Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:
Nos Estados Unidos, os negros têm quase quatro vezes mais chances de serem presos por causa de maconha do que os brancos, embora fumem tantos baseados quanto os primeiros. No Brasil, a maioria dos presos por pequenas quantidades de droga são jovens negros. O preconceito com o consumo de maconha embute, ao longo da história, um componente racista e classista. Era fumo de pobre, para começo de conversa, um “vício nada elegante” contra os finos vícios sociais da elite, como revela a excelente tese “Fumo de Negro”: a Criminalização da Maconha no Brasil, de Luísa Gonçalves Saad, da pós em História da UFBA.
Enquanto os bacanas baforavam tabaco e tomavam seus licores, os negros fumavam maconha. O problema foi quando alguns bacanas mais espertos descobriram a diamba (ou liamba, ou riamba, ou pito-de-pango, outros nomes para a maconha) –e curtiram. “Já disseminado entre as ‘classes mais pobres e quase incultas dos nossos sertões’, onde fazia ‘sua obra destruidora’, a diamba tendia ‘a entrar para o rol dos vícios elegantes’. Havia preocupação semelhante de que outros ‘vícios do povo’, como o candomblé e a capoeira, ‘subissem’ para a dita ‘boa sociedade'”, narra a pesquisadora. Melhor proibir.
Médicos, principalmente psiquiatras, trataram de dar o alarme sobre os “malefícios” da droga, que até então era cantada pelos negros como uma bênção. Luísa Saad relembra o depoimento de um usuário “pardo” de 50 anos sobre a maconha: “Eu não fumo por deboche, ela (a maconha) me dá a luz, ela me tem salvado muitas vêzes. Liamba dá grande vida, sabe o que faz. Estou dizendo que ela é uma grande professôra… A maconha é uma erva que protege tanto quanto um santo, tem a mesma irradiação que um espírito.”
Os “especialistas”, ao contrário, afirmavam que a maconha fora trazida ao Brasil pelos negros (coisa que nunca se soube ao certo) e colocava em jogo “a eugenia, a pureza da raça”. Pior: o negro “estragava” no vício o “robusto organismo”, perfeito para ser explorado pelos brancos de sol a sol. O maconheiro era “incapaz para todo trabalho, não busca senão obedecer à tirania do seu vício”, dizia um dos maiores inimigos da maconha no país, o médico e político José Rodrigues da Costa Dória (1857-1938).
“A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva”, escreveu o conservador médico sergipano.
Dória, adepto das teorias eugenistas de superioridade entre as raças de Cesare Lombroso, também as aplicava às mulheres.
O médico culpava os negros por nos ter legado “o vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo de Angola, maconha e diamba”, conta o professor de História da Unesp Jean Marcel de Carvalho França no livro História da Maconha no Brasil (Três Estrelas).
Eu entrevistei Jean Marcel por email sobre o assunto.
Os negros foram de fato responsáveis pela introdução e disseminação do uso da cannabis no Brasil ou isto é um preconceito?
É difícil precisar. Há, sem dúvida, entre os negros trazidos de certas regiões da África, ao longo do século 16, conhecimento do uso recreativo da cannabis. Todavia, os africanos não eram os únicos: muitos marinheiros portugueses conheciam e utilizavam a cannabis, hábito que traziam dos portos africanos, sem dúvida, mas sobretudo dos portos da Índia.
O fato de a erva estar associada aos negros – aos pobres – a fez mais perseguida?
Esta é uma associação do século 20, quando a cannabis começa a se tornar um problema social, um caso de polícia. Antes disso, a droga e o hábito de consumi-la não despertam interesse de ninguém. Ao longo do período colonial e mesmo do século 19, a cannabis é uma droga de pobres (o tabaco e a cachaça são consumidos por gente de mais posses), sem dúvida, mas não é ainda o que mais tarde denominaríamos um problema social. É um meio de diversão, sem maior importância, da gente pobre e negra.
Você mostra no livro que muitos médicos, sobretudo psiquiatras, brasileiros tiveram desde o começo uma posição furiosamente contrária, bem pouco científica, até, sobre a maconha. Foi grande a influência deles na criminalização da cannabis?
