Por Maria do Rosário Nunes, na revista Fórum:
O ano de 2015 ficará marcado na Câmara dos Deputados por diversos retrocessos legislativos. O programa realizado pela gestão de Eduardo Cunha caracteriza-se por assegurar espaço total ao populismo penal mais rasteiro. Em um país que sofre todos os anos o luto pela morte de milhares de brasileiros, vítimas da violência, o discurso de aproveitadores com soluções milagrosas está sempre na ordem do dia. Só que os efeitos não serão de redução da violência, mas de maior recrudescimento de sua presença para a população.
Neste momento, está na mira dos conservadores o fim ao controle de armas no país, conquistado há 10 anos com a Lei que instituiu o Estatuto do Desarmamento. Uma Comissão Especial está concluindo a análise do projeto de lei (PL 3.722/12) que se aprovado vai estabelecer uma liberação perigosa das armas no país, uma medida perigosa e mortal. A defesa do projeto é feita com jargões e discursos inflamados por aqueles que se valem da dor das vítimas da violência para se promover. Mas as mudanças propostas revelam total descompromisso com a defesa da vida.
O que não deve ser desconsiderado é o poder de fogo econômico da indústria armamentista, que trabalha para estruturar as chamadas “bancadas da bala” tanto no Brasil como em outros países. As mudanças propostas na legislação brasileira servem a estes grupos e em nada se relacionam com os discursos por segurança com os quais a matéria é apresentada.
Atualmente, para adquirir registro e porte de arma, é preciso passar por teste psicológico e de manuseio, ter 25 anos completos, não possuir antecedentes criminais, não responder a processos e apresentar declaração demonstrando a efetiva necessidade de uso da arma. Nada mais adequado, do ponto de vista conceitual, se considerarmos que o Estado moderno é caracterizado pelo monopólio do uso legítimo da força, a ser exercido por seus profissionais de segurança pública.
Em suas observações sobre o contrato social, o filósofo Thomas Hobbes (1651) aponta que no estado de natureza, que é o de guerra de todos contra todos, é recorrente o uso da violência em prol da defesa pessoal, e o que se almeja ao nos constituirmos enquanto integrantes de uma sociedade é a segurança, a paz. Para ele, esta só é possível de ser alcançada por meio de um pacto social em que os indivíduos abram mão da liberdade ilimitada, incluindo, nesta, a liberdade de tirar a vida do outro.
Por óbvio que também superamos o Estado absolutista defendido por Hobbes. Na democracia, o próprio Estado não pode utilizar a força como bem entende, conta com regulamentações que promovem o respeito aos cidadãos e sua segurança, sem atuar por meio do terror do Leviatã.
Ciente de que a solução para as mazelas da violência não serão encontradas numa reedição do Código de Hamurabi e a Lei do Talião, integro a Frente Parlamentar pelo Controle de Armas, pela Vida e pela Paz, que luta contra a aprovação do Projeto de Lei nº 3.722/12. Este projeto praticamente destrói o Estatuto do Desarmamento ao liberar totalmente o porte de armas e munições e por isso mesmo, possui um potencial incrível para agravar o já dramático quadro de violência no país.
O PL, de autoria do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB/SC), transfere da Polícia Federal para a Polícia Civil a atribuição da emissão do porte, reduz de 25 para 21 anos a idade para a compra de armamento, transforma o registro em permanente e exclui o dispositivo que caçava a licença de quem portasse arma de fogo sob efeito de drogas e álcool. Com a nova lei, o armamento das guardas municipais, até agora restrito às grandes cidades, será estabelecido em todos os municípios do país, e policiais militares processados por crime com emprego de violência ou grave ameaça não terão mais seu porte de arma suspenso.
A última versão do substitutivo apresentado pelo relator da Comissão Especial Laudívio Carvalho, avança ao propor a manutenção da idade mínima de 25 anos. Mas o relatório não altera a estrutura do projeto de lei, e, em parte, aprofunda o escopo dos seus danos. O relator propõe que o dispositivo que previa a perda de porte de arma para denunciado por crime contra a vida seja retirado (no novo texto apenas condenados perderiam o porte), excetuando-se aqueles condenados por infração penal culposa, que manteriam o direito ao porte.
Outra modificação do relator assegura que a licença para a aquisição de armas de fogo e de munição de uso permitido será sempre concedida ao interessado que atender aos requisitos estabelecidos, sem nenhum tipo de avaliação pelo órgão expedidor. Prevê, ainda, a gratuidade de taxas necessárias à aquisição da primeira arma e a emissão de certificados necessários ao seu porte para proprietários e trabalhadores residentes na área rural, e para os que se declararem pobres, um verdadeiro incentivo à proliferação de armas no país.
