Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Em uma das cenas do filme “As sufragistas”, uma personagem afirma que é melhor ser rebelde que escrava. Pode parecer uma frase banal – afinal, quem não escolheria a rebeldia à servidão? –, mas que parece nomear opções com as quais nos deparamos todos os dias. Na democracia imperfeita em que vivemos, as formas de repressão se tornaram tão naturais quanto invisíveis.
Criminaliza-se o aborto, jovens negros e pobres são perseguidos como bandidos e índios são mortos de forma covarde. O machismo se firma como gramática de relacionamento em todos os setores, os homossexuais são discriminados, revogam-se políticas humanistas de saúde mental em nome de interesses de mercado. O que era história se torna sintoma. Na sociedade higiênica, a norma é penalizar a diferença. O que é violência extrema se realiza como destino. Sem rebeldia, sobra a escravidão voluntária.
O filme da diretora Sarah Gavron tem como sua maior força política a percepção de que as palavras habituais não bastam quando se trata do combate às injustiças. Enclausurado na via da convenção, a fala é sempre mais fraca que as ações. O empenho da rebeldia é exatamente esse: criar instrumentos para fortalecer as palavras necessárias e canalizar a ação quando o discurso estanca. E é aí que reside a contemporaneidade da história da luta pelo voto feminino mostrada no filme. Mais que uma conquista institucional, trata-se da coragem de olhar adiante da lei, de inaugurar novos contextos de liberdade.
Essa, talvez, seja a melhor inspiração para o ano que começa. Não podemos ficar presos aos limites que estão sendo impostos pelo jogo político tradicional. O cenário montado pelos golpistas é, em sua essência, legalista no sentido mais conservador da palavra. Aceitar o debate nesses termos paralisou, de uma só vez, os dois lados da aliança em torno da defesa conquistas democráticas. O governo ficou refém do discurso jurídico e presa fácil de alianças menores. Os movimentos populares, por sua vez, colocaram bandeiras históricas entre parênteses para fortalecer a resistência ao golpe.
Nesse cenário de recuos táticos, ficaram em segundo plano os temas relacionados aos direitos humanos e mesmo à construção de alternativas ao capitalismo financeiro. Para ecoar um discurso democrático quase regimental, a perspectiva da transformação social foi rendida pelo realismo garantista. A direita, com a esperteza habitual, convocou suas vanguardas do atraso e pautou a discussão política em termos da reação durante boa parte do ano. É este terreno que precisa ser recuperado com urgência.
Durante todo o ano, a presidenta Dilma Rousseff preferiu valorizar a interlocução com a opinião pública por meio da imprensa familiar. Foi uma escolha infeliz. Além de ficar condicionada pelos termos postos pela mídia e, por isso, assumir quase sempre uma atitude reativa, perdeu duas possibilidades fundamentais de diálogo com a sociedade. A primeira, pela dificuldade em apostar em canais mais desimpedidos e baratos, o que a fez refém dos interesses representados pela imprensa hegemônica. A segunda, pela escolha enviesada de seu público prioritário, deixando de lado os setores populares em nome da pretensa opinião pública representada pela mídia comercial. Errou na técnica e na política.
Os movimentos populares, depois de preteridos pela lógica publicista dos meios de comunicação, precisam agora defender o aprofundamento de sua identidade. Eles fizeram sua parte e devem partir para a reafirmação de seus princípios.
O governo deve ter aprendido que não pode contar com os inimigos da democracia, nem mesmo pagando caro, embora ainda se enfraqueça ao mandar seus primeiros sinais de ano-novo via páginas de jornalões. O caminho da recuperação da governabilidade e da economia, que será lento, passará necessariamente pela coragem de falar olho no olho, com os interlocutores certos, nas horas certas.
No momento em que a oposição já não esconde mais sua única estratégia – melar o jogo a qualquer custo –, a conjuntura só pode avançar com palavras e ações de gente grande. O governo precisa crescer para merecer a sociedade organizada disposta a mudar o jogo, desde que seja pra valer.
Este será um ano de rebeldia. É o melhor que os movimentos sociais têm a oferecer ao país.
* João Paulo Cunha é jornalista e colunista do Brasil de Fato MG.
