Por Adriana Ancona de Faria, no blog O Cafezinho:
As ameaças de impeachment têm sido recorrentes desde o primeiro dia de mandato da presidente Dilma, nesta sua última eleição.
Algumas questões foram muito bem trabalhadas por Frederico de Almeida, no artigo que publicou ontem, dia 08 de outubro de 2015, no blog Justificando e que recebia o nome de “Impeachment é mais político que jurídico?”.
Este artigo demonstra com clareza os aspectos jurídicos e políticos de um impeachment, apontando que em um sistema presidencialista “o impeachment não é exclusivamente político, e por isso não pode ser confundido com a moção de desconfiança dos sistemas parlamentaristas, nem com o recall que existe, por exemplo, na Venezuela e (pasmem os críticos do “bolivarianismo”) em certos estados dos EUA. Ou seja: não basta a má avaliação popular ou a perda de apoio parlamentar para a interrupção do mandato; exige-se a comprovação de crime de responsabilidade e um processo de julgamento com direito ao contraditório, que embora seja conduzido pela Câmara (juizo de admissibilidade) e pelo Senado (julgamento efetivo), é presidido pelo presidente do STF (na fase de julgamento) e assume a forma conhecida dos procedimentos judiciais. Há ainda possibilidade de impeachment por crime comum, na qual, após a admissibilidade do procedimento pela Câmara, o julgamento se dá pelo STF – mas essa possibilidade sequer é cogitada no caso de Dilma Rousseff.
Isso não quer dizer, por outro lado, que o impeachment seja exclusivamente jurídico; tanto é que o juízo de admissibilidade e seu julgamento (no caso de crime de responsabilidade) se dá em um âmbito essencialmente político (o Congresso). A própria caracterização dos crimes de responsabilidade pela Constituição tem uma margem de imprecisão que só será preenchida por um juízo político”
Considerando as precisas colocações de Frederico de Almeida, além da boa análise realizada no artigo citado, tenho olhado a situação política brasileira com muita preocupação institucional frente à nossa democracia.
É evidente que um dos critérios básicos de um regime democrático é o respeito à soberania popular, entendida esta como o direito do povo eleger diretamente seus governantes. A presidente Dilma foi eleita diretamente pelo povo brasileiro, o que garante a legitimidade democrática de seu mandato, desde que ela não tenha incidido em algum crime, comum ou de responsabilidade, que nos termos constitucionais justifiquem a sua retirada do cargo. Assim como deve ser respeitado o processo jurídico-político estabelecido pela Constituição da República do Brasil e o conjunto normativo do ordenamento jurídico pátrio, sob o conceito de Estado Democrático de Direito.
Pois bem, o que se constata é que, no presidencialismo democrático definido pela Constituição brasileira, um governante não pode perder o cargo antes de finalizado o tempo de seu mandato, se não incorrer em crime.
Sem a ocorrência de crime, não basta a insatisfação popular, nem mesmo a falta de base de apoio congressual, para que o mandatário eleito seja retirado do exercício de seu cargo. O momento político escolhido para a retirada de um governante que demonstre falta de respaldo político-popular restringe-se ao processo eleitoral, quando finalizado o exercício de seu mandato. Esse não é um privilégio descabido do mandatário, mas uma proteção à força do voto frente ao sistema de governo presidencialista. O que se prestigia nesse mecanismo rigoroso de controle do mandato é o respeito à escolha popular, como a única via legítima de retirada legal do mandato de um presidente que não tenha cometido crime.
Diante dessa conclusão, os defensores da destituição do mandato da presidenta Dilma têm tentado caracterizar as condições legítimas de sua derrubada. A última tacada para construção da hipótese legal foi a rejeição das contas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), argumentando-se pela ocorrência das chamadas pedaladas fiscais da Presidenta em seu mandato passado, já que nada mais conseguiram apontar contra a presidente, apesar das ações heterodoxas do juiz Moro frente aos valores do devido processo legal, na denominada Operação Lava-jato.
Observe-se, ainda, que as denominadas pedaladas fiscais caracterizam-se como práticas recorrentes de governos pretéritos, acolhidas regularmente pelos mesmos órgãos fiscalizatórios do Estado.
