Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:
Em 11 de setembro de 1973, um golpe militar derrubava o presidente socialista Salvador Allende, eleito três anos antes no Chile. Allende saiu morto do Palácio de la Moneda, bombardeado pelo Exército. Poucos dias após, o antropólogo Darcy Ribeiro, amigo do presidente, publicou em vários países um texto crítico ao papel de parte da esquerda no fracasso da experiência chilena. Para Darcy, muita gente não percebeu a importância histórica do socialismo proposto por Allende, sem luta armada, e são co-responsáveis pelo golpe.
Alguns aspectos narrados por Darcy lembram bastante o Brasil que vivemos atualmente, embora não se possa dizer que o País esteja caminhando para o socialismo a não ser nos delírios da direita. Leia abaixo trechos do artigo, que pode ser conhecido na íntegra no livro Gentidades (editora LPM). De bônus, o curta documentário de Ken Loach que relaciona o 11 de setembro no Chile à derrubada das torres gêmeas em Nova York em 2001.
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Salvador Allende e a esquerda desvairada
Em 11 de setembro de 1973, um golpe militar derrubava o presidente socialista Salvador Allende, eleito três anos antes no Chile. Allende saiu morto do Palácio de la Moneda, bombardeado pelo Exército. Poucos dias após, o antropólogo Darcy Ribeiro, amigo do presidente, publicou em vários países um texto crítico ao papel de parte da esquerda no fracasso da experiência chilena. Para Darcy, muita gente não percebeu a importância histórica do socialismo proposto por Allende, sem luta armada, e são co-responsáveis pelo golpe.
Alguns aspectos narrados por Darcy lembram bastante o Brasil que vivemos atualmente, embora não se possa dizer que o País esteja caminhando para o socialismo a não ser nos delírios da direita. Leia abaixo trechos do artigo, que pode ser conhecido na íntegra no livro Gentidades (editora LPM). De bônus, o curta documentário de Ken Loach que relaciona o 11 de setembro no Chile à derrubada das torres gêmeas em Nova York em 2001.
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Salvador Allende e a esquerda desvairada
Por Darcy Ribeiro, Lima, setembro de 1973
Escrevo sobre um estadista. O mais lúcido com quem convivi e o mais combativo. Um estadista que deixa como legado para nossa reflexão a experiência revolucionária mais generosa e avançada do nosso tempo: edificar o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade.
(…)
Conheci Salvador Allende em 1964, quando ele nos foi visitar, a João Goulart e a seus ex-ministros, exilados no Uruguai. Sempre me recordarei das longas conversas que tivemos então. Record, sobretudo, o deslumbramento com que ouvi – eu era, então, um provinciano brasileiro, que só depois aprenderia a ser latino-americano – a lucidez e a paixão com que ele analisava e avaliava nosso fracasso.
Através de suas palavras, percebi, pela primeira vez, claramente, as dimensões continentais e mundiais do nosso fracasso e o seu terrível impacto sobre a luta de liberação da América Latina.
(…)
Meu sentimento sempre foi – e o é, desde agora – o de que Allende, no plano ideológico, era um homem só, sem ajuda. Incompreendido. Mesmo os chilenos mais próximos dele se surpreendiam a cada dia com a grandeza do homem que os incitava e comandava. Não lhes era fácil substituir a imagem corrente do senador, tantas vezes candidato à presidência, pela figura do estadista que nele reconheciam agora, surpresos e às vezes duvidosos. Mais difícil ainda, para muitos, era aceitar a sua liderança de estadista, dentro de um processo político, quando o que aspiravam na realidade era um comandante à frente de um grupo de ação direta.
Aquele homem sozinho encabeçava, delineava e dirigia o processo mais generoso e complexo do mundo moderno, elevando o Chile a alturas incomparáveis de criatividade teórica e a impensáveis ousadias de repensar tudo o que as esquerdas tinham como dogmas. Sua tarefa era nada menos que abrir uma rota nova – evolutiva – ao socialismo.
(…)
Para esta gigantesca tarefa político-ideológica, Allende estava só. Para uns, os ortodoxos, a via chilena era uma espécie de armadilha da história que punha em risco conquistas e seguranças duramente conquistadas em décadas de lutas. Apesar disso, foram eles os que melhor compreenderam o processo em sua especificidade e os que mais ajudaram , tanto a realizar suas potencialidades, como a reconhecer suas limitações. Mas isto é dizer muito pouco ainda quando, na realidade, os comunistas chilenos foram o único apoio sólido e seguro com que Allende contou em seus três anos de luta.
