Por José Rodrigues, no site Outras Palavras:
Há sempre um corpo estendido no chão. Como uma pedra, sem vida, sem nada, no meio do nosso caminho. Mas, diferente de Carlos Drummond de Andrade que jamais esquecerá que no meio do seu caminho tinha uma pedra, nós sequer lembramos que no meio do nosso tinha um corpo; uma vida; histórias; tristezas e possíveis alegrias. Talvez, muitos aplaudam quando alguns corpos ficam estendidos. O problema é quando um destes corpos atrapalha o trânsito ou estraga a paisagem para a self.
Nem todo corpo estendido no chão me comove. Nem todo corpo tombado vira tragédia ou notícia nacional. Há corpos que caem e são como fagulhas a ascender gritos indignados de “basta, eu quero paz!; “chega de violência”. Nossa comoção é seletiva. Pois, nem todo humano é, na prática, humano. Milhares são como os ninguéns de Eduardo Galeano: “vivendo a vida, fudidos e mal pagos”. Ou, como as vidas nuas problematizadas por Giorgio Agamben: podem ser exterminadas. Ou, ainda, as vidas desperdiçadas descritas por Zygmunt Bauman: produtos negados de nossa gloriosa modernidade ávida por novidades. Os ninguéns são a versão “humana” (ou, quase) entre tantos tipos de lixo que produzimos e descartamos diariamente.
Talvez, Jadson da Silva Pereira, assassinado numa praia em Florianópolis, seja um ninguém. Quer dizer, ele foi. Sabemos de sua existência quando, enfim, ele morre numa tragédia e seu corpo estampa sites na internet. Uma vida infame, diria Michel Foucault. E sua maior infâmia foi, pelo que parece, ter insistido em sobreviver para, quem sabe num dia, vir a ser alguém. Pobre Jadson! Não sabemos a razão de sua morte, mas nada nos impede de desconfiar que, como o vendedor ambulante alagoano, há tantos outros tratados com hostilidade e desdém.
Em reportagem de Aline Torres, ficamos sabemos de um mal-estar causado pela presença de “baianos” nas praias de Florianópolis. Segundo carta publicada em 2013, por moradores de Brusque, os “baianos” deveriam ser mortos, pois causavam desordem na região. Um trecho da carta diz:
BAIANOS, vocês conseguiram deixar o povo revoltado, TOMEM CUIDADO e tratem de mudar de comportamento URGENTE. VAMOS ELIMINAR VOCÊS, ISSO MESMO, VAMOS MATAR OS RUINS e acabar com essas pragas.
Nosso grupo composto por 28 cidadãos, onde 11 estão ansiosos para começar a matança, nem queríamos publicar esse aviso, porém a maioria decidiu avisar antes.
Nossa Brusque será de novo uma cidade boa para viver. CUSTE O QUE CUSTAR.”
Os “desordeiros baianos” devem ser mortos por produzirem uma tensão na ordem. Mas que tipo de ordem é esta que, ao ser violada, justifica-se o extermino de outro ser humano? E que grupo é este que tem o poder soberano – como se reis medievais fossem – de fazer morrer ou deixar viver? Quem são os “baianos”, outsiders, que se fazem como vidas matáveis? O ódio cega. E cegos reproduzimos práticas violentas e intolerantes diante do outro, feito estrangeiro a promover desvios em nosso suposto correto estilo de vida. Autodeclarados cidadãos de bem não estranham o ódio e a intolerância que propagam. Em nome de um bem comum – por exemplo: “limpar” a praia dos desordeiros – unimos forças num exercício coletivo de eliminação daqueles que, para nós, são descartáveis.
O corpo estendido na areia da praia não impediu que, tão próximas deste, barracas e cangas fossem colocadas. A tragédia não produziu sequer uma pausa na dinâmica da praia. Talvez, fosse pedir demais para um domingo ensolarado! Perder a praia por causa de um “baiano” estendido no chão? Como escreve Susan Sontag, em Diante da dor dos outros, “a violência transforma em coisa toda pessoa sujeita a ela”. Quando Jadson caiu, uma coisa ficou estendida na areia.
* José Rodrigues, 30, é professor e psicólogo, Doutor em Psicologia (UFF), autor do livro “A Chacina do Pan e a produção de vidas descartáveis no Rio de Janeiro (Multifoco, 2013) e do blog desimportâncias.org.
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