Por Luciana Ackermann, na Revista do Brasil:
Por muitos anos, as novelas ditaram modas e costumes. Era comum se evitar compromissos sociais para não perder a sequência da trama, ou programar a gravação para recuperar depois. Nada parecia abalar o domínio da teledramaturgia, e a alta fidelidade do telespectador. Mas os tempos mudaram. Na disputa pelos espectadores estão os canais a cabo, a explosão das séries acessadas pela internet e uma profusão de conteúdos gratuitos independentes de audiovisual.
O avanço da tecnologia deu fim até à necessidade de baixar as imagens e armazená-las. Em 2011, chegou ao país a Netflix, serviço de streaming que oferece filmes e séries em ritmo de assine, clique e assista – inclusive sem necessidade de computador. Canais a cabo passaram a oferecer programação na qual o cliente assiste ao que quiser, quando e como, a chamada opção on demand. Não demorou muito para surgirem alguns “piratas” como o Popcorn Time, que se autodefine como grupo de nerds que oferece séries e filmes legendados de graça.
Segundo a professora Esther Hamburger, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e autora do livro O Brasil Antenado: A Sociedade da Novela, está em curso a diversificação de meios e as formas de recepção. E dificilmente as novelas terão o mesmo papel e lugar que tiveram nos anos 1970 e 1980, quando atraíam públicos de diferentes sexos, idades, regiões e classes sociais. “Parece ter ainda um público cativo, menos heterogêneo. E creio que há um círculo vicioso: quanto mais homogêneo o público, menos interessantes são as novelas, pois as produções parecem se orientar por estereótipos que subestimam certos segmentos da sociedade, especialmente o espectador cativo de novela”, analisa Esther.
Mesmo diante da perda da relevância, a professora não enxerga um fim próximo para a teledramaturgia. “Apesar de haver tantas opções que não existiam antes, o sucesso de Avenida Brasil (2012) mostrou a resistência de um gênero profundamente enraizado. As novelas continuam a pautar as principais emissoras de televisão no Brasil. A competição entre canais ainda acontece via novelas”, observa.
Para Esther, a televisão sofrerá profundas transformações com o advento da multiplicidade de canais no YouTube ou fora dele, assim como aconteceu com a indústria fonográfica, há alguns anos. “Isso quer dizer o fim da TV? Talvez o fim da TV como a conhecemos hoje. O cinema, que perdeu já há mais de 50 anos a sua exclusividade audiovisual para a TV, mudou de caráter, mas continua existindo.”
Poder
O aparelho de tevê da arquiteta Marina Leal Mendonça, de 27 anos, quebrou. E ela não tem interesse em adquirir um novo, apesar dos apelos da faxineira. “Não assistia mais à TV aberta, odeio a Globo. Por algum tempo, gostei do CQC (programa que surgiu como novidade no Brasil em 2008, baseado em um modelo argentino de 1995, e que permaneceu na grade da Bandeirantes até 2015). Prefiro ouvir música, ler ou assistir a séries e filmes pelo computador. Novela é maluquice. Não gosto, não faço questão de ver. Fiquei hipnotizada quando vi a novela do Comendador, Império. Mas é muita perda de tempo, não quero isso para mim”, afirma.
Para o publicitário Matheus Grossi, de 31 anos, as novelas ficaram muito repetitivas, sempre repletas de personagens caricatos. “Assistia desde criança. Sinto saudades de obras como Tieta, havia sarcasmo, humor escrachado. O politicamente correto e a necessidade de agradar o senso comum com final feliz acabam com a criatividade dos autores”, diz Grossi, que no horário dos folhetins tem preferido ler, fazer cursos ou assistir a séries da Netflix. “Assisti a Narcos e achei muito boa. Também gosto de acompanhar os conteúdos audiovisuais de blogs de viagens, de moda, que estão cada vez mais profissionais e com qualidade.”
Mas há quem defenda que o poder de atração da teledramaturgia brasileira segue numa escala cada vez maior. O pesquisador Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP e autor de A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil e da coleção Grandes Novelas, diz que o gênero ultrapassa a tela da TV e se amplia para todas as mídias e plataformas. “A telenovela, em especial, é uma arena artística que sintetiza todas as nuances de nossa sociedade. Da padaria que frequento em São Paulo, costumo ouvir acaloradas discussões sobre o comportamento dos personagens de A Regra do Jogo, por exemplo, passando pela complexidade psicológica de atração e repulsa que existia em Verdades Secretas. As novelas continuam a alimentar o cotidiano e a ser escritas ao sabor da contemporaneidade”, diz Alencar.
