Em meio às perplexidades ao redor do projeto de lei antiterrorismo (PL 2016/2015), chama a atenção o fato de que o texto de propositura tenha a assinatura dos ministros José Eduardo Cardoso e Joaquim Levy. Que o Ministério da Justiça se ocupe da matéria, nada de novo. Mas desde quando a “guerra ao terror” virou tema da Fazenda?
A surpresa se desfaz com a leitura da justificativa, na qual se aponta o dever de combater o financiamento ao terrorismo para cumprir “acordos internacionais firmados pelo Brasil, sobretudo em relação a organismos como o do Grupo de Ação Financeira (GAFI)”. Há muitos compromissos desse tipo que não se tornaram direito interno. Por que tamanha atenção com os acordos do grupo?
O grupo faz parte da rede de proteção que busca intervir em padrões institucionais com efeitos negativos sobre a “integridade” do sistema financeiro. O objetivo é reagir às possíveis ameaças advindas da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo. Para tanto, o GAFI desenvolve recomendações e, em seguida, monitora a aplicação das medidas em seus países membros. Ao final, emite relatórios de avaliação que classificam os países como “conformes”, “parcialmente conformes” e “não conformes”.
A recompensa pelo cumprimento é a declaração daquele ambiente como seguro para os negócios. Já o certificado de “território não-cooperativo” representa um sinal vermelho para o sistema financeiro, desestimulando-o a realizar transações naquele país. O presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda tem manifestado inquietação quanto ao risco do Brasil entrar na “lista negra” do GAFI por conta da falta de legislação que criminalize o financiamento do terrorismo.
Por tudo isso, fica clara a relevância do PL 2016/2015 para a Fazenda e sua articulação em regime de urgência. Outros problemas, porém, ainda devem ser esclarecidos.
O principal deles refere-se ao efeito detonador das recomendações do grupo GAFI para gerar legislações que ameaçam a liberdade de associação e manifestação. O Transnational Institute e o Statewatch realizaram uma pesquisa sobre o teor das reformas legais deflagradas pela Recomendação Especial VIII do grupo.
A pesquisa demonstra que esse organismo “aprovou algumas das regulações de organizações sem fins lucrativos mais restritivas do mundo e encorajou governos que possuem caráter repressivo a introduzir regras capazes de reduzir ainda mais o espaço político de ONGs e atores da sociedade civil”.
Os cinco países que receberam o selo “conforme a recomendação” (Bélgica, Egito, Itália, Tunísia e EUA) criaram aparatos de segurança que coibiram movimentos sociais. No caso do Egito e da Tunísia, ficou evidente que a adoção da recomendação foi uma das reações à Primavera Árabe. A pesquisa incluiu estudos de dez países que obtiveram, em alguma medida, legislação endossada pelo GAFI. Todos restringiram a livre manifestação.
O levantamento mostra ainda que o impacto da RE VIII foi negativo mesmo nos países em que ativistas dispõem de maior liberdade. No contexto brasileiro, marcado pela repressão a protestos, não é possível esperar efeito melhor.
Reflexo nas cidades
Desde as olimpíadas de Barcelona, essa “boa governança” tem ressaltado a importância de megaeventos esportivos para incluir as cidades nos novos fluxos financeiros globais. A fórmula é notória: criação de marco institucional capaz de gerar um suposto ambiente estável para atrair investimentos e, com isso, reformar os centros urbanos.
Essa fórmula não se esgota em si mesma, mas, conforme David Harvey, é um dos meios que viabiliza a acumulação financeira. Como, para se expandir, tal acumulação necessita comoditizar espaços não comoditizados, os megaeventos esportivos exigem um projeto urbano de reestruturação das cidades-sedes que confere valor de mercado a áreas descapitalizadas. Dentre outros, a especulação imobiliária é beneficiada.
Basta observar o que acontece no Rio de Janeiro para perceber que isso implica expulsão da população pobre, apropriação de áreas públicas, eliminação do comércio local etc. A liderança dos movimentos sociais nos protestos contra os gastos públicos com a Copa e nas lutas contra as remoções – como a da Vila Autódromo – mostram que eles são a base de resistência à marcha de comoditização da cidade promovida pelos jogos olímpicos.
Foi visto que o fim social do GAFI é proteger a integridade do sistema financeiro. Quando tal integridade está associada à promoção de megaevento esportivo, seu foco de oposição – os movimentos sociais – torna-se fonte de riscos para os negócios.
