Por Moara Crivelente, no site Vermelho:
Clássico da crítica ao colonialismo e à configuração do mundo pelo pensamento hegemônico “ocidental”, o livro de Edward Said, "Orientalismo", volta à tona numa ação inusitada e contestatória. Na década de 1970, Said abordou o movimento colonialista na construção da "ideia" de "Oriente" - que é "outro", diverso. Mais recentemente, um grupo de artistas resolveu aproveitar uma oportunidade para contestar a representação do árabe, ou do Islã, "intervindo" numa série de televisão estadunidense.
Três artistas árabes foram contratados pela produção de uma famosa série televisiva “made in USA”, intitulada “Homeland” – “Pátria”, em inglês, termo usado também nos títulos de aparatos securitários nos Estados Unidos. Por curiosidade e contextualização, caso se faça uma busca na página do Departamento de Segurança Interna, ou “da Pátria” (“Department of Homeland Security”), a função do órgão estadunidense é: “assegurar a nação contra as muitas ameaças que enfrentamos.” O mote é “Nossos deveres são abrangentes, e nosso objetivo é claro: manter a América segura”, e é claro que um dos principais focos é o “terrorismo”.
“Homeland é Racista”
O “terrorismo”, diga-se de passagem, é a relativamente nova representação do “Oriente” no imaginário “ocidental”, cuja hegemonia – inclusive em centros acadêmicos e órgãos de poder no próprio “Oriente” – é garantida não apenas pelas intervenções econômicas, políticas e militares ocidentais como também pela academia e pela mídia oligopolizada.
Escrevendo na década de 1970, Edward Said avalia o extenso caminho do pensamento colonialista – e neocolonialista – na representação ou construção do “Oriente” como conceito, e nisso inclui não apenas os locais situados a Leste do referente colonizador, como também a África e até a América Latina. O “Oriente”, assim, é aquele “outro” diferente, “exótico” ou “perigoso”, e que precisa ser civilizado. Antes, através da colonização, hoje, através das intervenções militares ou do cerco econômico e político, em prol da “democracia”.
“Homeland” é uma série estadunidense baseada na israelense “Hatufim”. O plote inicial é centrado no retorno do fuzileiro Nicolas Brody, que volta aos Estados Unidos como herói após ter passado oito anos como refém da rede Al-Qaeda no Iraque. Entretanto, uma oficial da Agência Central de Inteligência (CIA), representada como alguém que sofre de bipolaridade, desconfia de que o fuzileiro transformara-se no próprio inimigo, representando agora uma “ameaça” aos EUA.
Como não podia deixar de ser, sua saga a leva aos “rincões” do Oriente Médio. Já na quinta temporada, entretanto, a personagem central, Carrie Mathison, agora está em Berlim e é contratada por uma empresa privada de segurança, um ramo em ascensão vertiginosa no aparato securitário militarizado, mas presta serviços a uma organização “humanitária”, um ramo também lucrativo.
A série foi alvo de diversas críticas por uma representação preconceituosa e “orientalista”, inclusive do Islã. Até mesmo o governo libanês carregou contra os produtores, quando uma das ruas da capital, Beirute, foi mostrada como um beco, fértil para atividades terroristas. A Rua 31 (شارع٣١), ou Hamra, que esta colunista teve a oportunidade de conhecer, é na verdade bastante moderna e culturalmente diversa, um verdadeiro ponto turístico, antigo ponto de encontro entre intelectuais e cenário do impulso à resistência contra a invasão israelense de 1982.
Nesta temporada, iniciada em 4 de outubro, o tema central será o novo monstro oriental, o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” (EIIL). Incluirá as investidas contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o caso de Edward Snowden, ex-técnico da CIA e da Agência Nacional de Segurança (NSA) ainda asilado em Moscou após ter revelado a prática estadunidense da espionagem global.
Um dos pontos de partida inicial é um campo de refugiados sírios, e é aí que a atuação dos artistas encontra uma oportunidade. Convidados para dar autenticidade ao cenário, os artistas, Heba Amin, Caram Kapp e Don Karl, o “Stone”, resolveram responder ao pedido para desenhar nas paredes motes específicos em árabe. Mas em alternativa, o principal, noticiado até mesmo pelo diário britânico The Guardian, e que apareceu durante a exibição de um episódio, foi: “Homeland é racista”.
“Desde o primeiro episódio a série sugere que Al-Qaeda é na verdade um negócio iraniano,” diz a página pessoal de Heba Amin. Segundo a série, a rede não só é ligada ao partido e movimento de resistência libanês Hezbollah como seria também um instrumento de vingança do Irã contra os EUA. “Agora, o alvo é a liberdade de informação e a privacidade”, escreve Amin, Kapp e Stone, “representado como os informantes, o Estado Islâmico e o Islã xiita,” exatamente o majoritariamente professado no Irã e pelo Hezbollah.
“Homeland mantém a dicotomia entre o protetor fotogênico, majoritariamente branco e americano contra a ameaça muçulmana malvada e retrógrada,” dizem os artistas. O conteúdo do que estava escrito nas paredes não preocupou os produtores: para eles, “a escrita árabe é apenas um visual suplementar que completa a fantasia-horror do Oriente Médio, uma imagem de desumanização de uma região inteira, com figuras menos que humanas, vestidas de burcas negras e, nesta temporada, refugiados.”
Se antes o “orientalismo” servira – e impulsionara – a colonização, hoje explica as intervenções, a derrubada de governos, o acosso e a militarização da segurança contra o “outro”, principalmente na televisão. E gera grande audiência com isso.