O autor ressalta que o gênero faz parte do ideário latino-americano – está diretamente ligado à constituição psicossocial de nosso povo. “Se assim não fosse, Gabriel García Márquez não teria impulsionado de maneira tão intensa os estudos da telenovela na renomada Escola Internacional de Cinema e Televisão San António de los Baños, em Cuba.”
Dentro de uma linhagem histórica, particularmente a partir da década de 1970, com o processo de modernização e industrialização da telenovela, segundo Alencar, o gênero passou a acompanhar, no tempo e no espaço, os caminhos de nossa sociedade sem perder de vista o caráter ficcional e lúdico. “Basta observar com acuidade os efeitos sociais de I Love Paraisópolis ao mostrar com a leveza do horário das 19 horas os contrastes econômicos dos personagens, ou o que a personagem Atena, de Giovanna Antonelli (de A Regra do Jogo), provoca nas consumidoras para compreendermos que a novela segue o curso natural da história”, observa Alencar.
Outra fase
São recorrentes as notícias de que as novelas das 21 horas da Globo não atingem mais os índices de audiência de outrora. Nos últimos meses, mesmo com a dobradinha criadora do fenômeno Avenida Brasil – o autor João Emanuel Carneiro e a diretora Amora Mautner –, a emissora não repete o feito em A Regra do Jogo. Na disputa, os frequentes registros de liderança da megaprodução da Record Os Dez Mandamentos várias vezes chegaram a ser celebrados nas redes sociais. A novela anterior da Globo também teve problemas de rejeição e pagou um preço por apresentar, logo no primeiro capítulo, um beijo na boca das personagens Fernanda Montenegro e Nathalia Thimberg. Mesmo com elenco repleto de estrelas, Babilônia teve problemas de audiência.
Segundo o médico e psicanalista Francisco Daudt da Veiga, a rejeição à trama não ocorreu devido ao conservadorismo do público. “Foi por causa da forçação de barra fora de contexto da novela. As mulheres mais velhas se beijando não seriam rejeitadas se o fizessem depois de um conhecimento e envolvimento emocional, como foi o caso dos personagens de Mateus Solano e Thiago Fragoso”, argumenta Veiga, em referência a cena protagonizada pelos atores em Amor à Vida, exibida entre 2013 e 2014.
Quanto à influência dos folhetins no comportamento das pessoas, o psicanalista reforça que, em certos casos, a TV vem a reboque dos costumes, em outros, vem à frente. Para ele, as novelas tiveram um papel essencial na diminuição da taxa de fertilidade brasileira. “Os espectadores só viam casais com dois filhos no máximo. Acharam bacana e começaram a imitar. Hoje a taxa de nascimentos por mulher está em 2,6, enquanto em 1980 era de 4,2 e em 1950 era de seis”, acredita ele.
De acordo com Veiga, a teledramaturgia vem mesmo passando por uma crise existencial, mas em nada difere das mudanças que o mundo vive desde o aparecimento da internet e de seu “fluxo avassalador” de informação e de intercomunicação. “Os telefones fixos não tocam mais, cada vez menos os celulares servem para falar, a comunicação digitada e as redes sociais se tornam hegemônicas.”
Mas a estrutura de folhetim ainda tem um apelo à curiosidade e à fantasia humana inesgotável, afirma Veiga, que também o compara ao sucesso das séries estrangeiras, gênero que segue a mesma linha. “Nada mais são do que folhetins com linguagem de cinema, sobretudo com roteiristas que nos matam de inveja pela qualidade e criatividade, coisa que os roteiristas argentinos fazem também. As próprias séries estrangeiras vêm se reinventando. Os Sopranos, produção do canal HBO, inaugurou um estilo que tocou profundamente o coração contemporâneo, e vem se aprimorando no mesmo registro desde então.”
Em 2014, a direção da Globo criou um fórum para planejar o rumo da dramaturgia. Umas das tendências, conforme defende o autor João Emanuel Carneiro, é diminuir o tamanho das novelas, que chegam a 200 capítulos. “Pode ser que a teledramaturgia comece a reinventar, seguindo o lema do comediante falecido José Vasconcellos: ‘Renovar ou morrer... Vamos renovar!’ Trata-se de um problema de ressintonizar”, afirma Veiga.
