Por Henrique Gonçalves Dantas de Medeiros e Andreia Cristina Campigotto, no jornal Brasil de Fato:
“Mentiras contadas repetidas muitas vezes e de maneira despudorada, faz com que imaginemos ser verdade”. Com esse aforismo, a Associação Médica Brasileira (AMB) sintetizou sua posição frente ao Programa Mais Médicos em texto publicado no portal R7 no dia 10 de julho em referência aos dois anos do programa, cujo aniversário ocorrera no dia 8. A linha de raciocínio (que não é surpresa para ninguém que esteja minimamente por dentro dessa discussão) é a de que o Mais Médicos não passa de uma estratégia “marqueteira”, que, longe de impactar positivamente nos indicadores de saúde, na verdade, estaria piorando-os. Por esta razão, não haveria nada a comemorar.
Entre os argumentos “sólidos” que revelariam a “evidente” demagogia, estaria inclusive um cálculo supostamente deturpado pelo Ministério da Saúde, pois seria impossível atender a 63 milhões de pessoas com apenas 15 mil médicos. Ora, nem é necessário muito esforço para desmontar essa linha de argumentação. Apenas para pontuar, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) prevê que cada equipe da Estratégia Saúde da Família tem responsabilidade sanitária por uma população de até 4 mil pessoas. O cálculo é simples: 15 mil multiplicado por 4 mil é igual a 60 milhões. Considerando que ainda é usual encontrarmos equipes cuidando de territórios com populações maiores do que a prevista pela PNAB (lembrando aos mais afoitos que a atenção básica é responsabilidade dos municípios), especialmente nas regiões mais pobres do Brasil, o número apresentado pelo Ministério da Saúde é bastante razoável. Regiões como as do sertão nordestino, a qual muitos colegas desconhecem e para a qual alguns raivosamente “prescreviam” castração química após o resultado eleitoral de 2014, como evidenciado nas redes sociais e nos meios de comunicação à época. Tanto mais quando se observa que a expansão do programa em 2015 prevê um total de 18.240 profissionais, contemplando 4.058 municípios (72,8% do total) e 34 distritos indígenas.
Aliás, os números acima são por si só bastante contundentes para aqueles verdadeiramente dispostos ao debate de ideias. Outros possíveis de serem citados são aqueles da pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe). A pesquisa mostra que 95% dos usuários estão satisfeitos com a atuação dos médicos e deram nota acima de oito ao atendimento dos profissionais; e 86% dizem que a qualidade da assistência melhorou após a chegada dos profissionais do Mais Médicos. O próprio relatório do Tribunal de Contas da União (aquela parte que não foi divulgada na dita grande imprensa) é revelador ao constatar: aumento de 33% na média mensal de consultas na atenção básica; crescimento de 32% no número de visitas domiciliares; constatação de que 63% dos outros profissionais da equipe de Saúde da Família entrevistados afirmaram que o atendimento melhorou; e redução do tempo de espera por consulta relatado 89% dos pacientes e 98% dos gestores. Adicionalmente, poder-se-ia ainda lembrar os dados que dizem respeito à diminuição da mortalidade infantil e até o caso de municípios que a erradicaram após a adesão ao programa.
Mas o ódio cega. A ponto de – implicitamente, nas entrelinhas, no subtexto sugerir que o Mais Médicos estaria gerando desemprego de médicos brasileiros em razão da substituição destes pelos que fazem parte do programa. Nada é dito sobre a prática corrente que se tinha, especialmente nos municípios com menores índices de densidade médica, mas também verificada em grandes cidades e tantas vezes já registrada em noticiários, do não cumprimento de carga horária. Essa prática, muitas vezes, era pactuada com o próprio gestor, o qual tinha poucas opções diante do “leilão” de médicos entre municípios que tinham de competir entre si para garantir a presença desse profissional por três ou quatro turnos na semana nas unidades básicas de saúde. Diante da possibilidade de tê-lo integralmente ao longo da semana, o que se poderia esperar? Frequentes também eram os casos de acúmulo, por um mesmo profissional, de empregos cujas cargas horárias semanais, se contabilizadas à risca, não caberiam dentro da semana. Ainda mais absurda é essa “preocupação” quando se tem em vista dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), os quais demonstram que, de 2003 a 2011, o número de postos de emprego formal criados para médicos supera, em 54 mil, o total de graduados no país. Ou seja, mesmo com um crescimento da oferta de vagas para medicina acima de 60%, foram apenas 93 mil formandos para uma demanda de 147 mil postos de trabalho médico.