É importante salientar que tais psiquiatras atendem às exigências de cientificidade de seu tempo, um tempo de teorias eugênicas em alta, e são pioneiros na tematização dos males da maconha, pois, ao lado dos egípcios, foram os primeiros a fazerem do canabismo um problema social grave (e internacional). Mais do que influência, pois, estes homens criaram socialmente o vício do canabismo (vícios e virtudes são criados socialmente) e toda a gama de problemas a ele associados.
Também estes médicos eram movidos por preconceito racial ao condenar a maconha?
Certamente não no sentido que entendemos hoje. Falamos de um tempo em que a hierarquia entre raças e civilizações fazia parte do senso comum. A cannabis foi construída como um hábito de raças atrasadas (as franjas da civilização, como dizia Arthur Ramos), hábito capaz de contaminar o modelo de civilização, modelo europeu, bem entendido, que se queria aqui implantar.
Houve doutores a defender que extirpar a maconha, destruindo toda e qualquer plantação, era uma questão de salvar “a eugenia, a pureza da raça”. Como você interpreta essa frase?
O espírito é aquele que apontei na questão acima: a maconha, um hábito herdado de uma civilização atrasada (africana), poderia contaminar e degenerar a todos, pretos e brancos. O grande medo, ao menos retórico, destes doutores do início do século é que a maconha se torne um “vício elegante”, de gente “bem nascida”. O perigo, o que degeneraria a civilização e a raça, era a propagação do vício para além das tais franjas da sociedade que mencionei.
Hoje em dia, a maconha tem muitos usuários (e defensores) entre brancos da classe média. No entanto, se alguém é preso por causa de maconha continuam a ser os negros. Racismo e maconha ainda andam juntos?
Creio que as estatísticas apontam para os pobres, não necessariamente negros. Do ponto de vista simbólico, inclusive, ao longo dos anos 60 e 70, a associação entre cultura negra e cannabis passava longe do senso comum do brasileiro (inclusive da polícia). Era um vício que vinha de fora e atingia, e isso preocupava, a “fina flor da sociedade” (jovens, artistas, universitários…). O pobre, do ponto de vista da ordem, fornece a droga; eis o grande problema. Os anos 80, e a emergência das denominadas teorias da diferença – que penetraram no Brasil pós-abertura –, refizeram a ligação, isto é, retomaram os elos entre canabismo e tradições negras, invertendo a polaridade de outrora – deve-se aceitar socialmente a prática por ser uma prática da cultura negra (multicultural), condená-la é condenar a diversidade cultural que nos caracteriza.
Qual a sua posição em relação à descriminalização da maconha?
A bem da verdade, sou por uma legalização plena da cannabis, inclusive o seu uso recreativo. Mas não creio que o melhor modo de o fazer seja por meio de uma decisão de juízes do STF, prescindindo de uma ampla e objetiva discussão pública, como foi realizada no Uruguai e em alguns estados americanos, por exemplo.
Em sua opinião, a descriminalização reduzirá esse aspecto racista e classista em relação à maconha ou o preconceito permanecerá?
A cannabis, no senso comum do brasileiro deste início de século 21, não é mais propriamente uma droga de pobres e negros. Teríamos que incluir aí, hoje, universitários, artistas, excêntricos, marginais de vários gêneros, jovens de baladas, enfim, os canabistas são um grupo muitíssimo diversificado aos olhos do brasileiro médio. A grande vantagem da descriminalização ou mesmo da legalização, a meu ver, é outra: a desarticulação do tráfico, que trará um esvaziamento das cadeias e uma diminuição da violência na periferia das grandes e médias cidades do país, o que, neste caso, é o mesmo que dizer que poupará milhares de jovens da morte ou de consumirem a sua juventude no sistema carcerário. Além disso, poderemos dar um destino decente (educação e saúde, por exemplo) aos impostos que podem ser cobrados sobre esse negócio milionário.