Por muitos anos, as novelas ditaram modas e costumes. Era comum se evitar compromissos sociais para não perder a sequência da trama, ou programar a gravação para recuperar depois. Nada parecia abalar o domínio da teledramaturgia, e a alta fidelidade do telespectador. Mas os tempos mudaram. Na disputa pelos espectadores estão os canais a cabo, a explosão das séries acessadas pela internet e uma profusão de conteúdos gratuitos independentes de audiovisual.
O avanço da tecnologia deu fim até à necessidade de baixar as imagens e armazená-las. Em 2011, chegou ao país a Netflix, serviço de streaming que oferece filmes e séries em ritmo de assine, clique e assista – inclusive sem necessidade de computador. Canais a cabo passaram a oferecer programação na qual o cliente assiste ao que quiser, quando e como, a chamada opção on demand. Não demorou muito para surgirem alguns “piratas” como o Popcorn Time, que se autodefine como grupo de nerds que oferece séries e filmes legendados de graça.
Segundo a professora Esther Hamburger, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e autora do livro O Brasil Antenado: A Sociedade da Novela, está em curso a diversificação de meios e as formas de recepção. E dificilmente as novelas terão o mesmo papel e lugar que tiveram nos anos 1970 e 1980, quando atraíam públicos de diferentes sexos, idades, regiões e classes sociais. “Parece ter ainda um público cativo, menos heterogêneo. E creio que há um círculo vicioso: quanto mais homogêneo o público, menos interessantes são as novelas, pois as produções parecem se orientar por estereótipos que subestimam certos segmentos da sociedade, especialmente o espectador cativo de novela”, analisa Esther.
Mesmo diante da perda da relevância, a professora não enxerga um fim próximo para a teledramaturgia. “Apesar de haver tantas opções que não existiam antes, o sucesso de Avenida Brasil (2012) mostrou a resistência de um gênero profundamente enraizado. As novelas continuam a pautar as principais emissoras de televisão no Brasil. A competição entre canais ainda acontece via novelas”, observa.
Para Esther, a televisão sofrerá profundas transformações com o advento da multiplicidade de canais no YouTube ou fora dele, assim como aconteceu com a indústria fonográfica, há alguns anos. “Isso quer dizer o fim da TV? Talvez o fim da TV como a conhecemos hoje. O cinema, que perdeu já há mais de 50 anos a sua exclusividade audiovisual para a TV, mudou de caráter, mas continua existindo.”
Poder
O aparelho de tevê da arquiteta Marina Leal Mendonça, de 27 anos, quebrou. E ela não tem interesse em adquirir um novo, apesar dos apelos da faxineira. “Não assistia mais à TV aberta, odeio a Globo. Por algum tempo, gostei do CQC (programa que surgiu como novidade no Brasil em 2008, baseado em um modelo argentino de 1995, e que permaneceu na grade da Bandeirantes até 2015). Prefiro ouvir música, ler ou assistir a séries e filmes pelo computador. Novela é maluquice. Não gosto, não faço questão de ver. Fiquei hipnotizada quando vi a novela do Comendador, Império. Mas é muita perda de tempo, não quero isso para mim”, afirma.
Para o publicitário Matheus Grossi, de 31 anos, as novelas ficaram muito repetitivas, sempre repletas de personagens caricatos. “Assistia desde criança. Sinto saudades de obras como Tieta, havia sarcasmo, humor escrachado. O politicamente correto e a necessidade de agradar o senso comum com final feliz acabam com a criatividade dos autores”, diz Grossi, que no horário dos folhetins tem preferido ler, fazer cursos ou assistir a séries da Netflix. “Assisti a Narcos e achei muito boa. Também gosto de acompanhar os conteúdos audiovisuais de blogs de viagens, de moda, que estão cada vez mais profissionais e com qualidade.”
Mas há quem defenda que o poder de atração da teledramaturgia brasileira segue numa escala cada vez maior. O pesquisador Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP e autor de A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil e da coleção Grandes Novelas, diz que o gênero ultrapassa a tela da TV e se amplia para todas as mídias e plataformas. “A telenovela, em especial, é uma arena artística que sintetiza todas as nuances de nossa sociedade. Da padaria que frequento em São Paulo, costumo ouvir acaloradas discussões sobre o comportamento dos personagens de A Regra do Jogo, por exemplo, passando pela complexidade psicológica de atração e repulsa que existia em Verdades Secretas. As novelas continuam a alimentar o cotidiano e a ser escritas ao sabor da contemporaneidade”, diz Alencar.
