quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Brasil: Para onde queremos ir?

Por Saul Leblon, no site Carta Maior:

Quando a névoa da crise embaralha os pontos cardeais de uma sociedade, o oportunismo pode conduzir cidadãos, governos e partidos a um sumidouro da história.

Nele todos perdem e a nação resta esfacelada.

Não raro, permanece no limbo anos a fio.

A chamada década perdida dos anos 80 foi um desses desvãos, que restringiu o PIB per capita a uma variação medíocre de 0,8%, em média, no período,

A crise da dívida externa, então, e o descontrole da inflação varreram o mundo do trabalho para o abismo do desemprego, com o empobrecimento de amplas camadas da população.

Entre 1979 e 1987, a economia brasileira foi sangrada com o pagamento de US$ 82,5 bilhões de juros aos credores externos.

Equivalia a subtrair do metabolismo econômico algo como 28,5 milhões de salários mínimos.

A fatia dos salários no PIB caiu de 40%, em 1970, para 37% no final dos anos 80.

A taxa de investimento recuou para 17,6% do PIB.

Era uma bola de neve.

Nenhum segmento da sociedade conseguiu materializar um projeto de futuro enquanto o impasse crônico da economia não foi destravado pela ascensão dos movimentos sociais na luta pela democratização e o fim do arrocho.

A virada política foi condensada nas grandes conquistas sociais e políticas da Constituinte de 1988, fruto de uma ascensão de massas que o conservadorismo nunca engoliu e volta e meia tenta revogar.

A crise atual, do ponto de vista econômico, é de longe menos grave que a dos anos 80.

O Brasil dispõe agora de salvaguardas cuja ausência justamente fomentou o quadro caótico daquele período: reservas internacionais, inflação moderada, políticas sociais massivas, desemprego ainda baixo, salário mínimo valorizado, políticas agrícolas etc.

O cerco conservador ao governo, porém, e a captura de recursos fiscais crescentes pela república rentista, estreitam a margem de manobra do Estado e agravam a incerteza decorrente de uma transição de ciclo de desenvolvimento garroteada pela desordem neoliberal planetária.

É nesse divisor que Fernando Henrique Cardoso despejou sua contribuição nesta 2ª feira.

O personagem que levou o país a pique três vezes nos rochedos do FMI, falou grosso, com a arrogância de quem pretende ditar o rumo, a partir de sua elevada experiência no ramo.

‘Renúncia já, ou pedido de desculpas’, sentenciou como opções de ‘grandeza’ à chefe da nação que derrotou seu partido com 54 milhões de votos.

‘É ilegítimo, o seu governo’, não se constrangeu o tucano.

Estamos falando do personagem cuja reeleição repousa na memória republicana como uma da mais constrangedoras maracutaias da história.

Embora negue o domínio do fato até h0je, o jornal Folha de SP tem a gravação original das negociações pecuniárias que pavimentaram a sua permanência no Planalto, de onde sairia deixando um legado sabido de escombros econômicos e sociais.

As coisas aconteceram assim, conforme narraria então o repórter Fernando Rodrigues, em matéria de 1997.

Aspas:

‘O deputado Ronivon Santiago (PFL-AC) vendeu o seu voto a favor da emenda da reeleição por R$ 200 mil, segundo relatou a um amigo. A conversa foi gravada (...) ‘As fitas originais estão em poder da Folha’.

‘Nas gravações..., o deputado acreano diz não ser o único parlamentar que se vendeu na votação da reeleição, no último dia 28 de janeiro, quando a emenda foi aprovada, em primeiro turno, com 336 votos favoráveis na Câmara’.

‘Ronivon afirma que recebeu R$ 100 mil em dinheiro. O restante, outros R$ 100 mil, seriam pagos por uma empreiteira a CM, que tinha pagamentos para receber do governo do Acre’(Folha,13-05-1997)’

Então é isso: todo mundo sabe o que FHC fez com a legitimidade no verão passado.

A sofreguidão de luzir seu retrospecto explodindo o mandato alheio encerra perigos que não são endossados nem pelos que lhe devem obrigações.

Um editorial desta 2ª feira do conservador Financial Times, depois de examinar as hipóteses institucionais para o Brasil, conclui sugestivamente:

a) não há perspectiva de renúncia de Dilma;

b) não existe maioria de 2/3 no Congresso para afasta-la via impeachment;

c) nada mudaria na economia se ela fosse substituída agora;

d) sangra-la, e ao PT, até 2018, quando o PSDB assumiria com um programa radical de reformas liberais, inclui um flanco oceânico: restam 3 anos e 3 meses até lá.

A conclusão do vetusto diário inglês é singela: tudo pode acontecer.

FHC pelo jeito acha que pode acontecer do seu time não sobreviver ao caminho.

A crispação política com a qual o PSDB paralisa o governo é a mesma que o impede de se credenciar como alternativa imediata, segura e consistente para comandar a nação.