Sem entrar no debate jurídico sobre o cabimento, ou não, das contas de mandato pretérito poderem fundamentar a hipótese de pedido de impeachment, o que me espanta ao pensar em nossa democracia é a tranquilidade com que os Poderes Públicos do Estado brasileiro não se intimidam em atuar de forma seletiva na configuração de um crime.
Diariamente, frente a enxurrada de denúncias que povoam a atuação dos representantes públicos do País, o que se verifica de forma inconteste é que as autoridades judiciais, ou político-fiscalizatórias do país (em harmonia com a mídia) assumem sem inibição que o entendimento jurídico da situação ensejadora da punição será matizado a depender daquele que realiza o ato supostamente caracterizador do fato criminoso e não pelo fato em si. Matiza-se a caracterização do crime, matiza-se o processamento da demanda, matiza-se o acolhimento ou não do processo, enfim, matiza-se se incrimina ou absolve quem se quer em qual e tal condição.
A seletividade no entendimento jurídico de um fato, a partir de quem o pratica, indica se há ou não estado de direito em um país. Se não há estado de direito em um país gestando o processo de destituição de um governante legitimamente eleito, sua derrubada será um golpe, mesmo que se empreste do nome de impeachment. Afinal, diante dessa condição, não se aferem as hipóteses constitucionais que possam legitimar uma eventual decisão destituidora do mandato, mas se cria a hipótese normativa do ponto de vista discursivo, apoiado em um ato de autoridade casuístico e direcionado a matar o inimigo.
Independentemente das qualidades ou defeitos do Governo Dilma, o fato é que desde o primeiro dia do mandato presidencial o país tem experimentado a tentativa de cunhar uma situação justificadora para a derrubada da Presidenta e, nesse processo de contínua construção de crise política, nossa democracia presidencialista vai sangrando sem ter atingido a idade adulta. E, mais uma vez, o Brasil não aceita jogar dentro das regras do jogo.
* Adriana Ancona de Faria é doutora em Direito do Estado e professora de Direito Constitucional da PUC-SP.
As ameaças de impeachment têm sido recorrentes desde o primeiro dia de mandato da presidente Dilma, nesta sua última eleição.
Algumas questões foram muito bem trabalhadas por Frederico de Almeida, no artigo que publicou ontem, dia 08 de outubro de 2015, no blog Justificando e que recebia o nome de “Impeachment é mais político que jurídico?”.
Este artigo demonstra com clareza os aspectos jurídicos e políticos de um impeachment, apontando que em um sistema presidencialista “o impeachment não é exclusivamente político, e por isso não pode ser confundido com a moção de desconfiança dos sistemas parlamentaristas, nem com o recall que existe, por exemplo, na Venezuela e (pasmem os críticos do “bolivarianismo”) em certos estados dos EUA. Ou seja: não basta a má avaliação popular ou a perda de apoio parlamentar para a interrupção do mandato; exige-se a comprovação de crime de responsabilidade e um processo de julgamento com direito ao contraditório, que embora seja conduzido pela Câmara (juizo de admissibilidade) e pelo Senado (julgamento efetivo), é presidido pelo presidente do STF (na fase de julgamento) e assume a forma conhecida dos procedimentos judiciais. Há ainda possibilidade de impeachment por crime comum, na qual, após a admissibilidade do procedimento pela Câmara, o julgamento se dá pelo STF – mas essa possibilidade sequer é cogitada no caso de Dilma Rousseff.
Isso não quer dizer, por outro lado, que o impeachment seja exclusivamente jurídico; tanto é que o juízo de admissibilidade e seu julgamento (no caso de crime de responsabilidade) se dá em um âmbito essencialmente político (o Congresso). A própria caracterização dos crimes de responsabilidade pela Constituição tem uma margem de imprecisão que só será preenchida por um juízo político”
Considerando as precisas colocações de Frederico de Almeida, além da boa análise realizada no artigo citado, tenho olhado a situação política brasileira com muita preocupação institucional frente à nossa democracia.