Nesse sentido, também se esvai a tese de que não seria mais necessária a abertura de novas vagas de graduação em medicina. Partindo dos dados apresentados pela própria AMB no referido texto, teríamos uma média de 1,97 médicos por mil habitantes (à época do lançamento do programa a média era de 1,8). Portanto, ainda bem abaixo de outros países dotados de sistemas universais de saúde, a exemplo do Reino Unido (2,7) e Espanha (4,0), bem como de vizinhos da América Latina, como Argentina (3,2) e Uruguai (3,7). Esse fato é agravado pela profunda concentração de profissionais no Centro-Sul do país, de modo que 22 estados da federação estão abaixo da média nacional, assim como pelo fato de que o setor privado conta com quatro vezes mais médicos do que o Sistema Único de Saúde (SUS), como a própria associação reconhece.
Além do provimento emergencial (sobretudo com a chegada dos mais de 11 mil médicos cubanos), um dos eixos estruturantes do programa é exatamente a formação para o SUS, de modo a dar-lhe sustentabilidade. Nesse sentido, estão previstas mudanças como a ampliação da oferta de vagas na graduação e na residência médica, mudança no eixo dos locais de formação (buscando a interiorização) e a reorientação da formação (a partir de reforma curricular que reveja o modelo hospitalocêntrico hegemônico e amplie a presença dos estudantes em cenários de atenção primária à saúde e urgência e emergência no SUS). A perspectiva é que o Brasil saia de 374 mil para 600 mil médicos até 2026, atingindo a média britânica atual de 2,7 médicos por mil habitantes. Nesse sentido, prevê-se a abertura de 11,5 mil vagas de graduação até 2018 e 12,4 mil novas vagas de residência para formação de especialistas, induzindo essa abertura em regiões de menor densidade médica. Os primeiros resultados, aliás, já são alcançados, pois, pela primeira vez na história, o país tem um maior número de vagas de graduação em regiões do interior do que em capitais; bem como finalmente o número dessas vagas por 10 mil habitantes nas regiões Nordeste e Norte atinge o patamar das regiões Sul e Sudeste.
Simplismo, confusão e senso comum, eis as estratégias do texto publicado naquele portal. Nada surpreendente, afinal, o mínimo de razoabilidade e de disposição para o diálogo seriam suficientes para reconhecer a importância de um programa de tal envergadura, mas que certamente precisa de ajustes. O discurso corporativo, auto-referenciado, egoísta, umbilical, torna-se cada vez mais e mais vazio, mais e mais distante da realidade concreta, do contexto da saúde da enorme maioria dos brasileiros. E é no contexto, e não simplesmente no texto, que reside o problema central: os setores dirigentes da corporação médica não querem diálogo. Querem pura e simplesmente o fim do Programa Mais Médicos e de qualquer iniciativa que ameace democratizar o acesso à assistência médica para, assim, fazer reserva de mercado e manter inalterado o seu status. Afinal, o que representam as diversas iniciativas das entidades médicas em tentar acabar com a política pública de saúde mais relevante dos últimos 20 anos? Não é exatamente esse o sentido da aliança com o PSDB na propositura, através dos senadores Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) e Aloysio Nunes (PSDB-SP), do projeto de decreto legislativo PDS 33/2015?