Para outros, os desvairados, não existia nenhuma via chilena. Na cegueira de seus olhos cegados por esquemas formalistas e no sectarismo de sua disposição unívoca para um voluntarismo, tão heróico quanto ineficaz, eles só queriam converter o Chile em cuba, concebida como único modelo possível de ação revolucionária. Além de visivelmente inaplicável às circunstâncias chilenas, o modelo que tinham em mente não era mais que uma má leitura teórica da experiência cubana. E, como tal, inaplicável em qualquer parte, porque si via nela a ação armada, fechando os olhos à complexa conjuntura política dentro da qual a ação guerrilheira teve ali, e só ali, lugar e eficácia.
(…)
Os socialistas, membros de um partido eleitoreiro, viviam do antigo, renovado e crescente prestígio popular de Allende: mas, vazios de uma ideologia própria, passaram a funcionar como uma caixa de ressonância dos desvairados, criando com o seu radicalismo verbal a sua inflexibilidade tática os maiores obstáculos à política do governo. De fato, a maioria de suas facções atuou mais contra Allende – através de denúncias despropositadas, de exigências infantis e de propostas provocativas – que contra o inimigo, jamais reconhecendo o caráter gradualista do processo chileno ou ajustando-se a seus requisitos específicos. Entregues a disputas estéreis com os comunistas, o socialistas punham nelas mais energias do que na luta concreta contra o inimigo comum.
(…)
O que vi foram muitos dos “melhores teóricos” – porque haviam lido e escrito mais esta tolice exegética que se autodenomina marxismo de vanguarda – vagando pelo Chile como se estivessem na lua, incapazes de perceber e de entender o processo revolucionário que tinham diante deles, porque para seus olhos cegos tratava-se de um mero “reformismo”.
(…)
Desde o primeiro momento, Allende percebeu com toda lucidez que eram falsos ou que não se aplicavam à via chilena alguns dos célebres dogmas das esquerdas desvairadas. Entre eles o de que se avança para o socialismo exclusivamente pela luta armada; o de que o socialismo se constrói sobre o caos econômico; e o de que é necessário derrubar primeiro toda a legalidade “burguesa” para abrir caminho para o socialismo.
O primeiro destes dogmas pressupunha a convicção de que entre o status quo e o socialismo estaria uma vitória militar sobre as forças armadas. Allende sabia que não podia enfrentá-las diretamente, e as via com maior objetividade. Primeiro, como uma burocracia tão disciplinada e hierarquizada que poderia, talvez, ser submetida aos poderes institucionais se se mantivesse a ordem constitucional. Segundo, como uma instituição eminentemente política, com tendências fascistas – por lealdades classistas, por sua constituição gerontocrática e seu doutrinamento anti-revolucionário – mas suscetível de ser ganha ou anulada politicamente pela ação disciplinada do povo organizado dentro de um movimento ao socialismo em democracia, pluralismo e liberdade.
(…)
Entretanto, para prosseguir neste controle institucional das forças armadas, seria necessário preencher um requisito indispensável: o de que Allende tivesse, efetivamente, o comando unificado sobre as esquerdas militantes e as pusesse em ação dentro do processo de transição pacífica ao socialismo. Isso ele jamais conseguiu. Os atos desesperados da esquerda desvairada, somados à inércia e à demagogia dos confusos líderes socialistas, contribuíram para minar estas condições, facilitando assim a conspiração de uma direita unida, francamente entregue à contra-revolução, e para isso apoiada internacionalmente através de toda ordem de sabotagens econômicas e financeiras, articuladas e desencadeadas com rigor científico para inviabilizar seu governo.
Nestas condições, as lideranças democratas-cristãs, aliadas à extrema direita, fizeram do Parlamento um órgão de provocação, chantagem e bloqueio ao poder executivo; ao mesmo tempo em que as altas hierarquias do poder judiciário questionavam a legalidade dos atos do governo. Simultaneamente seus aparelhos ideológicos levavam as camadas médias ao desespero, pelo terror de perder, não o que tinham –que era bem pouco– mas suas esperanças de enriquecimento e prestígio que, segundo se dizia, em um regime socialista lhes seriam completamente negadas.