Até seus aliados carnais - bancos e grandes corporações - preferem não arriscar.

A verdade é que o desgaste que FHC condensa em Dilma atinge igualmente todos os potenciais presidenciáveis conservadores.

Eles foram contaminados equitativamente pela radicalização de uma ceva que durante anos demonizou a política, a presença do Estado na economia, os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos políticos.

Surpreende agora que a própria democracia esteja sendo acossada nas ruas pelas turbas inflamadas dos leitores de Veja, Folha, Globo, Estadão e assemelhados?

A borra descolou-se do fundo do caldeirão da história.

Aventureiros com viabilidade institucional zero, a exemplo de Ronaldo Caiado e Bolsonaro, ascendem em prestígio junto a uma classe média que já não tem pejo de associar ordem à ditadura e progresso, à caça aos petistas.

Sim, Serra e Aécio foram festejados no domingão conservador pelos que cobram um ‘salvador da pátria’.

Mas a intensidade das críticas que recebem - e que já atinge também o plantel da própria Globo - talvez explique a pressa de FH em liquidar o jogo antes que a criatura escape do criador.

Ao contrário do que o tucano simula, não é apenas Dilma que levita nesse equilíbrio de extremos.

Esse é o ponto que o conservadorismo inteligente do Financial Times enfatiza, mas o ressentimento mórbido de FHC não o deixa ver.

A dita ‘Agenda Brasil’, um X-tudo daquilo que um revival tucano gostaria de enfiar na goela do país - do fim do Mercosul à privatização do SUS, passando pela entrega do pré-sal - tampouco goza de chão firme para prosperar nesse ambiente.

Exceto se fosse imposta pela ‘intervenção constitucional militar’, uma criação genuína da ignorância política que agora transbordou seu conteúdo nas ruas.

Convencer o imaginário social das virtudes intrínsecas à troca do ‘populismo lulopetismo’, pela estado de exceção de direitos e conquistas sociais, porém, está longe de ser um passeio num domingo de sol.

Cada um dos 800 mil escudeiros do Estado mínimo que possam existir no país –conforme a estimativa da PM para as manifestações no dia 16— terá que convencer oitenta outros cidadãos de rendimentos mais modestos (leia: Elite branca era maioria esmagadora na Paulista) a renegar a sua vivência para acreditar na ciência dos mercados autorregulados.

Aquela segundo a qual a vida vai melhorar sem transporte público, sem escola pública, sem saúde pública, sem investimento público em segurança, sem crédito público para habitação, sem regulação do mercado de trabalho, sem previdência universal etc.

A tarefa dos 60 milhões que saíram da pobreza e dos que ascenderam na pirâmide de renda nos últimos 12 anos, porém, tampouco é trivial.

A sorte de brasileiros e brasileiras cujo futuro depende visceralmente de um poder discricionário, capaz de ordenar os mercados e os frutos do desenvolvimento para o bem comum, terá que ser decidida no escrutínio com os interesses das minorias abastadas.

A urna presidencial é o locus por excelência desse ajuste de contas.

Pelos motivos sabidos --transição de ciclo econômico, crise mundial, crise da Lava Jato, o cerco conservador e a rendição atabalhoada do governo ao cuore ortodoxo-- o veredito desse escrutínio em outubro de 2014 perdeu a força impositiva que carrega.

Em resumo, o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro precisa ser repactuado.

Se não é possível esperar três anos e três meses para fazê-lo, como lembra o Financial Times, tampouco a repactuação pelo golpe branco de FHC é crível.

Mentes menos fanatizadas pela própria biografia sabem o custo que uma ruptura desse tipo acarretaria ao país. Pode arrastá-lo para uma sucessão de conflitos intermináveis.

Portanto, é preciso erguer linhas de passagem para repactuar a nação com o seu futuro e o futuro do seu desenvolvimento.

Qual é o problema central do time progressista nesse jogo?

Não se preparou para ele ao longo dos últimos 12 anos.

Fez mais. Insistiu no erro quando ele já arrombara as portas da rotina.

A equivocada decisão de endossar a ‘objetividade’ dos mercados na definição dos ajustes que deveriam ter sido repactuados no processo eleitoral de 2014 facilitou a hegemonia golpista atual.

A opção pela estratégia publicitária na reeleição (que quase levou à derrota da candidatura Dilma) negligenciou mais uma vez a força e a centralidade política do protagonista principal do futuro que estava em jogo: os 60 milhões de brasileiros que ingressaram no mercado e na cidadania em uma década de governos progressistas.

Ao invés de ser corrigido, o equívoco economicista se aprofundou, uma vez instalado o novo mandato.

Ajustes cuja pertinência e ponderação só teriam viabilidade negociados com as forças sociais, foram anunciados unilateralmente.

Se afrontasse a coação dos mercados e da mídia naquele momento, o governo talvez não estivesse pagando um preço tão alto a ponto de ver esfarelar a confiança de suas bases.