É evidente que um dos critérios básicos de um regime democrático é o respeito à soberania popular, entendida esta como o direito do povo eleger diretamente seus governantes. A presidente Dilma foi eleita diretamente pelo povo brasileiro, o que garante a legitimidade democrática de seu mandato, desde que ela não tenha incidido em algum crime, comum ou de responsabilidade, que nos termos constitucionais justifiquem a sua retirada do cargo. Assim como deve ser respeitado o processo jurídico-político estabelecido pela Constituição da República do Brasil e o conjunto normativo do ordenamento jurídico pátrio, sob o conceito de Estado Democrático de Direito.
Pois bem, o que se constata é que, no presidencialismo democrático definido pela Constituição brasileira, um governante não pode perder o cargo antes de finalizado o tempo de seu mandato, se não incorrer em crime.
Sem a ocorrência de crime, não basta a insatisfação popular, nem mesmo a falta de base de apoio congressual, para que o mandatário eleito seja retirado do exercício de seu cargo. O momento político escolhido para a retirada de um governante que demonstre falta de respaldo político-popular restringe-se ao processo eleitoral, quando finalizado o exercício de seu mandato. Esse não é um privilégio descabido do mandatário, mas uma proteção à força do voto frente ao sistema de governo presidencialista. O que se prestigia nesse mecanismo rigoroso de controle do mandato é o respeito à escolha popular, como a única via legítima de retirada legal do mandato de um presidente que não tenha cometido crime.
Diante dessa conclusão, os defensores da destituição do mandato da presidenta Dilma têm tentado caracterizar as condições legítimas de sua derrubada. A última tacada para construção da hipótese legal foi a rejeição das contas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), argumentando-se pela ocorrência das chamadas pedaladas fiscais da Presidenta em seu mandato passado, já que nada mais conseguiram apontar contra a presidente, apesar das ações heterodoxas do juiz Moro frente aos valores do devido processo legal, na denominada Operação Lava-jato.
Observe-se, ainda, que as denominadas pedaladas fiscais caracterizam-se como práticas recorrentes de governos pretéritos, acolhidas regularmente pelos mesmos órgãos fiscalizatórios do Estado.
Sem entrar no debate jurídico sobre o cabimento, ou não, das contas de mandato pretérito poderem fundamentar a hipótese de pedido de impeachment, o que me espanta ao pensar em nossa democracia é a tranquilidade com que os Poderes Públicos do Estado brasileiro não se intimidam em atuar de forma seletiva na configuração de um crime.
Diariamente, frente a enxurrada de denúncias que povoam a atuação dos representantes públicos do País, o que se verifica de forma inconteste é que as autoridades judiciais, ou político-fiscalizatórias do país (em harmonia com a mídia) assumem sem inibição que o entendimento jurídico da situação ensejadora da punição será matizado a depender daquele que realiza o ato supostamente caracterizador do fato criminoso e não pelo fato em si. Matiza-se a caracterização do crime, matiza-se o processamento da demanda, matiza-se o acolhimento ou não do processo, enfim, matiza-se se incrimina ou absolve quem se quer em qual e tal condição.
A seletividade no entendimento jurídico de um fato, a partir de quem o pratica, indica se há ou não estado de direito em um país. Se não há estado de direito em um país gestando o processo de destituição de um governante legitimamente eleito, sua derrubada será um golpe, mesmo que se empreste do nome de impeachment. Afinal, diante dessa condição, não se aferem as hipóteses constitucionais que possam legitimar uma eventual decisão destituidora do mandato, mas se cria a hipótese normativa do ponto de vista discursivo, apoiado em um ato de autoridade casuístico e direcionado a matar o inimigo.
Independentemente das qualidades ou defeitos do Governo Dilma, o fato é que desde o primeiro dia do mandato presidencial o país tem experimentado a tentativa de cunhar uma situação justificadora para a derrubada da Presidenta e, nesse processo de contínua construção de crise política, nossa democracia presidencialista vai sangrando sem ter atingido a idade adulta. E, mais uma vez, o Brasil não aceita jogar dentro das regras do jogo.
* Adriana Ancona de Faria é doutora em Direito do Estado e professora de Direito Constitucional da PUC-SP.
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