(…)
Há muito o que aprender desta experiência única de repensar com originalidade os princípios da política econômica para conduzir um processo de transição ao socialismo, dentro da institucionalidade vigente. Entre suas vitórias estão: a de haver acabado com o desemprego; a elevação substancial do padrão de vida das camadas mais pobres; o aumento ponderável da produtividade industrial; a ativação da Reforma Agrária; a imposição do controle estatal sobre os bancos privados e o comércio exterior; a socialização das empresas-chave e, sobretudo, a recuperação para os chilenos das riquezas nacionais, começando pelo cobre, sujeito desde sempre às mãos estrangeiras.
Em três anos, Allende conseguiu mais por esta via, do que qualquer revolução socialista em igual período. Por isto é que, mesmo sendo governo, ganhou eleições, o que jamais havia ocorrido no Chile. Mas também levou ao desespero os privilegiados, desafiando-os a promover a contra-revolução como único modo de garantir a sua sobrevivência como classe hegemônica. Para isso, eles atuaram principalmente sobre os militares e sobre as classes médias cuja alianças lhes garantiria a vitória.
(…)
Este artigo é uma incitação para que meditemos sobre esta lição com o devido respeito por sua grandeza e com a coragem necessária à autocrítica. Todos nós, as esquerdas da América Latina e do mundo, fomos derrotados no Chile. Cada um de nós tem, consequentemente, a sua autocrítica a fazer, tanto pelo que fizemos de danoso ao processo chileno, como pelo que deixamos de fazer em seu apoio. Acusar apenas ao inimigo que nos venceu pela enumeração minuciosa de seus atos, apenas reitera a convicção generalizada sobre sua eficiência. Nossa tarefa é vencê-lo.
O que não pode ser posto em dúvida é que Allende explorou até os últimos limites as possibilidades que a história abriu aos chilenos de edificar o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade. E que a Unidade Popular teve possibilidades de vitória com respeito às quais a direita chilena e o imperialismo jamais duvidaram. Sua lição é ter nos indicado um caminho duro e difícil. Um caminho que exigirá, amanheça, dos que o retomarem, a mesma lucidez, inteireza, retitude e coragem com que Allende marchou para ele até a morte, com o propósito de, sobre sua derrota, abrir uma via vitoriosa ao socialismo. A via evolutiva, participatória, pluralista, parlamentar e democrática, apesar de tão dificultosa é a mais praticável em muitas conjunturas no mundo de hoje.
Com Che Guevara a história nos deu o herói-mártir do voluntarismo revolucionário que dignificou a imagem desgastada das lideranças da velha esquerda ortodoxa. Com Allende, a história nos dá o estadista combatente que chega à morte lutando, em seu esforço por abrir aos homens uma nova porta para o futuro, um acesso ao socialismo libertário que pode e que deve ser.
Ele será o inspirador dos que terão futuramente que lutar pelo socialismo, sob oposição parlamentar e debaixo do risco de um golpe militar. Oxalá, onde e quando isso ocorra, exista uma esquerda por fim politicamente madura e dessacralizada de dogmatismos, tão combativa quanto lúcida e sobretudo capacitada para ver objetivamente a situação em que atua e para aceitar e enfrentar as tarefas que a história lhe proponha.
Escrevo sobre um estadista. O mais lúcido com quem convivi e o mais combativo. Um estadista que deixa como legado para nossa reflexão a experiência revolucionária mais generosa e avançada do nosso tempo: edificar o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade.
(…)
Conheci Salvador Allende em 1964, quando ele nos foi visitar, a João Goulart e a seus ex-ministros, exilados no Uruguai. Sempre me recordarei das longas conversas que tivemos então. Record, sobretudo, o deslumbramento com que ouvi – eu era, então, um provinciano brasileiro, que só depois aprenderia a ser latino-americano – a lucidez e a paixão com que ele analisava e avaliava nosso fracasso.
Através de suas palavras, percebi, pela primeira vez, claramente, as dimensões continentais e mundiais do nosso fracasso e o seu terrível impacto sobre a luta de liberação da América Latina.