Não é necessário fazer elucubrações jurídicas sobre o caráter aberto dos tipos penais (“praticar ou infundir terror e pânico”) ou dos bens protegidos (“paz pública”) pelo PL 2016/2015 para perceber quem serão os “terroristas” que ameaçam as relações financeiras, em um país que, como admitido pelos ministros Cardoso e Levy, nunca sofreu atentado em seu território. Mas mesmo assim, por causa das Olimpíadas, precisa ser apreciado em regime de urgência.
A preocupação dos ativistas, de serem incriminados por tal lei, é, assim, bastante provável. A probabilidade se acentua frente ao contexto reacionário da política nacional. No Senado, por exemplo, foi aprovado substitutivo do Senador Aloysio Nunes para o projeto de lei: o senador do PSDB paulista quer retirar o parágrafo que exclui a aplicação para condutas de pessoas em mobilizações sociais e ainda acrescentar a expressão “extremismo político” na definição de “terrorista”. Dado que nem a ONU conseguiu tipificar terrorismo, fica evidente a gravidade da proposta brasileira.
O trâmite no Senado aponta para um problema adicional presente na recepção dos padrões do sistema financeiro. Eles são reapropriados pelas elites locais para atender aos seus interesses. A nova lei antiterrorismo mostra-se instrumento adequado para inibir protestos contra a atual onda conservadora. Como lembrou o vereador do Psol do Rio de Janeiro Brizola Neto em ato de repúdio ao projeto, se, em uma eventual manifestação alguém danificar os vidros da Bolsa de Valores, poderá ser condenados a penas de reclusão de 16 a 24 anos.
Algo evidentemente desproporcional, sobretudo quando se considera o impacto do orçamento da vidraçaria nas contas do sistema financeiro. Nesta toada, atos como os contrários ao leilão da Vale seriam evitados. A mesma lógica de criminalização poderia ser usada na repressão aos protestos contra a pauta retrógrada em vigor no Congresso.
Não se pode ter a ilusão de que há uma relação antagônica entre as ações das elites locais e os organismos financeiros globais. Para tanto, basta pensar na alta frequência de legislações nacionais repressoras da liberdade de associação estimuladas pelas recomendações do GAFI.
No capitalismo, o atraso sempre foi funcional e constitutivo do moderno. E ambos sempre se opuseram às resistências dos movimentos sociais vindas das ruas. Aliás, nesse sentido é curiosa uma das declarações do Senador Aloysio Nunes que justifica seu substitutivo. Ele citou uma frase de Guimarães Rosa: “o diabo está solto no meio da rua”. Será que é mesmo na rua, senador?
* Guilherme Leite Gonçalves é professor de Sociologia do Direito da UERJ.
A surpresa se desfaz com a leitura da justificativa, na qual se aponta o dever de combater o financiamento ao terrorismo para cumprir “acordos internacionais firmados pelo Brasil, sobretudo em relação a organismos como o do Grupo de Ação Financeira (GAFI)”. Há muitos compromissos desse tipo que não se tornaram direito interno. Por que tamanha atenção com os acordos do grupo?
O grupo faz parte da rede de proteção que busca intervir em padrões institucionais com efeitos negativos sobre a “integridade” do sistema financeiro. O objetivo é reagir às possíveis ameaças advindas da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo. Para tanto, o GAFI desenvolve recomendações e, em seguida, monitora a aplicação das medidas em seus países membros. Ao final, emite relatórios de avaliação que classificam os países como “conformes”, “parcialmente conformes” e “não conformes”.
A recompensa pelo cumprimento é a declaração daquele ambiente como seguro para os negócios. Já o certificado de “território não-cooperativo” representa um sinal vermelho para o sistema financeiro, desestimulando-o a realizar transações naquele país. O presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda tem manifestado inquietação quanto ao risco do Brasil entrar na “lista negra” do GAFI por conta da falta de legislação que criminalize o financiamento do terrorismo.
Por tudo isso, fica clara a relevância do PL 2016/2015 para a Fazenda e sua articulação em regime de urgência. Outros problemas, porém, ainda devem ser esclarecidos.
O principal deles refere-se ao efeito detonador das recomendações do grupo GAFI para gerar legislações que ameaçam a liberdade de associação e manifestação. O Transnational Institute e o Statewatch realizaram uma pesquisa sobre o teor das reformas legais deflagradas pela Recomendação Especial VIII do grupo.
A pesquisa demonstra que esse organismo “aprovou algumas das regulações de organizações sem fins lucrativos mais restritivas do mundo e encorajou governos que possuem caráter repressivo a introduzir regras capazes de reduzir ainda mais o espaço político de ONGs e atores da sociedade civil”.