A propósito, a aliança com o PSDB (inclusive com a participação ativa das entidades médicas na última campanha eleitoral) revela não somente a hipocrisia, mas o verdadeiro cinismo do argumento tantas vezes propalado de que os médicos não iriam para regiões interioranas e de periferia das grandes cidades simplesmente por falta de infra-estrutura. Afinal, o projeto neoliberal implantando nos anos 1990 por aquele partido e reapresentado na campanha de 2014 não defende exatamente o chamado Estado Mínimo? Não propõe justamente a redução dos “gastos sociais” em saúde, educação e outras políticas públicas? Não prevê limpidamente a desregulamentação dos direitos trabalhistas e das políticas de proteção social, ampliando o fosso de desigualdades sociais e, por conseguinte, determinando uma maior vulnerabilidade a doenças? Não foi precisamente o governo FHC quem criou o mecanismo da Desvinculação das Receitas da União (DRU), o qual abocanha todo ano 20% do orçamento da seguridade social (e dentro deles está o da saúde) para destinar ao pagamento de juros e amortizações da dívida, privilegiando banqueiros? Não foi o PSDB quem liderou no Congresso a extinção da CPMF (um dos poucos impostos que incidiam sobre os estratos mais abastados da população) deixando o financiamento da saúde sem essa importante fonte de recursos? O neoliberalismo não prescreve claramente a terceirização do serviço público? Não foi justamente o PSDB quem disseminou a contração de OSS’s, alimentando empresas que se fartam com dinheiro público em volume crescente e precarizam o trabalho do servidor? Ora, dizer que deseja melhorias na infra-estrutura pública de saúde e defender tal projeto não seria, isso sim, pura demagogia?
Diz o texto que os problemas reais do setor são “subfinanciamento, má gestão e corrupção”. Pois bem, qual é então a proposta das entidades frente a cada um deles? A resposta dedutível da aliança com o projeto neoliberal é: mais subfinanciamento, terceirização/privatização e… bem, quanto à corrupção, nada mais que um discurso moralista. Sim, afinal, o que dizer das relações em torno do PDS 33/2015 com um senador condenado em última instância por compra de votos? Ou do apoio apaixonado a um candidato envolvido em escândalos não apurados (afinal, o arquivamento de processos contra ele é uma constante)? Ou ainda, para não apontarmos o dedo apenas para os outros e alimentarmos a sensação de que os problemas são os políticos, de que “o inferno são os outros”, o que dizer do silêncio catacumbal da corporação médica frente à chamada “máfia da próteses”, que movimentava, por ano, cerca de 12 bilhões de reais? Isso mesmo, anualmente um valor equivalente ao do corte na área da saúde implementado em 2015 pelo pacote de ajuste fiscal era sangrado do SUS para os bolsos de uma quadrilha de médicos…
E, no entanto, esse é o grande dilema ético que a Medicina enfrenta hoje no Brasil, em que a profissão é cada vez mais identificada como negócio lucrativo, lucros auferidos à custa da desassistência e da vida de muitos. Essa tem sido a percepção geral da população há anos: a de que esses profissionais de jaleco branco são mercenários, que só pensam em dinheiro. E mais do que um negócio, a Medicina tem sido vista como um privilégio, acessível a quem vem de classe média, brancos, que nunca precisaram trabalhar. Não é esse o perfil identificado em pesquisa recentemente divulgada?
O mais grave, no entanto, não é simplesmente a aliança dos setores dirigentes da corporação médica com o projeto neoliberal, mas o descambar de uma parcela importante dos médicos para o golpismo e o fascismo. Quando as entidades médicas fecham a porta para qualquer diálogo em relação ao PMM e parte expressiva dos médicos aposta todas as suas fichas na interrupção da estabilidade institucional democrática, não se pode depreender outra coisa que não seja a determinação em ser ponta de lança do golpismo branco em curso. E isso é apenas a culminância de uma ideologia fascista que vem sendo gestada nesses últimos dois anos: racismo, xenofobia, preconceito regional e de classe. Há outra forma de denominar o que se viu na chegada dos médicos cubanos em Fortaleza, quando médicos brasileiros urravam “escravos, escravos, escravos!” diante de médicos negros? O que dizer quando, numa das redes sociais, uma comunidade denominada Dignidade Médica alimentava discursos que pregavam um holocausto no Nordeste e a castração química de pobres? E o que falar da mais recente manifestação de ódio, a que muitos colegas médicos aderiram, circulando com certo adesivo da presidenta que suscitava a violação sexual da mesma, propagando, assim, a cultura do estupro, a mesma estimulada desde cedo nos trotes das faculdades de medicina? Tudo isso com o mais conivente silêncio das entidades…