(…)
Meu sentimento sempre foi – e o é, desde agora – o de que Allende, no plano ideológico, era um homem só, sem ajuda. Incompreendido. Mesmo os chilenos mais próximos dele se surpreendiam a cada dia com a grandeza do homem que os incitava e comandava. Não lhes era fácil substituir a imagem corrente do senador, tantas vezes candidato à presidência, pela figura do estadista que nele reconheciam agora, surpresos e às vezes duvidosos. Mais difícil ainda, para muitos, era aceitar a sua liderança de estadista, dentro de um processo político, quando o que aspiravam na realidade era um comandante à frente de um grupo de ação direta.
Aquele homem sozinho encabeçava, delineava e dirigia o processo mais generoso e complexo do mundo moderno, elevando o Chile a alturas incomparáveis de criatividade teórica e a impensáveis ousadias de repensar tudo o que as esquerdas tinham como dogmas. Sua tarefa era nada menos que abrir uma rota nova – evolutiva – ao socialismo.
(…)
Para esta gigantesca tarefa político-ideológica, Allende estava só. Para uns, os ortodoxos, a via chilena era uma espécie de armadilha da história que punha em risco conquistas e seguranças duramente conquistadas em décadas de lutas. Apesar disso, foram eles os que melhor compreenderam o processo em sua especificidade e os que mais ajudaram , tanto a realizar suas potencialidades, como a reconhecer suas limitações. Mas isto é dizer muito pouco ainda quando, na realidade, os comunistas chilenos foram o único apoio sólido e seguro com que Allende contou em seus três anos de luta.
Para outros, os desvairados, não existia nenhuma via chilena. Na cegueira de seus olhos cegados por esquemas formalistas e no sectarismo de sua disposição unívoca para um voluntarismo, tão heróico quanto ineficaz, eles só queriam converter o Chile em cuba, concebida como único modelo possível de ação revolucionária. Além de visivelmente inaplicável às circunstâncias chilenas, o modelo que tinham em mente não era mais que uma má leitura teórica da experiência cubana. E, como tal, inaplicável em qualquer parte, porque si via nela a ação armada, fechando os olhos à complexa conjuntura política dentro da qual a ação guerrilheira teve ali, e só ali, lugar e eficácia.
(…)
Os socialistas, membros de um partido eleitoreiro, viviam do antigo, renovado e crescente prestígio popular de Allende: mas, vazios de uma ideologia própria, passaram a funcionar como uma caixa de ressonância dos desvairados, criando com o seu radicalismo verbal a sua inflexibilidade tática os maiores obstáculos à política do governo. De fato, a maioria de suas facções atuou mais contra Allende – através de denúncias despropositadas, de exigências infantis e de propostas provocativas – que contra o inimigo, jamais reconhecendo o caráter gradualista do processo chileno ou ajustando-se a seus requisitos específicos. Entregues a disputas estéreis com os comunistas, o socialistas punham nelas mais energias do que na luta concreta contra o inimigo comum.
(…)
O que vi foram muitos dos “melhores teóricos” – porque haviam lido e escrito mais esta tolice exegética que se autodenomina marxismo de vanguarda – vagando pelo Chile como se estivessem na lua, incapazes de perceber e de entender o processo revolucionário que tinham diante deles, porque para seus olhos cegos tratava-se de um mero “reformismo”.
(…)
Desde o primeiro momento, Allende percebeu com toda lucidez que eram falsos ou que não se aplicavam à via chilena alguns dos célebres dogmas das esquerdas desvairadas. Entre eles o de que se avança para o socialismo exclusivamente pela luta armada; o de que o socialismo se constrói sobre o caos econômico; e o de que é necessário derrubar primeiro toda a legalidade “burguesa” para abrir caminho para o socialismo.
O primeiro destes dogmas pressupunha a convicção de que entre o status quo e o socialismo estaria uma vitória militar sobre as forças armadas. Allende sabia que não podia enfrentá-las diretamente, e as via com maior objetividade. Primeiro, como uma burocracia tão disciplinada e hierarquizada que poderia, talvez, ser submetida aos poderes institucionais se se mantivesse a ordem constitucional. Segundo, como uma instituição eminentemente política, com tendências fascistas – por lealdades classistas, por sua constituição gerontocrática e seu doutrinamento anti-revolucionário – mas suscetível de ser ganha ou anulada politicamente pela ação disciplinada do povo organizado dentro de um movimento ao socialismo em democracia, pluralismo e liberdade.