Clássico da crítica ao colonialismo e à configuração do mundo pelo pensamento hegemônico “ocidental”, o livro de Edward Said, "Orientalismo", volta à tona numa ação inusitada e contestatória. Na década de 1970, Said abordou o movimento colonialista na construção da "ideia" de "Oriente" - que é "outro", diverso. Mais recentemente, um grupo de artistas resolveu aproveitar uma oportunidade para contestar a representação do árabe, ou do Islã, "intervindo" numa série de televisão estadunidense.
Três artistas árabes foram contratados pela produção de uma famosa série televisiva “made in USA”, intitulada “Homeland” – “Pátria”, em inglês, termo usado também nos títulos de aparatos securitários nos Estados Unidos. Por curiosidade e contextualização, caso se faça uma busca na página do Departamento de Segurança Interna, ou “da Pátria” (“Department of Homeland Security”), a função do órgão estadunidense é: “assegurar a nação contra as muitas ameaças que enfrentamos.” O mote é “Nossos deveres são abrangentes, e nosso objetivo é claro: manter a América segura”, e é claro que um dos principais focos é o “terrorismo”.
“Homeland é Racista”
O “terrorismo”, diga-se de passagem, é a relativamente nova representação do “Oriente” no imaginário “ocidental”, cuja hegemonia – inclusive em centros acadêmicos e órgãos de poder no próprio “Oriente” – é garantida não apenas pelas intervenções econômicas, políticas e militares ocidentais como também pela academia e pela mídia oligopolizada.
Escrevendo na década de 1970, Edward Said avalia o extenso caminho do pensamento colonialista – e neocolonialista – na representação ou construção do “Oriente” como conceito, e nisso inclui não apenas os locais situados a Leste do referente colonizador, como também a África e até a América Latina. O “Oriente”, assim, é aquele “outro” diferente, “exótico” ou “perigoso”, e que precisa ser civilizado. Antes, através da colonização, hoje, através das intervenções militares ou do cerco econômico e político, em prol da “democracia”.
“Homeland” é uma série estadunidense baseada na israelense “Hatufim”. O plote inicial é centrado no retorno do fuzileiro Nicolas Brody, que volta aos Estados Unidos como herói após ter passado oito anos como refém da rede Al-Qaeda no Iraque. Entretanto, uma oficial da Agência Central de Inteligência (CIA), representada como alguém que sofre de bipolaridade, desconfia de que o fuzileiro transformara-se no próprio inimigo, representando agora uma “ameaça” aos EUA.
Como não podia deixar de ser, sua saga a leva aos “rincões” do Oriente Médio. Já na quinta temporada, entretanto, a personagem central, Carrie Mathison, agora está em Berlim e é contratada por uma empresa privada de segurança, um ramo em ascensão vertiginosa no aparato securitário militarizado, mas presta serviços a uma organização “humanitária”, um ramo também lucrativo.
A série foi alvo de diversas críticas por uma representação preconceituosa e “orientalista”, inclusive do Islã. Até mesmo o governo libanês carregou contra os produtores, quando uma das ruas da capital, Beirute, foi mostrada como um beco, fértil para atividades terroristas. A Rua 31 (شارع٣١), ou Hamra, que esta colunista teve a oportunidade de conhecer, é na verdade bastante moderna e culturalmente diversa, um verdadeiro ponto turístico, antigo ponto de encontro entre intelectuais e cenário do impulso à resistência contra a invasão israelense de 1982.
Nesta temporada, iniciada em 4 de outubro, o tema central será o novo monstro oriental, o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” (EIIL). Incluirá as investidas contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o caso de Edward Snowden, ex-técnico da CIA e da Agência Nacional de Segurança (NSA) ainda asilado em Moscou após ter revelado a prática estadunidense da espionagem global.
Um dos pontos de partida inicial é um campo de refugiados sírios, e é aí que a atuação dos artistas encontra uma oportunidade. Convidados para dar autenticidade ao cenário, os artistas, Heba Amin, Caram Kapp e Don Karl, o “Stone”, resolveram responder ao pedido para desenhar nas paredes motes específicos em árabe. Mas em alternativa, o principal, noticiado até mesmo pelo diário britânico The Guardian, e que apareceu durante a exibição de um episódio, foi: “Homeland é racista”.
“Desde o primeiro episódio a série sugere que Al-Qaeda é na verdade um negócio iraniano,” diz a página pessoal de Heba Amin. Segundo a série, a rede não só é ligada ao partido e movimento de resistência libanês Hezbollah como seria também um instrumento de vingança do Irã contra os EUA. “Agora, o alvo é a liberdade de informação e a privacidade”, escreve Amin, Kapp e Stone, “representado como os informantes, o Estado Islâmico e o Islã xiita,” exatamente o majoritariamente professado no Irã e pelo Hezbollah.
“Homeland mantém a dicotomia entre o protetor fotogênico, majoritariamente branco e americano contra a ameaça muçulmana malvada e retrógrada,” dizem os artistas. O conteúdo do que estava escrito nas paredes não preocupou os produtores: para eles, “a escrita árabe é apenas um visual suplementar que completa a fantasia-horror do Oriente Médio, uma imagem de desumanização de uma região inteira, com figuras menos que humanas, vestidas de burcas negras e, nesta temporada, refugiados.”
Se antes o “orientalismo” servira – e impulsionara – a colonização, hoje explica as intervenções, a derrubada de governos, o acosso e a militarização da segurança contra o “outro”, principalmente na televisão. E gera grande audiência com isso.
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