De fato, o aforismo utilizado no texto em questão, o de que “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, o qual originalmente remete a estratégia nazista de construir um consenso em torno de que o problema da Alemanha então residia nos judeus, nunca foi mais atual. Porém no sentido inverso ao empregado pela AMB: elege-se um bode expiatório (os “petralhas”, os nordestinos, os pobres que os elegeram) contra o qual se direciona todo rancor, ódio e perfídia; e repete-se diariamente, em perfeita consonância com o oligopólio midiático reacionário, que todos os problemas do Brasil (corrupção, atraso, etc.) foram originados por ele para, dessa forma, mascarar-se toda a podridão que não queremos enfrentar para não perdermos nossos privilégios…
Felizmente, contudo, ainda há setores progressistas e democráticos dentro da categoria médica, que desejam verdadeiramente a consolidação de um sistema de saúde universal e a garantia desse direito de cidadania. Muitos de nós somos bastante críticos aos rumos que o governo vêm tomando, entretanto essas críticas (que nem caberiam no escopo dessas linhas) certamente vão no sentido contrário ao que vem sendo formulado pelas entidades médicas. É necessário combater a política macroeconômica de matriz neoliberal adotada pelo ministro Joaquim Levy, bem como o ajuste fiscal, os quais representam a adoção do programa defendido pela candidatura Aécio Neves e derrotado nas últimas eleições. Os cortes interditam em médio prazo qualquer perspectiva de consolidação das políticas públicas que democratizem o direito à saúde, educação, etc. A abertura ao capital estrangeiro para prestação de assistência médica é absolutamente danosa a uma perspectiva publicista de política de saúde. E dentro do PMM é preciso rever o processo de expansão de vagas de graduação em medicina a partir do setor privado, que é reflexo do esgotamento da capacidade de investimento do Estado neodesenvolvimentista em tempos de ajuste fiscal, quando este passa a depender da capacidade do setor privado uma vez que não se propõe a enfrentar temas como auditoria da divida pública e taxação de grandes fortunas e heranças. Tais críticas não nos colocam ao lado dos setores conservadores da sociedade.
Outros de nós são colegas que, coagidos pela ação persecutória de outros grupos, ou para não gerar inimizades, ou por quaisquer outros motivos, acabam calando ou simplesmente não são ouvidos. De fato, sozinhos, isolados, é difícil, pra não dizer assustador, contrapor-se a esse estado de coisas. Nunca foi tão urgente e necessária uma articulação desses médicos. É mais do que fundamental iniciativas como a que vem sendo gestada em torno da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. É preciso o quanto antes se contrapor a esse estado de coisas. É preciso organização para impedir que o ovo da serpente choque, antes que sejamos todos picados por ela. É preciso barrar o fascismo. É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.
Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão.
E na oportunidade não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.
(Maiakovski)
Entre os argumentos “sólidos” que revelariam a “evidente” demagogia, estaria inclusive um cálculo supostamente deturpado pelo Ministério da Saúde, pois seria impossível atender a 63 milhões de pessoas com apenas 15 mil médicos. Ora, nem é necessário muito esforço para desmontar essa linha de argumentação. Apenas para pontuar, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) prevê que cada equipe da Estratégia Saúde da Família tem responsabilidade sanitária por uma população de até 4 mil pessoas. O cálculo é simples: 15 mil multiplicado por 4 mil é igual a 60 milhões. Considerando que ainda é usual encontrarmos equipes cuidando de territórios com populações maiores do que a prevista pela PNAB (lembrando aos mais afoitos que a atenção básica é responsabilidade dos municípios), especialmente nas regiões mais pobres do Brasil, o número apresentado pelo Ministério da Saúde é bastante razoável. Regiões como as do sertão nordestino, a qual muitos colegas desconhecem e para a qual alguns raivosamente “prescreviam” castração química após o resultado eleitoral de 2014, como evidenciado nas redes sociais e nos meios de comunicação à época. Tanto mais quando se observa que a expansão do programa em 2015 prevê um total de 18.240 profissionais, contemplando 4.058 municípios (72,8% do total) e 34 distritos indígenas.
