surpresa: desde a eleição de Alexis Tsipras, as grandes redes parecem ter mudado de atitude em relação a ele e pintam o novo governo de maneira menos cáustica...
Outra questão-chave: a da radiotelevisão nacional (ERT), fechada em junho de 2013 pelo governo de Antonis Samaras. Reunido em torno de sindicalistas e apostando numa eventual vitória do Syriza, um núcleo de assalariados rejeitou a proposta do antigo governo: reabrir com um efetivo de pessoal reduzido em um terço. Expulso dos locais da rede pelas forças da ordem em dezembro de 2013, esse grupo criou uma estrutura autogerada que reivindica o título de “verdadeira ERT”. Todavia, um grande número de jornalistas e técnicos o deixou desde então, em desacordo com a maneira autoritária do ex-presidente do sindicato e sua forma opaca de gerir o caixa da greve. Resultaram dessa cisão duas estruturas distintas, às quais não pertence, aliás, a maior parte dos ex-empregados da ERT, vítimas ao mesmo tempo da Troika (que diminui seus seguros-desemprego) e da queda de braço entre seus colegas e os partidos políticos.
O Syriza prometeu reabrir a ERT, mas não parece ter pressa para isso. Aliás, ela não cedeu aos sindicalistas que exigiam retomar a estrutura de maneira idêntica ao que era e se mostra mais favorável à criação de um organismo baseado em novas fundações, em ruptura com o caráter estatal de antes.
* Valia Kaimaki é jornalista em Atenas.
Notas:
1 Fabienne Schmitt, “Fréquences télécoms: un jackpot à 45 milliards pour l’État américain” [Frequências de telecomunicação: um grande prêmio de 45 bilhões para o Estado norte-americano], Les Échos, Paris, 30-31 jan. 2015.
2 “O déficit empresarial dos meios de comunicação gregos” (em grego), 2 jul. 2009. Disponível em: www.medium.gr/a/3275-1549.html.
3 Nikos Smyrnaios, “Grèce: la fabrication du consentement par les médias” [Grécia: a fabricação do consentimento pelos meios de comunicação], 26 fev. 2012. Disponível em: www.ephemeron.eu (todas as citações de Smyrnaios foram tiradas deste artigo).
Os Estados Unidos, leilões lançados em novembro de 2014 e destinados a atribuir cerca de 1,5 mil frequências do espectro hertziano atingiram US$ 45 bilhões [1]. Nada comparável à Grécia. Ali as redes de televisão e de rádio privadas dispõem de licenças ditas “provisórias” desde 1989. E não pagaram um único centavo ao Estado.
Há alguns anos, o jornalista Paschos Mandravelis resumia assim a situação: o funcionamento dos meios de comunicação gregos não se inscreve no quadro de um mercado da informação, e sim no de um “mercado da política” [2]. A proximidade entre esses dois mundos surgiu, aliás, em plena luz do dia, em novembro de 2011, quando o diretor do jornal diárioTa Néa, Pantelis Kapsis, deixou o cargo para se juntar ao governo de Lucas Papademos, um ex-banqueiro. Como ressaltou na época o jornalista Nikos Smyrnaios, a família Kapsis nem por isso desaparecia da imprensa: Manolis, o irmão de Pantelis, “atua[va] todos os dias no jornal televisivo da Mega Channel, onde, como comentador político, apoia[va] esse mesmo governo” [3].
Hoje, uma população de cerca de 11 milhões de habitantes se vê diante de não menos de trinta diários e semanários nacionais, uma dezena de jornais esportivos diários, seis redes de televisão privadas (que se somam a duas redes nacionais) e 150 redes locais, sem contar cerca de mil estações de rádio. Obviamente, todos esses órgãos de imprensa não podem coexistir de maneira autônoma. E muito menos o mercado publicitário, que garante uma parte dos recursos e segue a curva da produção de riquezas do país, em queda livre.
A verdade é que a imprensa está agonizando. Um dos principais jornais diários – o Ta Néa, ligado ao Partido Socialista Grego (Pasok) – vende somente 18 mil exemplares por dia. Outro jornal histórico, o Eletherotypia, desapareceu no início da crise. A difusão dos semanários caiu de mais de 1,5 milhão de exemplares para cerca de 600 mil. A maior parte das empresas de imprensa escrita é deficitária, e a maioria das vendas dos diários depende da oferta promocional da semana, como cupons de desconto.