Segundo o Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA), a política de controle de armas poupou mais de 160 mil vidas no Brasil entre 2004 e 2012, sendo que 31 mil apenas em 2012. Além disto, o Estatuto do Desarmamento foi responsável pela queda de 12,6% nas taxas de homicídio do país.
Mesmo nos Estados Unidos da América, o único país do mundo em que o direito ao porte de armas é garantido pela Constituição, e que representa 42% da propriedade de armas por civis em todo mundo, o tema do controle de armas passou a ser debatido após mais um caso de chacina no interior de estabelecimento de ensino, tão recorrente na história daquele país. Na Austrália, após a drástica redução da comercialização de armamentos, em cinco anos a taxa de homicídios por arma de fogo diminuiu 50%.
Dados do Mapa da Violência 2014 mostram um crescimento de 13,4% nos registros de homicídios em comparação aos números de 2002, mostram também que as principais vítimas são jovens do sexo masculino e negros. Ao todo, foram 30.072 jovens, com idade entre 15 e 29 anos, vítimas de homicídio, 53,4% do total de mortes desse tipo no país.
Hoje, 63,9% dos homicídios no Brasil são ocasionados por armas de fogo e diversos estudos apontam que é residual a taxa de sucesso no uso defensivo de armas. Ao contrário, pessoas despreparadas que se sentem capazes de se defender em virtude do seu armamento, reagem, ampliando a possibilidade de serem vítimas fatais. Nos lares, muitas vezes, o que supostamente deveria servir para proteger a família se volta contra esta, por conta do fácil acesso e da curiosidade de crianças e adolescentes.
No Brasil, parte significativa dos homicídios acontece por motivos fúteis (brigas de bar, trânsito e outras). Este tipo de conflito pode aumentar seu potencial letal com a adição de armas de fogo, bem como casos de violência doméstica podem, facilmente, se transformar em feminicídio.
Não há justificativa razoável para a alteração dessa legislação e é um disparate afirmar que a medida trata de um novo mecanismo de defesa das pessoas ou da sociedade. É preciso que se diga que aumentar a proliferação de armas só aumentará a violência! A equação é simples: mais armas, mais mortes violentas.
* Maria Do Rosário Nunes é deputada federal (PT/RS).
O ano de 2015 ficará marcado na Câmara dos Deputados por diversos retrocessos legislativos. O programa realizado pela gestão de Eduardo Cunha caracteriza-se por assegurar espaço total ao populismo penal mais rasteiro. Em um país que sofre todos os anos o luto pela morte de milhares de brasileiros, vítimas da violência, o discurso de aproveitadores com soluções milagrosas está sempre na ordem do dia. Só que os efeitos não serão de redução da violência, mas de maior recrudescimento de sua presença para a população.
Neste momento, está na mira dos conservadores o fim ao controle de armas no país, conquistado há 10 anos com a Lei que instituiu o Estatuto do Desarmamento. Uma Comissão Especial está concluindo a análise do projeto de lei (PL 3.722/12) que se aprovado vai estabelecer uma liberação perigosa das armas no país, uma medida perigosa e mortal. A defesa do projeto é feita com jargões e discursos inflamados por aqueles que se valem da dor das vítimas da violência para se promover. Mas as mudanças propostas revelam total descompromisso com a defesa da vida.
O que não deve ser desconsiderado é o poder de fogo econômico da indústria armamentista, que trabalha para estruturar as chamadas “bancadas da bala” tanto no Brasil como em outros países. As mudanças propostas na legislação brasileira servem a estes grupos e em nada se relacionam com os discursos por segurança com os quais a matéria é apresentada.
Atualmente, para adquirir registro e porte de arma, é preciso passar por teste psicológico e de manuseio, ter 25 anos completos, não possuir antecedentes criminais, não responder a processos e apresentar declaração demonstrando a efetiva necessidade de uso da arma. Nada mais adequado, do ponto de vista conceitual, se considerarmos que o Estado moderno é caracterizado pelo monopólio do uso legítimo da força, a ser exercido por seus profissionais de segurança pública.
Em suas observações sobre o contrato social, o filósofo Thomas Hobbes (1651) aponta que no estado de natureza, que é o de guerra de todos contra todos, é recorrente o uso da violência em prol da defesa pessoal, e o que se almeja ao nos constituirmos enquanto integrantes de uma sociedade é a segurança, a paz. Para ele, esta só é possível de ser alcançada por meio de um pacto social em que os indivíduos abram mão da liberdade ilimitada, incluindo, nesta, a liberdade de tirar a vida do outro.