LIVRO: História da Maconha no Brasil
AUTOR: Jean Marcel de Carvalho França
EDITORA: Três Estrelas (152 págs., R$23,90)
Nos Estados Unidos, os negros têm quase quatro vezes mais chances de serem presos por causa de maconha do que os brancos, embora fumem tantos baseados quanto os primeiros. No Brasil, a maioria dos presos por pequenas quantidades de droga são jovens negros. O preconceito com o consumo de maconha embute, ao longo da história, um componente racista e classista. Era fumo de pobre, para começo de conversa, um “vício nada elegante” contra os finos vícios sociais da elite, como revela a excelente tese “Fumo de Negro”: a Criminalização da Maconha no Brasil, de Luísa Gonçalves Saad, da pós em História da UFBA.
Enquanto os bacanas baforavam tabaco e tomavam seus licores, os negros fumavam maconha. O problema foi quando alguns bacanas mais espertos descobriram a diamba (ou liamba, ou riamba, ou pito-de-pango, outros nomes para a maconha) –e curtiram. “Já disseminado entre as ‘classes mais pobres e quase incultas dos nossos sertões’, onde fazia ‘sua obra destruidora’, a diamba tendia ‘a entrar para o rol dos vícios elegantes’. Havia preocupação semelhante de que outros ‘vícios do povo’, como o candomblé e a capoeira, ‘subissem’ para a dita ‘boa sociedade'”, narra a pesquisadora. Melhor proibir.
Médicos, principalmente psiquiatras, trataram de dar o alarme sobre os “malefícios” da droga, que até então era cantada pelos negros como uma bênção. Luísa Saad relembra o depoimento de um usuário “pardo” de 50 anos sobre a maconha: “Eu não fumo por deboche, ela (a maconha) me dá a luz, ela me tem salvado muitas vêzes. Liamba dá grande vida, sabe o que faz. Estou dizendo que ela é uma grande professôra… A maconha é uma erva que protege tanto quanto um santo, tem a mesma irradiação que um espírito.”
Os “especialistas”, ao contrário, afirmavam que a maconha fora trazida ao Brasil pelos negros (coisa que nunca se soube ao certo) e colocava em jogo “a eugenia, a pureza da raça”. Pior: o negro “estragava” no vício o “robusto organismo”, perfeito para ser explorado pelos brancos de sol a sol. O maconheiro era “incapaz para todo trabalho, não busca senão obedecer à tirania do seu vício”, dizia um dos maiores inimigos da maconha no país, o médico e político José Rodrigues da Costa Dória (1857-1938).
“A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva”, escreveu o conservador médico sergipano.
Dória, adepto das teorias eugenistas de superioridade entre as raças de Cesare Lombroso, também as aplicava às mulheres.
O médico culpava os negros por nos ter legado “o vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo de Angola, maconha e diamba”, conta o professor de História da Unesp Jean Marcel de Carvalho França no livro História da Maconha no Brasil (Três Estrelas).
Eu entrevistei Jean Marcel por email sobre o assunto.
Os negros foram de fato responsáveis pela introdução e disseminação do uso da cannabis no Brasil ou isto é um preconceito?
É difícil precisar. Há, sem dúvida, entre os negros trazidos de certas regiões da África, ao longo do século 16, conhecimento do uso recreativo da cannabis. Todavia, os africanos não eram os únicos: muitos marinheiros portugueses conheciam e utilizavam a cannabis, hábito que traziam dos portos africanos, sem dúvida, mas sobretudo dos portos da Índia.
O fato de a erva estar associada aos negros – aos pobres – a fez mais perseguida?
Esta é uma associação do século 20, quando a cannabis começa a se tornar um problema social, um caso de polícia. Antes disso, a droga e o hábito de consumi-la não despertam interesse de ninguém. Ao longo do período colonial e mesmo do século 19, a cannabis é uma droga de pobres (o tabaco e a cachaça são consumidos por gente de mais posses), sem dúvida, mas não é ainda o que mais tarde denominaríamos um problema social. É um meio de diversão, sem maior importância, da gente pobre e negra.
Você mostra no livro que muitos médicos, sobretudo psiquiatras, brasileiros tiveram desde o começo uma posição furiosamente contrária, bem pouco científica, até, sobre a maconha. Foi grande a influência deles na criminalização da cannabis?
