domingo, 17 de janeiro de 2016

O economês e os vendedores de ilusões

Por Paulo Kliass, na revista Caros Amigos:

O inevitável processo de divisão social do trabalho e de aprofundamento da especialização do conhecimento leva a uma compartimentação dos processos de desenvolvimento das conquistas tecnológicas e de produção do saber. Com isso observa-se um aprimoramento das metodologias e dos discursos associados às múltiplas áreas do vasto campo das ciências em nossa civilização.

Cada um dos ramos termina por cultivar um conjunto de conceitos e raciocínios próprios de sua área de atuação e que passa a ser compartilhado por seus pares. Quanto mais se avança na especialização, mais específicas se tornam a linguagem e a racionalidade envolvidas naquele domínio. Assim, torna-se difícil aos leigos e simples interessados compartilhar de forma plena a narrativa que se converte cada vez mais em uma exclusividade dos iniciados.

Esse processo é amplo e generalizado. Física, antropologia, química, informática, biologia, comunicações, medicina, psicologia, climatologia - enfim, são inúmeros os exemplos. Cada campo do conhecimento desenvolve seus próprios códigos e faz com que a apropriação de seu discurso se torne inacessível para a maioria da população.

"Pouco a pouco o discurso do “economês” evolui, salta os muros do universo da academia e ganha espaço crescente nos grandes meios de comunicação. Afinal, a economia possui a mui especial qualidade de explicar o fluxo do dinheiro, de sugerir o caminho da acumulação de patrimônio e de como enriquecer no âmbito da dinâmica do capital"

No caso da economia não é diferente. Aliás, esse fato começa exatamente pela forma pela qual a área passou a ser conhecida ao longo das últimas décadas. Os clássicos como Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx e outros a qualificam como “economia política”. E o adjetivo “política” que acompanhava o substantivo “economia” não atuava apenas como mero elemento decorativo. Pelo contrário, oferecia o verdadeiro sentido amplo ao fenômeno econômico, sempre indissociável dos elementos da esfera política.

Linguagem

Isso significa dizer que se trata de uma interpretação larga da dinâmica da economia, incluindo-a no campo das ciências humanas ou das ciências sociais. No entanto, a influência da tradição liberal inglesa e norte-americana acabou impondo o termo singelo de “economics” no lugar de “political economy”. Como era de se esperar, esse reducionismo não ficou apenas na forma. Carregou consigo toda a maneira particular de abordar o fenômeno da economia, apartando-a da complexidade derivada de uma interpretação mais integrada com a história, as ciências sociais, o direito e outras.

Os próximos passos foram no sentido de qualificar a economia como uma “ciência exata”, passível de ser instrumentalizada por modelos quantitativos e com suposta elevada capacidade de predição. O uso da matemática avançada e da estatística passou a ser prioritário nas universidades e no ambiente profissional, com o objetivo de simplificar as análises e converter complexos processos sociais em variáveis no interior de equações. Desenvolveu-se um campo específico de apoio metodológico, a econometria. Com isso, até os cenários futuros poderiam ser previstos e estimados sem a menor dificuldade.

Assim, pouco a pouco o discurso do “economês” evolui, salta os muros do universo da academia e ganha espaço crescente nos grandes meios de comunicação. Afinal, a economia possui a mui especial qualidade de explicar o fluxo do dinheiro, de sugerir o caminho da acumulação de patrimônio e de como enriquecer no âmbito da dinâmica do capital.

Marca

A mercantilização e a financeirização se generalizam em nossa sociedade. Tudo se transforma em mercadoria e a dependência junto ao sistema financeiro torna-se a marca de nossa época. Por outro lado, a recorrência de crises econômicas sistêmicas faz com que o debate a respeito das alternativas às políticas econômicas desenvolvidas pelos Estados se converta em elemento permanente na sociedade e nos órgãos de imprensa.
Política monetária, política fiscal, política cambial, política anti-inflacionária, política tributária, política industrial e outras tornam-se conceitos presentes nos espaços comunicativos. O mesmo ocorre com termos como inflação, desigualdade, reservas internacionais, PIB, recessão, taxa de câmbio, superávit primário, entre tantos.

Ocorre que as páginas dos jornais e as telas da TV não oferecem aos indivíduos a pluralidade de opiniões existentes a respeito de cada um desses temas. Esse fato ganha ainda mais em relevância quando se trata da definição de políticas públicas no campo da economia política. Não apenas o uso do “economês” afasta as pessoas e dificulta a compreensão, como também se vende uma falsa ilusão a respeito da abordagem econômica.
A mensagem transmitida da economia como uma ciência exata fornece o argumento falacioso para apresentar a sua suposta neutralidade técnica no debate de alternativas. Assim, uma vez ouvidos os especialistas na matéria, não haveria dúvidas a respeito da eficácia das sugestões oferecidas às autoridades públicas para implementar à frente do comando da economia nacional.

Os meios de comunicação são importantes instrumentos para consolidação de falsos consensos a respeito de caminhos para a solução de crises conjunturais ou mesmo estruturais. O mesmo se pode dizer a respeito de debate relativo a dimensões estratégicas para modelos de desenvolvimento nacional. As opiniões dos especialistas resumem-se a uma dança de cadeiras entre as falas de consultores financeiros e de dirigentes de instituições do grande capital. Não existe a menor isenção nesse procedimento de venda de fantasias.

A definição da taxa de juros oficial pelo governo talvez seja um dos exemplos mais cristalinos de como se opera essa relação incestuosa entre os interesses do capital e a formulação da política econômica. A cada 45 dias reúne-se a diretoria do Banco Central sob o manto especial de um encontro do assim chamado Comitê de Política Monetária (Copom). Ali é definida o nível da taxa Selic, que serve como parâmetro para remuneração da dívida pública e como referência para as taxas praticadas pelos bancos em suas operações de crédito e empréstimo junto a empresas e indivíduos.

O detalhe é que a decisão do colegiado baseia-se fortemente nas influências exercidas por pesquisa encomendada pelo BC junto aos dirigentes do próprio sistema financeiro, a Focus. A imprensa vocaliza que o “mercado pensa”, o “mercado avalia”, o “mercado exige”, quando na verdade se trata de apenas alguns poucos escolhidos no universo dos principais defensores do interesse do financismo. Não são chamados a opinar os professores e pesquisadores de universidades, os assessores do movimento sindical, os representantes dos demais setores do empresariado, entre tantos outros.

O mesmo ocorre quando se tenta impor consensos a respeito de temas bastante polêmicos e controversos, como a suposta necessidade de se gerar superávit primário nas contas públicas ou a verdadeira interdição ao debate a respeito do exagero das despesas do orçamento federal com juros e serviços da dívida pública. Do alto da sapiência qualificada dos especialistas de plantão vinculados ao financismo, o recurso ao “economês” desqualifica o argumento da rota alternativa. E valendo-se da ignorância da maioria no debate do tema, aproveita a deixa para exercer a sua missão de mercadores de ilusões.

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