Os cinco países que receberam o selo “conforme a recomendação” (Bélgica, Egito, Itália, Tunísia e EUA) criaram aparatos de segurança que coibiram movimentos sociais. No caso do Egito e da Tunísia, ficou evidente que a adoção da recomendação foi uma das reações à Primavera Árabe. A pesquisa incluiu estudos de dez países que obtiveram, em alguma medida, legislação endossada pelo GAFI. Todos restringiram a livre manifestação.
O levantamento mostra ainda que o impacto da RE VIII foi negativo mesmo nos países em que ativistas dispõem de maior liberdade. No contexto brasileiro, marcado pela repressão a protestos, não é possível esperar efeito melhor.
Reflexo nas cidades
Desde as olimpíadas de Barcelona, essa “boa governança” tem ressaltado a importância de megaeventos esportivos para incluir as cidades nos novos fluxos financeiros globais. A fórmula é notória: criação de marco institucional capaz de gerar um suposto ambiente estável para atrair investimentos e, com isso, reformar os centros urbanos.
Essa fórmula não se esgota em si mesma, mas, conforme David Harvey, é um dos meios que viabiliza a acumulação financeira. Como, para se expandir, tal acumulação necessita comoditizar espaços não comoditizados, os megaeventos esportivos exigem um projeto urbano de reestruturação das cidades-sedes que confere valor de mercado a áreas descapitalizadas. Dentre outros, a especulação imobiliária é beneficiada.
Basta observar o que acontece no Rio de Janeiro para perceber que isso implica expulsão da população pobre, apropriação de áreas públicas, eliminação do comércio local etc. A liderança dos movimentos sociais nos protestos contra os gastos públicos com a Copa e nas lutas contra as remoções – como a da Vila Autódromo – mostram que eles são a base de resistência à marcha de comoditização da cidade promovida pelos jogos olímpicos.
Foi visto que o fim social do GAFI é proteger a integridade do sistema financeiro. Quando tal integridade está associada à promoção de megaevento esportivo, seu foco de oposição – os movimentos sociais – torna-se fonte de riscos para os negócios.
Não é necessário fazer elucubrações jurídicas sobre o caráter aberto dos tipos penais (“praticar ou infundir terror e pânico”) ou dos bens protegidos (“paz pública”) pelo PL 2016/2015 para perceber quem serão os “terroristas” que ameaçam as relações financeiras, em um país que, como admitido pelos ministros Cardoso e Levy, nunca sofreu atentado em seu território. Mas mesmo assim, por causa das Olimpíadas, precisa ser apreciado em regime de urgência.
A preocupação dos ativistas, de serem incriminados por tal lei, é, assim, bastante provável. A probabilidade se acentua frente ao contexto reacionário da política nacional. No Senado, por exemplo, foi aprovado substitutivo do Senador Aloysio Nunes para o projeto de lei: o senador do PSDB paulista quer retirar o parágrafo que exclui a aplicação para condutas de pessoas em mobilizações sociais e ainda acrescentar a expressão “extremismo político” na definição de “terrorista”. Dado que nem a ONU conseguiu tipificar terrorismo, fica evidente a gravidade da proposta brasileira.
O trâmite no Senado aponta para um problema adicional presente na recepção dos padrões do sistema financeiro. Eles são reapropriados pelas elites locais para atender aos seus interesses. A nova lei antiterrorismo mostra-se instrumento adequado para inibir protestos contra a atual onda conservadora. Como lembrou o vereador do Psol do Rio de Janeiro Brizola Neto em ato de repúdio ao projeto, se, em uma eventual manifestação alguém danificar os vidros da Bolsa de Valores, poderá ser condenados a penas de reclusão de 16 a 24 anos.
Algo evidentemente desproporcional, sobretudo quando se considera o impacto do orçamento da vidraçaria nas contas do sistema financeiro. Nesta toada, atos como os contrários ao leilão da Vale seriam evitados. A mesma lógica de criminalização poderia ser usada na repressão aos protestos contra a pauta retrógrada em vigor no Congresso.
Não se pode ter a ilusão de que há uma relação antagônica entre as ações das elites locais e os organismos financeiros globais. Para tanto, basta pensar na alta frequência de legislações nacionais repressoras da liberdade de associação estimuladas pelas recomendações do GAFI.
No capitalismo, o atraso sempre foi funcional e constitutivo do moderno. E ambos sempre se opuseram às resistências dos movimentos sociais vindas das ruas. Aliás, nesse sentido é curiosa uma das declarações do Senador Aloysio Nunes que justifica seu substitutivo. Ele citou uma frase de Guimarães Rosa: “o diabo está solto no meio da rua”. Será que é mesmo na rua, senador?
* Guilherme Leite Gonçalves é professor de Sociologia do Direito da UERJ.
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