Aliás, os números acima são por si só bastante contundentes para aqueles verdadeiramente dispostos ao debate de ideias. Outros possíveis de serem citados são aqueles da pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe). A pesquisa mostra que 95% dos usuários estão satisfeitos com a atuação dos médicos e deram nota acima de oito ao atendimento dos profissionais; e 86% dizem que a qualidade da assistência melhorou após a chegada dos profissionais do Mais Médicos. O próprio relatório do Tribunal de Contas da União (aquela parte que não foi divulgada na dita grande imprensa) é revelador ao constatar: aumento de 33% na média mensal de consultas na atenção básica; crescimento de 32% no número de visitas domiciliares; constatação de que 63% dos outros profissionais da equipe de Saúde da Família entrevistados afirmaram que o atendimento melhorou; e redução do tempo de espera por consulta relatado 89% dos pacientes e 98% dos gestores. Adicionalmente, poder-se-ia ainda lembrar os dados que dizem respeito à diminuição da mortalidade infantil e até o caso de municípios que a erradicaram após a adesão ao programa.
Mas o ódio cega. A ponto de – implicitamente, nas entrelinhas, no subtexto sugerir que o Mais Médicos estaria gerando desemprego de médicos brasileiros em razão da substituição destes pelos que fazem parte do programa. Nada é dito sobre a prática corrente que se tinha, especialmente nos municípios com menores índices de densidade médica, mas também verificada em grandes cidades e tantas vezes já registrada em noticiários, do não cumprimento de carga horária. Essa prática, muitas vezes, era pactuada com o próprio gestor, o qual tinha poucas opções diante do “leilão” de médicos entre municípios que tinham de competir entre si para garantir a presença desse profissional por três ou quatro turnos na semana nas unidades básicas de saúde. Diante da possibilidade de tê-lo integralmente ao longo da semana, o que se poderia esperar? Frequentes também eram os casos de acúmulo, por um mesmo profissional, de empregos cujas cargas horárias semanais, se contabilizadas à risca, não caberiam dentro da semana. Ainda mais absurda é essa “preocupação” quando se tem em vista dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), os quais demonstram que, de 2003 a 2011, o número de postos de emprego formal criados para médicos supera, em 54 mil, o total de graduados no país. Ou seja, mesmo com um crescimento da oferta de vagas para medicina acima de 60%, foram apenas 93 mil formandos para uma demanda de 147 mil postos de trabalho médico.
Nesse sentido, também se esvai a tese de que não seria mais necessária a abertura de novas vagas de graduação em medicina. Partindo dos dados apresentados pela própria AMB no referido texto, teríamos uma média de 1,97 médicos por mil habitantes (à época do lançamento do programa a média era de 1,8). Portanto, ainda bem abaixo de outros países dotados de sistemas universais de saúde, a exemplo do Reino Unido (2,7) e Espanha (4,0), bem como de vizinhos da América Latina, como Argentina (3,2) e Uruguai (3,7). Esse fato é agravado pela profunda concentração de profissionais no Centro-Sul do país, de modo que 22 estados da federação estão abaixo da média nacional, assim como pelo fato de que o setor privado conta com quatro vezes mais médicos do que o Sistema Único de Saúde (SUS), como a própria associação reconhece.
Além do provimento emergencial (sobretudo com a chegada dos mais de 11 mil médicos cubanos), um dos eixos estruturantes do programa é exatamente a formação para o SUS, de modo a dar-lhe sustentabilidade. Nesse sentido, estão previstas mudanças como a ampliação da oferta de vagas na graduação e na residência médica, mudança no eixo dos locais de formação (buscando a interiorização) e a reorientação da formação (a partir de reforma curricular que reveja o modelo hospitalocêntrico hegemônico e amplie a presença dos estudantes em cenários de atenção primária à saúde e urgência e emergência no SUS). A perspectiva é que o Brasil saia de 374 mil para 600 mil médicos até 2026, atingindo a média britânica atual de 2,7 médicos por mil habitantes. Nesse sentido, prevê-se a abertura de 11,5 mil vagas de graduação até 2018 e 12,4 mil novas vagas de residência para formação de especialistas, induzindo essa abertura em regiões de menor densidade médica. Os primeiros resultados, aliás, já são alcançados, pois, pela primeira vez na história, o país tem um maior número de vagas de graduação em regiões do interior do que em capitais; bem como finalmente o número dessas vagas por 10 mil habitantes nas regiões Nordeste e Norte atinge o patamar das regiões Sul e Sudeste.