(…)
Entretanto, para prosseguir neste controle institucional das forças armadas, seria necessário preencher um requisito indispensável: o de que Allende tivesse, efetivamente, o comando unificado sobre as esquerdas militantes e as pusesse em ação dentro do processo de transição pacífica ao socialismo. Isso ele jamais conseguiu. Os atos desesperados da esquerda desvairada, somados à inércia e à demagogia dos confusos líderes socialistas, contribuíram para minar estas condições, facilitando assim a conspiração de uma direita unida, francamente entregue à contra-revolução, e para isso apoiada internacionalmente através de toda ordem de sabotagens econômicas e financeiras, articuladas e desencadeadas com rigor científico para inviabilizar seu governo.
Nestas condições, as lideranças democratas-cristãs, aliadas à extrema direita, fizeram do Parlamento um órgão de provocação, chantagem e bloqueio ao poder executivo; ao mesmo tempo em que as altas hierarquias do poder judiciário questionavam a legalidade dos atos do governo. Simultaneamente seus aparelhos ideológicos levavam as camadas médias ao desespero, pelo terror de perder, não o que tinham –que era bem pouco– mas suas esperanças de enriquecimento e prestígio que, segundo se dizia, em um regime socialista lhes seriam completamente negadas.
(…)
Há muito o que aprender desta experiência única de repensar com originalidade os princípios da política econômica para conduzir um processo de transição ao socialismo, dentro da institucionalidade vigente. Entre suas vitórias estão: a de haver acabado com o desemprego; a elevação substancial do padrão de vida das camadas mais pobres; o aumento ponderável da produtividade industrial; a ativação da Reforma Agrária; a imposição do controle estatal sobre os bancos privados e o comércio exterior; a socialização das empresas-chave e, sobretudo, a recuperação para os chilenos das riquezas nacionais, começando pelo cobre, sujeito desde sempre às mãos estrangeiras.
Em três anos, Allende conseguiu mais por esta via, do que qualquer revolução socialista em igual período. Por isto é que, mesmo sendo governo, ganhou eleições, o que jamais havia ocorrido no Chile. Mas também levou ao desespero os privilegiados, desafiando-os a promover a contra-revolução como único modo de garantir a sua sobrevivência como classe hegemônica. Para isso, eles atuaram principalmente sobre os militares e sobre as classes médias cuja alianças lhes garantiria a vitória.
(…)
Este artigo é uma incitação para que meditemos sobre esta lição com o devido respeito por sua grandeza e com a coragem necessária à autocrítica. Todos nós, as esquerdas da América Latina e do mundo, fomos derrotados no Chile. Cada um de nós tem, consequentemente, a sua autocrítica a fazer, tanto pelo que fizemos de danoso ao processo chileno, como pelo que deixamos de fazer em seu apoio. Acusar apenas ao inimigo que nos venceu pela enumeração minuciosa de seus atos, apenas reitera a convicção generalizada sobre sua eficiência. Nossa tarefa é vencê-lo.
O que não pode ser posto em dúvida é que Allende explorou até os últimos limites as possibilidades que a história abriu aos chilenos de edificar o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade. E que a Unidade Popular teve possibilidades de vitória com respeito às quais a direita chilena e o imperialismo jamais duvidaram. Sua lição é ter nos indicado um caminho duro e difícil. Um caminho que exigirá, amanheça, dos que o retomarem, a mesma lucidez, inteireza, retitude e coragem com que Allende marchou para ele até a morte, com o propósito de, sobre sua derrota, abrir uma via vitoriosa ao socialismo. A via evolutiva, participatória, pluralista, parlamentar e democrática, apesar de tão dificultosa é a mais praticável em muitas conjunturas no mundo de hoje.
Com Che Guevara a história nos deu o herói-mártir do voluntarismo revolucionário que dignificou a imagem desgastada das lideranças da velha esquerda ortodoxa. Com Allende, a história nos dá o estadista combatente que chega à morte lutando, em seu esforço por abrir aos homens uma nova porta para o futuro, um acesso ao socialismo libertário que pode e que deve ser.
Ele será o inspirador dos que terão futuramente que lutar pelo socialismo, sob oposição parlamentar e debaixo do risco de um golpe militar. Oxalá, onde e quando isso ocorra, exista uma esquerda por fim politicamente madura e dessacralizada de dogmatismos, tão combativa quanto lúcida e sobretudo capacitada para ver objetivamente a situação em que atua e para aceitar e enfrentar as tarefas que a história lhe proponha.
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