Por óbvio que também superamos o Estado absolutista defendido por Hobbes. Na democracia, o próprio Estado não pode utilizar a força como bem entende, conta com regulamentações que promovem o respeito aos cidadãos e sua segurança, sem atuar por meio do terror do Leviatã.
Ciente de que a solução para as mazelas da violência não serão encontradas numa reedição do Código de Hamurabi e a Lei do Talião, integro a Frente Parlamentar pelo Controle de Armas, pela Vida e pela Paz, que luta contra a aprovação do Projeto de Lei nº 3.722/12. Este projeto praticamente destrói o Estatuto do Desarmamento ao liberar totalmente o porte de armas e munições e por isso mesmo, possui um potencial incrível para agravar o já dramático quadro de violência no país.
O PL, de autoria do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB/SC), transfere da Polícia Federal para a Polícia Civil a atribuição da emissão do porte, reduz de 25 para 21 anos a idade para a compra de armamento, transforma o registro em permanente e exclui o dispositivo que caçava a licença de quem portasse arma de fogo sob efeito de drogas e álcool. Com a nova lei, o armamento das guardas municipais, até agora restrito às grandes cidades, será estabelecido em todos os municípios do país, e policiais militares processados por crime com emprego de violência ou grave ameaça não terão mais seu porte de arma suspenso.
A última versão do substitutivo apresentado pelo relator da Comissão Especial Laudívio Carvalho, avança ao propor a manutenção da idade mínima de 25 anos. Mas o relatório não altera a estrutura do projeto de lei, e, em parte, aprofunda o escopo dos seus danos. O relator propõe que o dispositivo que previa a perda de porte de arma para denunciado por crime contra a vida seja retirado (no novo texto apenas condenados perderiam o porte), excetuando-se aqueles condenados por infração penal culposa, que manteriam o direito ao porte.
Outra modificação do relator assegura que a licença para a aquisição de armas de fogo e de munição de uso permitido será sempre concedida ao interessado que atender aos requisitos estabelecidos, sem nenhum tipo de avaliação pelo órgão expedidor. Prevê, ainda, a gratuidade de taxas necessárias à aquisição da primeira arma e a emissão de certificados necessários ao seu porte para proprietários e trabalhadores residentes na área rural, e para os que se declararem pobres, um verdadeiro incentivo à proliferação de armas no país.
Segundo o Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA), a política de controle de armas poupou mais de 160 mil vidas no Brasil entre 2004 e 2012, sendo que 31 mil apenas em 2012. Além disto, o Estatuto do Desarmamento foi responsável pela queda de 12,6% nas taxas de homicídio do país.
Mesmo nos Estados Unidos da América, o único país do mundo em que o direito ao porte de armas é garantido pela Constituição, e que representa 42% da propriedade de armas por civis em todo mundo, o tema do controle de armas passou a ser debatido após mais um caso de chacina no interior de estabelecimento de ensino, tão recorrente na história daquele país. Na Austrália, após a drástica redução da comercialização de armamentos, em cinco anos a taxa de homicídios por arma de fogo diminuiu 50%.
Dados do Mapa da Violência 2014 mostram um crescimento de 13,4% nos registros de homicídios em comparação aos números de 2002, mostram também que as principais vítimas são jovens do sexo masculino e negros. Ao todo, foram 30.072 jovens, com idade entre 15 e 29 anos, vítimas de homicídio, 53,4% do total de mortes desse tipo no país.
Hoje, 63,9% dos homicídios no Brasil são ocasionados por armas de fogo e diversos estudos apontam que é residual a taxa de sucesso no uso defensivo de armas. Ao contrário, pessoas despreparadas que se sentem capazes de se defender em virtude do seu armamento, reagem, ampliando a possibilidade de serem vítimas fatais. Nos lares, muitas vezes, o que supostamente deveria servir para proteger a família se volta contra esta, por conta do fácil acesso e da curiosidade de crianças e adolescentes.
No Brasil, parte significativa dos homicídios acontece por motivos fúteis (brigas de bar, trânsito e outras). Este tipo de conflito pode aumentar seu potencial letal com a adição de armas de fogo, bem como casos de violência doméstica podem, facilmente, se transformar em feminicídio.
Não há justificativa razoável para a alteração dessa legislação e é um disparate afirmar que a medida trata de um novo mecanismo de defesa das pessoas ou da sociedade. É preciso que se diga que aumentar a proliferação de armas só aumentará a violência! A equação é simples: mais armas, mais mortes violentas.
* Maria Do Rosário Nunes é deputada federal (PT/RS).
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