É importante salientar que tais psiquiatras atendem às exigências de cientificidade de seu tempo, um tempo de teorias eugênicas em alta, e são pioneiros na tematização dos males da maconha, pois, ao lado dos egípcios, foram os primeiros a fazerem do canabismo um problema social grave (e internacional). Mais do que influência, pois, estes homens criaram socialmente o vício do canabismo (vícios e virtudes são criados socialmente) e toda a gama de problemas a ele associados.
Também estes médicos eram movidos por preconceito racial ao condenar a maconha?
Certamente não no sentido que entendemos hoje. Falamos de um tempo em que a hierarquia entre raças e civilizações fazia parte do senso comum. A cannabis foi construída como um hábito de raças atrasadas (as franjas da civilização, como dizia Arthur Ramos), hábito capaz de contaminar o modelo de civilização, modelo europeu, bem entendido, que se queria aqui implantar.
Houve doutores a defender que extirpar a maconha, destruindo toda e qualquer plantação, era uma questão de salvar “a eugenia, a pureza da raça”. Como você interpreta essa frase?
O espírito é aquele que apontei na questão acima: a maconha, um hábito herdado de uma civilização atrasada (africana), poderia contaminar e degenerar a todos, pretos e brancos. O grande medo, ao menos retórico, destes doutores do início do século é que a maconha se torne um “vício elegante”, de gente “bem nascida”. O perigo, o que degeneraria a civilização e a raça, era a propagação do vício para além das tais franjas da sociedade que mencionei.
Hoje em dia, a maconha tem muitos usuários (e defensores) entre brancos da classe média. No entanto, se alguém é preso por causa de maconha continuam a ser os negros. Racismo e maconha ainda andam juntos?
Creio que as estatísticas apontam para os pobres, não necessariamente negros. Do ponto de vista simbólico, inclusive, ao longo dos anos 60 e 70, a associação entre cultura negra e cannabis passava longe do senso comum do brasileiro (inclusive da polícia). Era um vício que vinha de fora e atingia, e isso preocupava, a “fina flor da sociedade” (jovens, artistas, universitários…). O pobre, do ponto de vista da ordem, fornece a droga; eis o grande problema. Os anos 80, e a emergência das denominadas teorias da diferença – que penetraram no Brasil pós-abertura –, refizeram a ligação, isto é, retomaram os elos entre canabismo e tradições negras, invertendo a polaridade de outrora – deve-se aceitar socialmente a prática por ser uma prática da cultura negra (multicultural), condená-la é condenar a diversidade cultural que nos caracteriza.
Qual a sua posição em relação à descriminalização da maconha?
A bem da verdade, sou por uma legalização plena da cannabis, inclusive o seu uso recreativo. Mas não creio que o melhor modo de o fazer seja por meio de uma decisão de juízes do STF, prescindindo de uma ampla e objetiva discussão pública, como foi realizada no Uruguai e em alguns estados americanos, por exemplo.
Em sua opinião, a descriminalização reduzirá esse aspecto racista e classista em relação à maconha ou o preconceito permanecerá?
A cannabis, no senso comum do brasileiro deste início de século 21, não é mais propriamente uma droga de pobres e negros. Teríamos que incluir aí, hoje, universitários, artistas, excêntricos, marginais de vários gêneros, jovens de baladas, enfim, os canabistas são um grupo muitíssimo diversificado aos olhos do brasileiro médio. A grande vantagem da descriminalização ou mesmo da legalização, a meu ver, é outra: a desarticulação do tráfico, que trará um esvaziamento das cadeias e uma diminuição da violência na periferia das grandes e médias cidades do país, o que, neste caso, é o mesmo que dizer que poupará milhares de jovens da morte ou de consumirem a sua juventude no sistema carcerário. Além disso, poderemos dar um destino decente (educação e saúde, por exemplo) aos impostos que podem ser cobrados sobre esse negócio milionário.
LIVRO: História da Maconha no Brasil
AUTOR: Jean Marcel de Carvalho França
EDITORA: Três Estrelas (152 págs., R$23,90)
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