O autor ressalta que o gênero faz parte do ideário latino-americano – está diretamente ligado à constituição psicossocial de nosso povo. “Se assim não fosse, Gabriel García Márquez não teria impulsionado de maneira tão intensa os estudos da telenovela na renomada Escola Internacional de Cinema e Televisão San António de los Baños, em Cuba.”
Dentro de uma linhagem histórica, particularmente a partir da década de 1970, com o processo de modernização e industrialização da telenovela, segundo Alencar, o gênero passou a acompanhar, no tempo e no espaço, os caminhos de nossa sociedade sem perder de vista o caráter ficcional e lúdico. “Basta observar com acuidade os efeitos sociais de I Love Paraisópolis ao mostrar com a leveza do horário das 19 horas os contrastes econômicos dos personagens, ou o que a personagem Atena, de Giovanna Antonelli (de A Regra do Jogo), provoca nas consumidoras para compreendermos que a novela segue o curso natural da história”, observa Alencar.
Outra fase
São recorrentes as notícias de que as novelas das 21 horas da Globo não atingem mais os índices de audiência de outrora. Nos últimos meses, mesmo com a dobradinha criadora do fenômeno Avenida Brasil – o autor João Emanuel Carneiro e a diretora Amora Mautner –, a emissora não repete o feito em A Regra do Jogo. Na disputa, os frequentes registros de liderança da megaprodução da Record Os Dez Mandamentos várias vezes chegaram a ser celebrados nas redes sociais. A novela anterior da Globo também teve problemas de rejeição e pagou um preço por apresentar, logo no primeiro capítulo, um beijo na boca das personagens Fernanda Montenegro e Nathalia Thimberg. Mesmo com elenco repleto de estrelas, Babilônia teve problemas de audiência.
Segundo o médico e psicanalista Francisco Daudt da Veiga, a rejeição à trama não ocorreu devido ao conservadorismo do público. “Foi por causa da forçação de barra fora de contexto da novela. As mulheres mais velhas se beijando não seriam rejeitadas se o fizessem depois de um conhecimento e envolvimento emocional, como foi o caso dos personagens de Mateus Solano e Thiago Fragoso”, argumenta Veiga, em referência a cena protagonizada pelos atores em Amor à Vida, exibida entre 2013 e 2014.
Quanto à influência dos folhetins no comportamento das pessoas, o psicanalista reforça que, em certos casos, a TV vem a reboque dos costumes, em outros, vem à frente. Para ele, as novelas tiveram um papel essencial na diminuição da taxa de fertilidade brasileira. “Os espectadores só viam casais com dois filhos no máximo. Acharam bacana e começaram a imitar. Hoje a taxa de nascimentos por mulher está em 2,6, enquanto em 1980 era de 4,2 e em 1950 era de seis”, acredita ele.
De acordo com Veiga, a teledramaturgia vem mesmo passando por uma crise existencial, mas em nada difere das mudanças que o mundo vive desde o aparecimento da internet e de seu “fluxo avassalador” de informação e de intercomunicação. “Os telefones fixos não tocam mais, cada vez menos os celulares servem para falar, a comunicação digitada e as redes sociais se tornam hegemônicas.”
Mas a estrutura de folhetim ainda tem um apelo à curiosidade e à fantasia humana inesgotável, afirma Veiga, que também o compara ao sucesso das séries estrangeiras, gênero que segue a mesma linha. “Nada mais são do que folhetins com linguagem de cinema, sobretudo com roteiristas que nos matam de inveja pela qualidade e criatividade, coisa que os roteiristas argentinos fazem também. As próprias séries estrangeiras vêm se reinventando. Os Sopranos, produção do canal HBO, inaugurou um estilo que tocou profundamente o coração contemporâneo, e vem se aprimorando no mesmo registro desde então.”
Em 2014, a direção da Globo criou um fórum para planejar o rumo da dramaturgia. Umas das tendências, conforme defende o autor João Emanuel Carneiro, é diminuir o tamanho das novelas, que chegam a 200 capítulos. “Pode ser que a teledramaturgia comece a reinventar, seguindo o lema do comediante falecido José Vasconcellos: ‘Renovar ou morrer... Vamos renovar!’ Trata-se de um problema de ressintonizar”, afirma Veiga.
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