Simplismo, confusão e senso comum, eis as estratégias do texto publicado naquele portal. Nada surpreendente, afinal, o mínimo de razoabilidade e de disposição para o diálogo seriam suficientes para reconhecer a importância de um programa de tal envergadura, mas que certamente precisa de ajustes. O discurso corporativo, auto-referenciado, egoísta, umbilical, torna-se cada vez mais e mais vazio, mais e mais distante da realidade concreta, do contexto da saúde da enorme maioria dos brasileiros. E é no contexto, e não simplesmente no texto, que reside o problema central: os setores dirigentes da corporação médica não querem diálogo. Querem pura e simplesmente o fim do Programa Mais Médicos e de qualquer iniciativa que ameace democratizar o acesso à assistência médica para, assim, fazer reserva de mercado e manter inalterado o seu status. Afinal, o que representam as diversas iniciativas das entidades médicas em tentar acabar com a política pública de saúde mais relevante dos últimos 20 anos? Não é exatamente esse o sentido da aliança com o PSDB na propositura, através dos senadores Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) e Aloysio Nunes (PSDB-SP), do projeto de decreto legislativo PDS 33/2015?
A propósito, a aliança com o PSDB (inclusive com a participação ativa das entidades médicas na última campanha eleitoral) revela não somente a hipocrisia, mas o verdadeiro cinismo do argumento tantas vezes propalado de que os médicos não iriam para regiões interioranas e de periferia das grandes cidades simplesmente por falta de infra-estrutura. Afinal, o projeto neoliberal implantando nos anos 1990 por aquele partido e reapresentado na campanha de 2014 não defende exatamente o chamado Estado Mínimo? Não propõe justamente a redução dos “gastos sociais” em saúde, educação e outras políticas públicas? Não prevê limpidamente a desregulamentação dos direitos trabalhistas e das políticas de proteção social, ampliando o fosso de desigualdades sociais e, por conseguinte, determinando uma maior vulnerabilidade a doenças? Não foi precisamente o governo FHC quem criou o mecanismo da Desvinculação das Receitas da União (DRU), o qual abocanha todo ano 20% do orçamento da seguridade social (e dentro deles está o da saúde) para destinar ao pagamento de juros e amortizações da dívida, privilegiando banqueiros? Não foi o PSDB quem liderou no Congresso a extinção da CPMF (um dos poucos impostos que incidiam sobre os estratos mais abastados da população) deixando o financiamento da saúde sem essa importante fonte de recursos? O neoliberalismo não prescreve claramente a terceirização do serviço público? Não foi justamente o PSDB quem disseminou a contração de OSS’s, alimentando empresas que se fartam com dinheiro público em volume crescente e precarizam o trabalho do servidor? Ora, dizer que deseja melhorias na infra-estrutura pública de saúde e defender tal projeto não seria, isso sim, pura demagogia?
Diz o texto que os problemas reais do setor são “subfinanciamento, má gestão e corrupção”. Pois bem, qual é então a proposta das entidades frente a cada um deles? A resposta dedutível da aliança com o projeto neoliberal é: mais subfinanciamento, terceirização/privatização e… bem, quanto à corrupção, nada mais que um discurso moralista. Sim, afinal, o que dizer das relações em torno do PDS 33/2015 com um senador condenado em última instância por compra de votos? Ou do apoio apaixonado a um candidato envolvido em escândalos não apurados (afinal, o arquivamento de processos contra ele é uma constante)? Ou ainda, para não apontarmos o dedo apenas para os outros e alimentarmos a sensação de que os problemas são os políticos, de que “o inferno são os outros”, o que dizer do silêncio catacumbal da corporação médica frente à chamada “máfia da próteses”, que movimentava, por ano, cerca de 12 bilhões de reais? Isso mesmo, anualmente um valor equivalente ao do corte na área da saúde implementado em 2015 pelo pacote de ajuste fiscal era sangrado do SUS para os bolsos de uma quadrilha de médicos…
E, no entanto, esse é o grande dilema ético que a Medicina enfrenta hoje no Brasil, em que a profissão é cada vez mais identificada como negócio lucrativo, lucros auferidos à custa da desassistência e da vida de muitos. Essa tem sido a percepção geral da população há anos: a de que esses profissionais de jaleco branco são mercenários, que só pensam em dinheiro. E mais do que um negócio, a Medicina tem sido vista como um privilégio, acessível a quem vem de classe média, brancos, que nunca precisaram trabalhar. Não é esse o perfil identificado em pesquisa recentemente divulgada?