A boa notícia é que não há mais espaço para insistir no mesmo erro.

O país não sairá do impasse atual se o sujeito do processo, aquele do qual depende o respaldo para se negociar com os interesses plutocráticos, permanecer alheio às negociações do seu destino.

Não, não é uma questão teórica, à margem das ruas.

Nunca como hoje a luta pela vida digna remeteu tão linearmente ao controle do poder de Estado, imobilizado pelo atual cerco conservador.

Único interlocutor capaz de dialogar com o ectoplasma da riqueza sem rosto, o Estado brasileiro depende de um vigoroso aggiornamento de democracia participativa para resgatar a energia sequestrada pelos interditos dos mercados.

Um exemplo? Baixar a taxa de juro.

Desde 2013, até o final deste ano, o Estado brasileiro terá transferido aos rentistas locais e estrangeiros R$ 1,03 trilhão de reais em juros da dívida pública.

Em um triênio, uma sangria quatro vezes superior à extraída em seis anos pela dívida externa, que quebrou o país entre 1979 e 1985. (leia: Teoria econômica e política econômica)

Outro desafio?

Elevar a produtividade e reindustrializar o país a partir do pre-sal.

Ou isso, ou a economia perderá a condição de gerar excedentes e receitas para investir e atender as demandas por direitos e vida digna.

Há um abismo a ser calafetado na guerra pela produtividade.

A frugal atenção dispensada à formação de quadros para o desenvolvimento foi a tônica do governo deste que agora decreta a ilegitimidade de Dilma.

FHC não assentou um único tijolo de escola técnica em oito anos em Brasília.

Para que escola técnica se a industrialização será aquela que o livre comércio da ALCA permitir? Para que se o destino do pre-sal for aquele acalentado pelo embaixador da Chevron, senador Jose Serra, junto à maior descoberta de petróleo no planeta dos últimos 30 anos?

Lula e Dilma fizeram 636 escolas técnicas até agora. Com o Prouni, o número de jovens matriculados nas universidades brasileiras passou de 500 mil para mais de 1,4 milhão.

É preciso radicalizar essa espiral e dotá-la da necessária qualidade.

Sem fundos públicos não ocorrerá.

A bonança recente do ciclo de commodities ofereceu ao Brasil uma década trufada em excedentes que ampliaram a margem de manobra para mitigar a perversão social criada pelo capitalismo no país.

Os dados são conhecidos.

Embora o dever de ofício midiático se esmere em negá-los, o fato é que todo o vapor da caldeira conservadora hoje se concentra em desmontar aquilo que seus porta-vozes negam existir.

Na paralisia decorrente desse impasse político, a sociedade corre o risco de avalizar soluções ‘técnicas, que na verdade a descredenciam a mover o passo seguinte da sua história.

Os riscos daí decorrentes se equivalem: num extremo, propugnar saídas tão simples quanto falsas; noutro, descartar qualquer opção alternativa ao ajuste draconiano exigido pelos mercados.

Não cabe ilusões.

Políticas de desenvolvimento não lograrão êxito no século XXI –ainda que os preços estejam alinhados, como quer Levy— se não forem providenciados instrumentos de proteção da sociedade, da produção e do trabalho contra a supremacia da lógica rentista.

Um passo necessário dessa construção consiste em dar um nome ao invisível.

Se Dilma, Lula e o PT continuarem a endossar ‘o’ ajuste como o sujeito da história, não há o que dizer às ruas, onde um pedaço da classe média já faz selfie com veículos de choque da PM.

O nome da crise é a riqueza que não reparte.

Não apenas o patrimônio acumulado.

Mas sobretudo as estruturas que a realimentam e a protegem a salvo de uma justiça tributária efetiva.

Sem nomear o obstáculo a ser vencido o governo corre o risco de gastar seu mandato esgrimindo sombras e fantasmas que o conduzirão ao socavão da irrelevância.

A riqueza que não reparte é ontologicamente avessa à construção de um destino compartilhado, exceto se induzida a isso por uma alavanca de coordenação histórica assentada em ampla negociação de metas, prazos, salvaguardas, concessões, ganhos e garantias de legitimidade social e democrática inquestionáveis.

Portanto, não se trata de inverter o sinal do golpe evocado por FHC, devolvendo-lhe na mesma moeda.

Trata-se, isto sim, de unificar o campo progressista em uma frente que o capacite a induzir o outro lado a sentar-se à mesa, negociar e fazer concessões.

Não há nada mais urgente hoje do que promover esse engajamento, para substituir a agenda do golpe pela da repactuação do desenvolvimento.

Na próxima 5ª feira, dia 20, às 17 horas, no Largo da Batata, em SP, ergue-se mais uma oportunidade para o PT, Lula e demais lideranças sociais assumirem a liderança desse processo.

Movimentos socais e sindicatos estarão reunidos ali para defender uma solução democrática e convergente para a crise brasileira.

O tempo urge: é pegar ou largar.

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