Em uma das cenas do filme “As sufragistas”, uma personagem afirma que é melhor ser rebelde que escrava. Pode parecer uma frase banal – afinal, quem não escolheria a rebeldia à servidão? –, mas que parece nomear opções com as quais nos deparamos todos os dias. Na democracia imperfeita em que vivemos, as formas de repressão se tornaram tão naturais quanto invisíveis.
Criminaliza-se o aborto, jovens negros e pobres são perseguidos como bandidos e índios são mortos de forma covarde. O machismo se firma como gramática de relacionamento em todos os setores, os homossexuais são discriminados, revogam-se políticas humanistas de saúde mental em nome de interesses de mercado. O que era história se torna sintoma. Na sociedade higiênica, a norma é penalizar a diferença. O que é violência extrema se realiza como destino. Sem rebeldia, sobra a escravidão voluntária.
O filme da diretora Sarah Gavron tem como sua maior força política a percepção de que as palavras habituais não bastam quando se trata do combate às injustiças. Enclausurado na via da convenção, a fala é sempre mais fraca que as ações. O empenho da rebeldia é exatamente esse: criar instrumentos para fortalecer as palavras necessárias e canalizar a ação quando o discurso estanca. E é aí que reside a contemporaneidade da história da luta pelo voto feminino mostrada no filme. Mais que uma conquista institucional, trata-se da coragem de olhar adiante da lei, de inaugurar novos contextos de liberdade.
Essa, talvez, seja a melhor inspiração para o ano que começa. Não podemos ficar presos aos limites que estão sendo impostos pelo jogo político tradicional. O cenário montado pelos golpistas é, em sua essência, legalista no sentido mais conservador da palavra. Aceitar o debate nesses termos paralisou, de uma só vez, os dois lados da aliança em torno da defesa conquistas democráticas. O governo ficou refém do discurso jurídico e presa fácil de alianças menores. Os movimentos populares, por sua vez, colocaram bandeiras históricas entre parênteses para fortalecer a resistência ao golpe.
Nesse cenário de recuos táticos, ficaram em segundo plano os temas relacionados aos direitos humanos e mesmo à construção de alternativas ao capitalismo financeiro. Para ecoar um discurso democrático quase regimental, a perspectiva da transformação social foi rendida pelo realismo garantista. A direita, com a esperteza habitual, convocou suas vanguardas do atraso e pautou a discussão política em termos da reação durante boa parte do ano. É este terreno que precisa ser recuperado com urgência.
Durante todo o ano, a presidenta Dilma Rousseff preferiu valorizar a interlocução com a opinião pública por meio da imprensa familiar. Foi uma escolha infeliz. Além de ficar condicionada pelos termos postos pela mídia e, por isso, assumir quase sempre uma atitude reativa, perdeu duas possibilidades fundamentais de diálogo com a sociedade. A primeira, pela dificuldade em apostar em canais mais desimpedidos e baratos, o que a fez refém dos interesses representados pela imprensa hegemônica. A segunda, pela escolha enviesada de seu público prioritário, deixando de lado os setores populares em nome da pretensa opinião pública representada pela mídia comercial. Errou na técnica e na política.
Os movimentos populares, depois de preteridos pela lógica publicista dos meios de comunicação, precisam agora defender o aprofundamento de sua identidade. Eles fizeram sua parte e devem partir para a reafirmação de seus princípios.
O governo deve ter aprendido que não pode contar com os inimigos da democracia, nem mesmo pagando caro, embora ainda se enfraqueça ao mandar seus primeiros sinais de ano-novo via páginas de jornalões. O caminho da recuperação da governabilidade e da economia, que será lento, passará necessariamente pela coragem de falar olho no olho, com os interlocutores certos, nas horas certas.
No momento em que a oposição já não esconde mais sua única estratégia – melar o jogo a qualquer custo –, a conjuntura só pode avançar com palavras e ações de gente grande. O governo precisa crescer para merecer a sociedade organizada disposta a mudar o jogo, desde que seja pra valer.
Este será um ano de rebeldia. É o melhor que os movimentos sociais têm a oferecer ao país.
* João Paulo Cunha é jornalista e colunista do Brasil de Fato MG.
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