sábado, 20 de fevereiro de 2016

Caixa de isopor e pés fora da cozinha

Por Emiliano José, na revista Caros Amigos:

Há uma foto clássica de Lula: leva sobre a cabeça uma caixa grande de isopor. Seguindo-o, parte da comitiva que o acompanhava sempre por dever de ofício, e familiares, Marisa inclusive. Praia de Inema, na Bahia. Não se soubesse a qualificação dos demais, e Lula seria tomado pelo menor dos empregados daquela trupe, mais assemelhada a um grupo de farofeiros. Ou grupo acostumado a churrascos domingueiros.

E Lula era presidente da República.

Carregar um isopor não lhe era estranho.

Não o diminuía.

Se a memória estiver boa, o desfrute de Inema por presidentes começou com FHC, 1998. Não se tem notícia, nem fotos dele carregando isopores ou praticando quaisquer desses desprezíveis trabalhos braçais.

Afinal, ele tem um pé, só um pé, na cozinha. Como autodeclarado. Falasse em dois, e assumiria a negritude, de que gostava como objeto de estudo, nunca como identidade étnica. Cultiva mesmo é o andar de cima. Ser branco acaricia sua alma. Gente diferenciada, como se diz pelas bandas do branco bairro de Higienópolis da São Paulo quatrocentona, onde ele mora.

Lula, o contrário.

Nunca esqueceu suas origens.

Não quer esquecer.

Sabe de onde veio.

Do Nordeste graciliano, das cadelas baleias, do chão esturricado, das pessoas acossadas pela fome advinda dos coronéis de variado tipo, do sol inclemente a castigar a pele, da mãe retirante a conduzir os trastes e os filhos para o Sul à procura do milagre da sobrevivência, como Sinhá Vitória. Vidas secas.
Não, não esquece, não quer esquecer: metalúrgico ainda muito novo, sangue escorrendo na prensa, dedo perdido. Vida sindical, os primeiros assomos de consciência política, e depois o clarão, o PT, a persistência, os combates, até chegar à Presidência da República, para desespero dos brancos, das elites, e de alguns que se querem a pulso brancos, disfarçando até aquele pé (mulato?) na cozinha.

Ele sabe do preconceito, como o sabem todos os pobres do Brasil, negros e brancos.

Tanto sabe, que ao chegar ao topo, dirigindo o País, tomou consciência de que não podia errar. Óbvio: não errar quer dizer não abrir mão dos compromissos com o povo, não esquecer nunca de onde veio, do território da fome e da exclusão, território para o qual seu governo devia dar, como deu, absoluta prioridade.

Não têm apenas os dois pés na cozinha de fogão à lenha. Sua alma, seu coração, estão sempre lá onde o povo está – nas fábricas, nos sindicatos, ao lado dos trabalhadores rurais, dos catadores de lixo, das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos sem-terra, dos sem-teto, dos que têm sede e fome de justiça.

Errar, podia, e só não erra quem já morreu.

Não podia era apartar-se de suas origens.

Não podia deixar de colocar isopor na cabeça.

Por tudo isso, as elites, setores de direita do sistema de Justiça, e a principal intérprete da Casa Grande, nossa mídia hegemônica, o perseguem como a um cão danado. De parte da mídia, não cabe a ninguém revelar alguma surpresa, salvo se tomado do pecado mortal da inocência. Não houve momento, desde sua chegada à Presidência, ou mesmo no decorrer de suas candidaturas anteriores, em que ela, zelosa dos privilégios dessa gente diferenciada que sempre quer mostrar o seu valor e o seu ódio e o desprezo pela ralé, não houve um único momento em que ela tenha lhe dado trégua.

E vamos combinar? Ela não nega sua história: agiu assim com Getúlio, com Juscelino, com Goulart, articulou o golpe que resultou na ditadura. Não aceita quaisquer experiências, tímidas que sejam, dispostas a promover mudanças democráticas, de natureza reformista, no País. Mas, o caso de Lula é especial. As elites babam de ódio. Não admitem sua existência. A propósito, a Editora Fundação Perseu Abramo acaba de colocar na rua livro de minha autoria, “Intervenção da imprensa na política brasileira (1954-2014)”, onde mostro o DNA golpista de Getúlio até o mandato atual da presidenta Dilma.

Em artigo anterior, editado aqui, e não me incomodo de repetir argumentos, lembrei de Tancredo Neves explicando que Getúlio fora odiado não por razões pessoais, mas pelas políticas que beneficiaram a população trabalhadora e o País. Tancredo falava dois meses depois do suicídio. No caso de Lula, isso é profundamente verdadeiro: as políticas que adotou mudaram a vida de milhões de brasileiros. Mas, subjacente a esse corte político, há outro, cultural, que não deve ser subestimado: a não aceitação da presença da senzala no mundo da política.

Lula é um corte radical na tradição política brasileira. É um tapa na cara das classes dominantes endinheiradas e pretensamente letradas. Operário é bom confinado às lutas corporativas, desde que não incomode muito, não exceda os limites impostos pelas classes dominantes de pés fora da cozinha. Estão, mídia, oposição e sistema de justiça irmanados, numa ofensiva absolutamente concertada, para mostrar que a política é território das elites. Os originários da senzala, fiquem fora!

Para isso, vale tudo. Não importa a verdade. Perdeu-se por completo, nessa ofensiva, qualquer pudor. Trata-se de destruir o governo Dilma, o PT, e principalmente a principal liderança popular de nossa história. E insisto que isso só é possível pela existência de uma mídia partidarizada, sem escrúpulos, desprovida de qualquer senso ético ou compromisso com os fatos. Eu queria, pudesse ter uma ilusão, que a mídia brasileira voltasse a cultivar os princípios do jornalismo liberal, só isso. Olhasse para os seus manuais. Nada além, nada além de uma ilusão. Trata-se é de lutar, em todas as frentes, para desmascarar o que estão tentando fazer com Lula, coração e alma do povo brasileiro.

* Emiliano José é jornalista e escritor.

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