Nessas condições, esses proprietários – recrutados entre as grandes fortunas do país, sobretudo os empresários da indústria naval, que não pagam impostos – não esperam que seus investimentos lhes proporcionem lucros. Possuir um grupo de imprensa lhes oferece, em contrapartida, uma influência política suscetível de lhes permitir conquistar mercados públicos. O grupo Pegasus, por exemplo, que edita os diários Ethnos e Proto Thema, pertence à família Bobolas, especializada no setor de construção e em obras públicas, e principal beneficiária dos contratos públicos de construção nos últimos vinte anos.
Desde o início da crise, os meios de comunicação se aliaram às elites políticas para facilitar a maquiagem da realidade econômica do país – para a qual havia trabalhado o banco de investimento Goldman Sachs – e disfarçar a amplitude da corrupção. Eles também apoiaram o programa de austeridade imposto pela Troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão Europeia) pelo fato de que uma grande parte das medidas recomendadas correspondia a suas preferências. “O grupo DOL [Lambrakis Press Group] esteve entre os primeiros a colocar em prática uma das principais medidas impostas pela Troika: a supressão das convenções coletivas por ramo de trabalho em benefício das convenções por empresa”, esclarece Smyrnaios. “Ele conseguiu assim impor uma queda salarial de 22% a seus empregados.”
Tudo que poderia levar a desacreditar o programa do Syriza encontrava um forte eco. Em 2013, por exemplo, as grandes redes de televisão transmitiram um vídeo em que um líder da coalizão antiausteridade explicava: “Vamos sair do euro!”. Seu discurso tinha sido truncado porque a sequência esclarecia: “Se, e somente se [a chanceler alemã Angela], Merkel nos colocar para fora”. Foi preciso que o Syriza ameaçasse as redes de processos judiciais para que elas parassem com a transmissão. Todas as pesquisas mostram: a maior parte dos gregos não é favorável ao abandono da moeda única.
Além do relançamento econômico do país, o programa do Syriza prevê uma “retomada democrática” que passa pela regulamentação do setor de comunicações, o que distingue a coalizão das outras formações gregas. Ela se empenhou, assim, em fazer que as empresas de audiovisual paguem pelas licenças que lhes são concedidas. Sua atribuição permanente se traduziria por um controle aprofundado da composição do capital das empresas, de sua proveniência, de sua viabilidade e de suas incompatibilidades eventuais com outros investimentos. A medida poderia mudar o jogo: a maioria das redes sobrevive graças a empréstimos – a taxas favoráveis – concedidos pelos bancos, com a bênção dos governos precedentes. Surpresa: desde a eleição de Alexis Tsipras, as grandes redes parecem ter mudado de atitude em relação a ele e pintam o novo governo de maneira menos cáustica...
Outra questão-chave: a da radiotelevisão nacional (ERT), fechada em junho de 2013 pelo governo de Antonis Samaras. Reunido em torno de sindicalistas e apostando numa eventual vitória do Syriza, um núcleo de assalariados rejeitou a proposta do antigo governo: reabrir com um efetivo de pessoal reduzido em um terço. Expulso dos locais da rede pelas forças da ordem em dezembro de 2013, esse grupo criou uma estrutura autogerada que reivindica o título de “verdadeira ERT”. Todavia, um grande número de jornalistas e técnicos o deixou desde então, em desacordo com a maneira autoritária do ex-presidente do sindicato e sua forma opaca de gerir o caixa da greve. Resultaram dessa cisão duas estruturas distintas, às quais não pertence, aliás, a maior parte dos ex-empregados da ERT, vítimas ao mesmo tempo da Troika (que diminui seus seguros-desemprego) e da queda de braço entre seus colegas e os partidos políticos.
O Syriza prometeu reabrir a ERT, mas não parece ter pressa para isso. Aliás, ela não cedeu aos sindicalistas que exigiam retomar a estrutura de maneira idêntica ao que era e se mostra mais favorável à criação de um organismo baseado em novas fundações, em ruptura com o caráter estatal de antes.
* Valia Kaimaki é jornalista em Atenas.
Notas:
1 Fabienne Schmitt, “Fréquences télécoms: un jackpot à 45 milliards pour l’État américain” [Frequências de telecomunicação: um grande prêmio de 45 bilhões para o Estado norte-americano], Les Échos, Paris, 30-31 jan. 2015.
2 “O déficit empresarial dos meios de comunicação gregos” (em grego), 2 jul. 2009. Disponível em: www.medium.gr/a/3275-1549.html.
3 Nikos Smyrnaios, “Grèce: la fabrication du consentement par les médias” [Grécia: a fabricação do consentimento pelos meios de comunicação], 26 fev. 2012. Disponível em: www.ephemeron.eu (todas as citações de Smyrnaios foram tiradas deste artigo).
Muito interessante.
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