O mais grave, no entanto, não é simplesmente a aliança dos setores dirigentes da corporação médica com o projeto neoliberal, mas o descambar de uma parcela importante dos médicos para o golpismo e o fascismo. Quando as entidades médicas fecham a porta para qualquer diálogo em relação ao PMM e parte expressiva dos médicos aposta todas as suas fichas na interrupção da estabilidade institucional democrática, não se pode depreender outra coisa que não seja a determinação em ser ponta de lança do golpismo branco em curso. E isso é apenas a culminância de uma ideologia fascista que vem sendo gestada nesses últimos dois anos: racismo, xenofobia, preconceito regional e de classe. Há outra forma de denominar o que se viu na chegada dos médicos cubanos em Fortaleza, quando médicos brasileiros urravam “escravos, escravos, escravos!” diante de médicos negros? O que dizer quando, numa das redes sociais, uma comunidade denominada Dignidade Médica alimentava discursos que pregavam um holocausto no Nordeste e a castração química de pobres? E o que falar da mais recente manifestação de ódio, a que muitos colegas médicos aderiram, circulando com certo adesivo da presidenta que suscitava a violação sexual da mesma, propagando, assim, a cultura do estupro, a mesma estimulada desde cedo nos trotes das faculdades de medicina? Tudo isso com o mais conivente silêncio das entidades…
De fato, o aforismo utilizado no texto em questão, o de que “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, o qual originalmente remete a estratégia nazista de construir um consenso em torno de que o problema da Alemanha então residia nos judeus, nunca foi mais atual. Porém no sentido inverso ao empregado pela AMB: elege-se um bode expiatório (os “petralhas”, os nordestinos, os pobres que os elegeram) contra o qual se direciona todo rancor, ódio e perfídia; e repete-se diariamente, em perfeita consonância com o oligopólio midiático reacionário, que todos os problemas do Brasil (corrupção, atraso, etc.) foram originados por ele para, dessa forma, mascarar-se toda a podridão que não queremos enfrentar para não perdermos nossos privilégios…
Felizmente, contudo, ainda há setores progressistas e democráticos dentro da categoria médica, que desejam verdadeiramente a consolidação de um sistema de saúde universal e a garantia desse direito de cidadania. Muitos de nós somos bastante críticos aos rumos que o governo vêm tomando, entretanto essas críticas (que nem caberiam no escopo dessas linhas) certamente vão no sentido contrário ao que vem sendo formulado pelas entidades médicas. É necessário combater a política macroeconômica de matriz neoliberal adotada pelo ministro Joaquim Levy, bem como o ajuste fiscal, os quais representam a adoção do programa defendido pela candidatura Aécio Neves e derrotado nas últimas eleições. Os cortes interditam em médio prazo qualquer perspectiva de consolidação das políticas públicas que democratizem o direito à saúde, educação, etc. A abertura ao capital estrangeiro para prestação de assistência médica é absolutamente danosa a uma perspectiva publicista de política de saúde. E dentro do PMM é preciso rever o processo de expansão de vagas de graduação em medicina a partir do setor privado, que é reflexo do esgotamento da capacidade de investimento do Estado neodesenvolvimentista em tempos de ajuste fiscal, quando este passa a depender da capacidade do setor privado uma vez que não se propõe a enfrentar temas como auditoria da divida pública e taxação de grandes fortunas e heranças. Tais críticas não nos colocam ao lado dos setores conservadores da sociedade.
Outros de nós são colegas que, coagidos pela ação persecutória de outros grupos, ou para não gerar inimizades, ou por quaisquer outros motivos, acabam calando ou simplesmente não são ouvidos. De fato, sozinhos, isolados, é difícil, pra não dizer assustador, contrapor-se a esse estado de coisas. Nunca foi tão urgente e necessária uma articulação desses médicos. É mais do que fundamental iniciativas como a que vem sendo gestada em torno da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. É preciso o quanto antes se contrapor a esse estado de coisas. É preciso organização para impedir que o ovo da serpente choque, antes que sejamos todos picados por ela. É preciso barrar o fascismo. É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.
Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão.
E na oportunidade não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.
(Maiakovski)
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